«O que vem a ser esta preferência concedida aos pecadores?»

A misericórdia, antes de Cristo, era totalmente inconcebível. Mas, vendo os cristãos, no pagão Celso nasceu uma pergunta...
Francesco Braschi*

Já estamos às portas do Jubileu da Misericórdia, sobre o qual o Papa Francisco pede que se fixe a atenção de todos, pois essa – como escreve na Bula Misericordiae Vultus – é como a síntese do mistério da fé cristã, «condição da nossa salvação... acto último e supremo com o qual Deus vem ao nosso encontro…» (n.2).
Estamos, por isso, colocados diante duma realidade de riqueza inesgotável tanto quanto a própria profundidade do Mistério. Não é de todo óbvio que nos “demos conta” do valor da misericórdia, porque estamos habituados a considerar essa realidade – as mais das vezes reduzindo-a de forma moralista ou sentimental – como “normal”, companheira habitual da condição humana.
Mas será realmente assim? Acontece-nos pensar que a misericórdia pode eventualmente ser excluída como opção pessoal, mas não negada enquanto realidade. Mas nem sempre foi assim. antes da vinda de Cristo, a misericórdia não era meramente desprezada ou rejeitada: antes era negada enquanto princípio lógico e razoável, mediante o qual interpretar a realidade.
No séc. II o pagão Celso dá testemunho disto. No seu Contra os Cristãos exprime-se assim: «Não estou de maneira nenhuma a dirigir aos Cristãos acusações mais ásperas do que a verdade exige. De facto, todos aqueles que convidam a abraçar uma religião põem como condição prévia necessária que se tenha as mãos puras e palavras de sabedoria e se leve uma vida boa e justa... Escutemos agora quem é que os Cristãos convidam. Eles dizem: Quem é pecador, tolo, insensato, e, para usar uma palavra só, quem é miserável, este será acolhido no Reino de Deus». Tal atitutde, segundo Celso, é totalmente contrária à natureza de Deus e desrespeitoso em relação a Ele: «Que vem a ser a preferência concedida aos pecadores? Com este ensinamento os Cristãos blasfemam e mentem contra Deus».
A razão deste juízo está numa concepção bem precisa da realidade e do homem: «Na realidade é claro para todos que ninguém, nem com castigos, poderia mudar absolutamente aqueles homens que por natureza têm inclinação para o pecado e renitentes nele. Muito menos o poderia fazer com a compaixão. Com efeito, mudar a natureza é a coisa mais difícil do mundo».
O mundo onde acontece o Cristianismo é um mundo no qual a compaixão é considerada irrazoável e injusta inclusivamente para Deus. De facto, escreve Celso, «se, como eles [os Cristãos] afirmam, à maneira de quem é escravo da compaixão, Deus se deixa dominar pela piedade por quem geme e levanta os malvados e afasta os bons que não recorrem a tais meios, Ele comette a maior das injustiças».
Foi, portanto, realmente revolucionário, no plano cognoscitivo e cultural, poder ler o que Paulo escreveu na Primeira carta a Timóteo (1,15): «Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. E justamente por isso alcancei misericórdia, para que, em mim primeiramente, Cristo Jesus mostrasse toda a sua magnanimidade, como exemplo para aqueles que haviam de crer nele para a vida eterna». Com o Cristianismo entra na história a possibilidade de deixar-se transformar pelo amor, gerando-se um dinamismo novo e inédito.

*Doutor da Biblioteca Ambrosiana