REABRIR A PARTIDA

Editorial da revista Passos - novembro de 2015

Muitos dos nossos leitores já devem ter adivinhado donde surge esta fotografia. Outros não, porque não estavam ou porque não terão lido o texto daquele encontro em Setembro (a Jornada de Início de Ano de CL) em que o padre Julián Carrón surpreendeu os presentes recuperando uma página da Introdução ao Cristianismo do então Cardeal Ratzinger. Era “o apólogo do palhaço” usado por Søren Kierkegaard. Num circo deflagra inesperadamente um incêndio. O director envia o palhaço, já em traje de cena, à aldeia vizinha para pedir ajuda. Os habitantes pensam que é um truque para atrair o público ao espectáculo. Quanto mais ele grita, chora, implora, mais eles riem. Até que as chamas chegam ao povoado...
Pois, dizia mais ou menos Ratzinger, nós cristãos corremos o mesmo risco: quanto mais nos esforçamos em falar da fé ao homem de hoje, mais estranhos, excêntricos e incompreensíveis nos acham. As coisas que se dizem são verdadeiras. Aliás, sacrossantas. Mas caem num contexto em que não pegam, parecem fora do mundo, não credíveis. E muitas vezes não pela maldade do mundo, ou por preconceito contrário. Mas porque se apoiam em evidências que já não são entendidas como tal, oferecem-se a uma razão que está a padecer «um estranho obscurecimento do pensamento» (para usar outra expressão de Bento XVI). E portanto colocam-nos perante uma pergunta vital: como se pode tornar a fé credível – interessante – hoje?

No fundo, é a mesma questão levantada pelo Sínodo sobre a família, que se concluiu há dias. Não por acaso, os temas das duas rondas de consultas a que o Papa Francisco chamou a Igreja eram «os desafios pastorais» (em Outubro de 2014) e «a vocação e a missão da família» no mês passado. É o mesmo tema, dramaticamente arreigado numa realidade das mais urgentes e caras à vida do homem (a família, justamente): como viver e propor a beleza do matrimónio, o desafio fascinante do “para sempre”, a um mundo confuso, individualista, em que mesmo as evidências mais basilares (homem e mulher, pai e mãe) deixaram de ser reconhecidas por todos?
Impressiona muito, nestes tempos, reler uma passagem do Evangelho de Mateus. É aquele em que Jesus fala da indissolubilidade do matrimónio, algo que em si mesmo é conforme à natureza do homem («Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao princípio, não foi assim»). E impressiona a resposta dos discípulos, pela sua espontânea rudeza: «Se é essa a situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se!». Não é conveniente. Que é como quem diz: o que tu propões é impensável. É impossível, inadequado pela forma como somos feitos... Na prática, a objecção é a mesma de hoje. O que é que a venceu? O que é que lhes abriu uma perspectiva em que aquela vida – aquela moralidade nova – passava a ser até desejável, além de possível?

Na Passos também se fala disto. Ou melhor: tenta-se mostrar. Fazer ver como pode acontecer – quando acontece – que o cristianismo volte a ser interessante, ou seja, pertinente à vida, para quem já tinha dado por terminada a partida. Quer suceda entre os habitantes dum subúrbio de Londres ou a um médico-empresário dos Estados Unidos, ou onde quer que se desenrole a vida do homem de hoje a modalidade que pode reabrir o jogo é sempre a mesma: um encontro. Com uma realidade humana (uma pessoa, uma companhia) que causa impacto e atrai simplesmente porque o seu modo de viver (não apenas as suas palavras: o modo de viver) é mais belo, mais pleno. Mais humano. E abre perspectivas que não se imaginava serem possíveis.
Um encontro e uma companhia. Como para os discípulos, a mesma coisa. Não acontece porque falemos de Cristo ou porque digamos coisas certas (que são para dizer, era o que faltava). Acontece porque Ele está, agora. E podemos viver com Ele.