TURNO DA NOITE

A busca de trabalho, os projectos fracassados, as muitas perguntas. Lucia é uma jovem obstetra italiana que se mudou para Londres. Este é um retrato do dia-a-dia no Queen’s Hospital, entre encontros, partos e desejos “essenciais”...
Alessandra Stoppa

Um dos gémeos, nascido com 360 gramas, morreu no ventre materno. É a primeira vez que Lucia acompanha uma morte intrauterina. Vinte e seis anos, de Trento, formou-se em Obstetrícia em Brescia e trabalha no Queen’s Hospital de Romford, na periferia de Londres. Esta noite, compete a ela enviar a placenta para o laboratório e o bebé para a morgue. Nunca o tinha feito antes, por isso pede ajuda a uma enfermeira, que vai com ela à sala de operações. “Ele ali estava, pequeníssimo. E perfeito”. A enfermeira põe o bebé dentro de um pequeno saco e fecha-o numa caixa. Lucia só consegue chorar. A outra vai embora, mas ela fica, porque precisa de chamar a funerária: é este o procedimento. Apresenta-se um homem negro, grande e gordo, que a olha um instante e diz: “Você preparou-o bem?”. Fica grata por aquela pergunta. Não sabe o que isso significa nem o que deve fazer, mas sabe que não pode ser assim: “Não, não, eu já o preparo”. Pega dois lençóis, faz uma caminha e segura o bebé nas mãos, com cuidado, atenta a cada centímetro de seu corpo. “Fiz isso com todo o amor que eu tinha. Porque Deus não o teria tratado de modo diferente. Sei disso, porque é como eu me sinto tratada agora por Ele”.

DIRECTRIZES. Há dois anos Lucia nunca teria dito isto. De um momento para o outro, pensava que tinha perdido tudo. “Vi desabar os dois pilares da minha vida: meu namorado, com quem ia casar, deixou-me. E o hospital onde trabalhava mandou-me embora”. Mas não ficou parada, foi para o Brasil trabalhar com jovens mães nas favelas. “Foi uma experiência que me marcou muito. Assim como a que fiz em África, durante a minha tese. Avivaram o meu desejo de crescer profissionalmente”. Perguntou-se onde poderia ter uma boa formação e não teve dúvidas: Inglaterra. “Todas as directrizes sobre maternidade chegam daqui: fazem muitas experiências e, mesmo com muitos limites e uma excessiva especialização, há muito a aprender”.
Assim, Lucia Pederiva é hoje uma jovem italiana expatriada. Mas não em fuga. É possível perceber isto pelo modo como faz seu trabalho, longe de casa e sem segurança. Chegou a um hospital onde não conhecia ninguém; no apartamento onde mora com outras três jovens é duro: a maioria das vezes, quando volta a casa, encontra as portas de seus quartos já fechadas. Os amigos do Movimento estão um pouco distantes. “Quando posso vou ter com eles, porque é uma grande ajuda. Mas quero viver em plenitude cada instante, tanto nos corredores do Queen’s Hospital como na casa que divido com minhas colegas. E, na aparente solidão, nunca estou sozinha. Quando me esqueço disso, por medo ou distração, Deus coloca alguém ao meu lado para me lembrar”. Sempre acontece alguma coisa que muda seu rosto e o dos outros. Dia após dia. Desde o primeiro turno que fez, há um ano.

TUM, TUM, TUM. Assim que chega à enfermaria para iniciar seu primeiro dia de trabalho, é recebida por Maria, a enfermeira-chefe, enquanto desliga o telefone que toca continuamente. “God is good!”, diz-lhe. A folha de admissões é clara: 16 camas, 3 disponíveis e 11 mulheres a dar entrada. “Havia uma grande movimentação. Eu e as colegas corríamos, indo de um lado para o outro... Naquele caos, ouvia a voz da Maria como um refrão: God is good, e o coração, tomado pelo medo de não estar à altura, de repente, respirava”. No fim do turno, enquanto põe as fichas e a cabeça em ordem, pensa maravilhada na forma como Maria administrou o caos daquele dia. “Obrigada, Maria”. “Quem me agradece?”, diz a enfermeira-chefe levantando a cabeça da escrivaninha. “Sou eu”. Lucia aproxima-se e abraça-a. “Aquele abraço era mais uma necessidade minha do que algo para ela”. “God is good”, responde Maria: “Eu e tu seremos grandes amigas”. A partir daquele dia, quando a chama no corredor, todos ouvem “Love!”. E ela: “Estou aqui, Maria!”.
Aziza está na 24ª semana de gestação. O filho dela está em sofrimento e ficou acordada a noite inteira, chagando a obstetra que, na mudança de turno, diz a Lucia: “Não auscultei o coração, porque ela estava a dormir. Deixo para ti descobrir se o bebé ainda está vivo ou não”. Lucia entra no quarto, hesitante. “Porque é que o médico não faz uma cesariana para salvar meu bebé?”, pergunta-lhe Aziza. Lucia senta-se na cama e, com calma, explica-lhe a situação, os riscos, o sentido de certas escolhas, do antibiótico, da monitorização... “Esta noite sentiu-o mexer?”. “Não”. Com o coração na boca, põe a mão na barriga dela e liga o Sonicaid. Assim que o encosta: tum,tum,tum! “O batimento cardíaco daquele bebé encheu o quarto. E o coração de Aziza, e o meu. Como que querendo gritar: estou vivo!”. O rosto daquela mulher mudou completamente: seu bebé está vivo.
“Sou continuamente acompanhada assim”, conta Lucia. Por um rosto que muda, por um encontro, uma palavra. Basta fazer um turno da noite, qualquer um. Zarah é uma mulher muçulmana que está em trabalho de parto do quarto filho, os outros três já são adolescentes. “Pergunto-lhe na brincadeira: ‘Foi uma surpresa?’. Mas digo-o pensando na palavra: erro... Naquele momento intervém o marido, com grandes barbas e roupa comprida: ‘Foi um dom’, e acena com a cabeça para o alto. Foi um chamado de atenção para mim e mudou o meu coração”. De hora para hora o trabalho de parto de Zarah complica-se, o coração da criança dá sinais de stress. Lucia faz de tudo e entretanto reza: Anjo de Deus... Enquanto arruma o soro e os aparelhos de monitorização, percebe que Zarah, de olhos fechados, contraída pelas dores, também reza. “Fiquei comovida. Por aquela inacreditável unidade, por aquela prece tão unida e única”. Enquanto isso, no quarto ao lado, Kate está exausta. Em três semanas foi internada sete vezes por hemorragias. Conforme o bebé cresce, a placenta distende-se e sangra. Quando Lucia chega para ver como está, pergunta: “Kate, não me lembro: é menino ou menina?". “Só sei que é um problema. Desde o início da gravidez, é o meu problema”. “Não!”, responde Lucia: “Este é o seu milagre. Traz preocupações, é verdade, mas antes de tudo, é um milagre”. O rosto de Kate muda e a partir daquele momento diz “my baby” e já não “my trouble”.
Primeiras luzes da manhã. Lucia corre até o quarto 32. Ivanhi chegou com a dilatação completa e é tudo tão rápido que não dá tempo nem de chamar o marido. “Quando coloquei o filho nos seus braços, sorriu para mim: ‘Agora, você é da minha família’”. Uma hora depois, chega o marido, ofegante, e Ivanhi continua repetindo: “Esta é a minha Lucy”. “Eu era parte daquela família”, diz Lucia: “Sempre aquela inacreditável unidade...”. Falta meia hora para o fim do turno. Youshra, uma colega muçulmana, com o véu enrolado debaixo da touca do cloco operatório, avisa-a: “Lucy, perdeste a tua cruz!”. Ela verifica, mas a pequena cruz está ao pescoço, como sempre: “Desculpa, é que vi aquela cruz perdida e pensei em ti”. “Quando me disse isso”, conta Lucia, “reconheci, com ternura, como aquela cruz era eu. E como ela era a origem da inacreditável unidade com aquelas mulheres”.
Na entrevista de admissão tinham-lhe perguntado: quem é você? “Aqui, a admissão não é por concurso, é através do currículo”, conta: “Quando me perguntaram ‘quem é você’, comecei a contar a minha história, porque a minha paixão e a minha profissão de obstetra não podem ser separadas daquilo que aconteceu na minha vida”. Não esquece mais a viagem de avião depois da entrevista, trazendo um contrato na mão: “Estava convencida de que os desejos que tinha na vida eram essenciais: o namorado e o trabalho. Naquele momento, um dos dois tinha sido satisfeito mas, no entanto, meu coração estava muito inquieto. Então, disse a mim mesma: é outra coisa! Algo que vai além daquilo que imagino que seja a felicidade. Ali foi a grande descoberta. As vendas caíram dos meus olhos: até aquele momento, todas as outras coisas eram secundárias, não existiam, eu não olhava para elas”.

AS DUAS MULHERES. Os trabalhos de parto, a sala de parto e os colegas foram o terreno dessa abertura. “Todos os dias, na enfermaria, me deparo com o vazio e a pergunta infinita que carrego. Quando o meu namorado me deixou eu tinha um grande desejo de ser esposa e mãe. E ainda tenho. Mas, na dor, percebi em mim um amor que não posso ter por mim mesma, nem por uma pessoa “x” no futuro. Preciso dá-lo agora”. Quando começou a dá-lo às mulheres de quem trata, tudo mudou. “Pensava que os meus desejos não eram ouvidos. Mas no fim deste ano – ou melhor, é fruto do caminho deste ano – sei que o meu desejo é seriamente olhado todos os dias. E escutado”. Até ao detalhe. “No trabalho, Deus vem ao meu encontro fazendo com que eu aprenda as coisas em que tenho mais dificuldade. A paciência, a espera. O trabalho de parto. Faz-me trabalhar, prepara-me para a vida”. As salas 10 e 11 são salas onde se fazem abortos. Por uma questão de consciência, Lucia negou-se a fazer esse trabalho, mas tem de tratar de quem o fez. E certa noite, numa dessas salas, estava uma mulher que perdeu o filho e, na sala ao lado, uma que escolheu abortar por causa de uma anomalia pulmonar. “Eu acompanhava ambas. Mas olhava-as de modo diferente, não conseguia fazer de outro modo”. Quanto mais comparava, mais percebia o casal de africanos cujo filho tinha morrido: “Eram muito unidos. Apoiavam-se, amavam-se. O marido da outra mulher dormia, e ela saía sempre para o corredor para falar comigo. Não conseguia ficar sozinha. Estava dividida. Só entendi o seu drama naquela noite”. Na história da maior parte das pacientes que encontra, acontece um aborto. “É trágico, mas é um dado objetivo. Porque é a única opção que é dada, não há outra proposta. Muitas vezes falta simplesmente a vontade de se envolver, explicar, acompanhar. Eu faço-o porque ganho tudo. O relacionamento tão familiar com elas é o modo como Deus me trata e me maravilha”. Mesmo quando, pela primeira vez, uma paciente a rejeita. “Não me queria, não se deixava tocar. Foi muito difícil, porque ao explicar-me que não me queria como obstetra, era a mim, Lucia, que não queria. Fiquei magoada. Mas nesse episódio agressivo recebi carinho”. O abraço das colegas ao verem a sua tristeza, e a pergunta que lhe invadiu coração: quem és tu? “Sou a minha peformance? Sou relação com Outro que me trata com amor, mesmo quando falho”.