A GRAÇA VEM ANTES
A propósito da viagem de Francisco à América do Sul, um diálogo com o padre Pigi Bernareggi e Rosetta Brambilla. Missionários no Brasil há cinquenta anos, ajudam-nos a entender o que vê o Papa na «religiosidade popular». E a relação com o “seu” povoBairro 1º de Maio, periferia de Belo Horizonte. Encontramo-nos na casa de Rosetta Brambilla, que mora na vizinhança do padre Pigi há mais de 30 anos. Padre Pigi e Rosetta foram dos primeiros a partir em missão após o encontro com o carisma de Dom Giussani. Estão no Brasil há cinquenta anos. Rosetta trabalha com crianças e adolescentes, o padre Pigi, filósofo brilhante proveniente de uma família da alta burguesia de Milão, dedica-se aos mais pobres. Foi morar nas favelas de Belo Horizonte, vivendo no meio do seu povo. Tornou-se um «pastor com cheiro a ovelhas», segundo a bela imagem do Papa Francisco. Faz-me sempre bem estar com ele. Olhos vivos que inspiram simpatia e misericórdia e me lembram muito o olhar de Dom Giussani. Até porque não deixa de citar frases dele, canções ou histórias que, como veremos, ainda hoje moldam o seu coração e o seu olhar sobre tudo. Por isso é muito bom falar com ele.
Eu tinha lido, no dia anterior, um artigo escrito originalmente pelo então Cardeal Bergoglio («Bergoglio: vi spiego la teologia del popolo», in Avvenire, 26 de Abril de 2015), no qual ele explicava o conceito de “teologia do povo”, que evidencia a riqueza da religiosidade popular na América Latina. Muitas perguntas e algumas descobertas pulavam na minha cabeça e queria ouvir o que o padre Pigi tinha a dizer sobre elas.
Uma das coisas que mais me ajudaram neste período foi o que disse o Papa a respeito da graça de nos sentirmos pecadores. O que mais nos desagrada pode-se tornar uma graça, que coisa absurda!
P. Pigi. “Oh! Si tu savais combien Je t´aime”. “Ah! Se tu soubesses quanto te amo”, tu voltarias para Jerusalém e o próprio peso dos teus pecados te levariam. Aliás, eles te empurrariam, te arrastariam até mim. Primeiro vem o amor de Cristo, a graça precursora, depois vem o nosso retorno. Mas se não existisse antes o amor de Cristo, não poderíamos regressar.
Mas por que é que resistimos a regressar? Por que é que o peso dos nossos pecados é mais forte do que o desejo de nos entregarmos?
P. Pigi. Porque existe o pecado original. O amor de Cristo criou um campo magnético antagónico à força gravitacional do pecado, uma força superior que é o desejo, a tendência para voltar. Por isso não ajuda nada falar dos erros, mas do amor de Cristo, porque é isso que faz o homem mover, quase que automaticamente. Mas se ninguém me fala do amor de Cristo... Eu vejo isso com os jovens aqui, que entram no tráfico com 13, 12, 11 anos. E agora querem reduzir a maioridade penal...
Quando o Papa fala da religiosidade popular, não fala dela como um fenómeno folclórico, mas como uma riqueza muito importante presente na América Latina, e pensei que aqui no Brasil esse fenómeno teve e ainda tem uma grande incidência.
Rosetta. Mas agora não é mais assim!
P. Pigi. Não é que agora não é mais assim; ela está mais oculta, se considerarmos as novas gerações, mas a raiz permanece. A raiz não é a nossa capacidade, mas a graça de Cristo. Bastaria que tivéssemos alguém que dissesse isso em cada esquina. Como a história daquele traficante amigo de Rosetta. Conte!
Rosetta: Numa festa do bairro estava presente um dos chefes do tráfico. Terminada a festa, ele se aproximou dizendo: “Por que você estava olhando para mim?”. “Porque eu queria olhar”, respondi. Ele voltou a perguntar: “Mas você sabe o que eu faço?”. E eu: “Não olhava para você pelo que você faz, mas porque o seu coração procura aquilo que o meu também procura”. Ele me perguntou se podia vir conversar comigo, veio muitas vezes e nós nos tornámos amigos. Depois, um dia, ele foi assassinado.
P. Pigi. Isso se chama graça precursora. O olhar de Cristo antecipa a nossa conversão. A vocação de Mateus, de Caravaggio, citada pelo Papa, diz isso. Aqui havia um rapaz que já tinha matado 22 pessoas. Um dia uma jornalista veio me entrevistar, porque se dizia que os traficantes estavam aterrorizando a favela, e o jornal tinha recebido uma denúncia de que uma velhinha havia sido expulsa da sua casa, para que ali se instalasse uma “boca de fumo”. Eu lhe disse que não sabia de nada, mas que se fosse verdade, certamente era algo errado. No dia seguinte, na primeira página do jornal aparece o meu nome: “Padre Pigi denuncia traficante”. Logo recebo um telefonema anônimo dizendo que eu devia ir embora porque já haviam me condenado à morte. Passei a noite sem dormir, mas de manhã me veio uma ideia. Eu tinha ganho de presente um rosto de Cristo esculpido em madeira, muito bonito. Eu o peguei e fui à favela para encontrar o traficante. Chegando lá, uma pessoa me parou e perguntou o que eu queria; disse que queria falar a respeito daquela entrevista; alguém me disse para esperar, e depois de dez minutos veio o traficante. Eu lhe explico a razão da minha visita e ele, primeiro, me mostra o lugar onde ele colocaria a sua caminhonete (onde antes, efetivamente, estava o barraco da velhinha), e em seguida me diz: “Agora venha comigo”. Pensei: agora ele vai me matar. Entramos num beco e a certa altura, no fundo, aparece uma casinha, parecida com aquela da Branca de Neve: tijolos à vista, as janelas com cortinas, o piso vermelho, a cama, o banheiro, tudo novo. “Veja, é aqui que a velhinha está morando agora”. Aí, com um grito, eu disse: “Oh! Rapaz!”. E lhe dei o Cristo que eu estava levando. Nunca vi no rosto de uma pessoa um sorriso tão verdadeiro como o que vi naquele momento no rosto dele. Depois que se acalmou, me disse que eu podia ir. Graças a Deus ainda estou vivo. Mas o sorriso daquele rapaz quando topou com o rosto de Cristo foi uma coisa incrível. É o que se chama de graça precursora. Nunca mais o vi.
Mas essa história parece aquela outra, sempre lembrada por Dom Giussani quando falava da unidade de vida gerada pela fé, dos bandidos que, na Idade Média, rezavam antes de partirem para um roubo.
P. Pigi. É uma raiz. As pessoas recebem essa raiz no ventre materno. Nunca devemos partir dos defeitos, dos limites. Mas simplesmente comunicar a experiência de Cristo.
Rosetta. No entanto, agora parece que não existe mais essa raiz.
P. Pigi. Semel assumpta semper assumpta (a origem, uma vez assumida, para sempre assumida). Cristo assumiu a nossa carne humana e uma vez assumida, agarrou-a para sempre. Cristo não volta mais atrás. Não precisa fazer outra encarnação. Ele está em tudo e em todos. A gente não pode mais olhar alguém pensando que está fora da relação com Cristo. E não é verdade que não existe mais essa raiz. Se você ajuda alguém a tomar consciência disso, imediatamente essa raiz aparece, basta pouco, um nada. Depois que Cristo retornou ao céu, o céu é a raiz. A raiz de nós todos.
O Papa, no artigo, a certa altura diz: “Não gosto quando alguém diz que precisamos instruí-los... a primeira heresia da Igreja é a gnose*. Ainda hoje podemos ver posições gnósticas diante desse fato da espiritualidade ou piedade popular”.
P. Pigi. O gnosticismo reduzia a religião a uma compreensão intelectual. Já o cristianismo é o reconhecimento de uma realidade imprevisível e intocável, completamente inimaginável, mas que aconteceu. Ou melhor, que está acontecendo. Não no passado que não existe mais, não no futuro que não existe ainda, mas neste instante, neste momento. Está aí. Se não percebemos que “está aí”, fracassamos com nossos planos pastorais. É preciso mergulhar no meio do povo com essa humildade que não é levar Cristo aos outros, mas ajudar os outros a descobrir o Cristo presente agora. Como disse o Papa citando Dom Giussani, que nunca quis fundar nada, mas apenas propor o cristianismo em seus termos originais.
Leio um outro trecho do artigo: “Quando, como Igreja, nos aproximamos dos pobres para acompanhá- los, constatamos que vivem com um sentido transcendente da vida. A vida depende de alguém. Tudo isso se encontra no mais profundo da nossa gente. Esse é um ponto chave que precisamos cuidar, porque é uma riqueza para a Igreja de hoje”.
P. Pigi. A Igreja difunde-se lá onde há gente que espera mais. E o que cada pessoa espera não está imediatamente ligado aos seus conceitos, como supõem o gnosticismo. O que a gente espera, espera com todo o ser. O importante é que exista alguém que esteja esperando. Tanto é verdade que, às crianças pequenas, é inútil falar muito de Deus e de Nossa Senhora; antes, é preciso ajudá-las e estimulá-las a esperar. Daquela mãe que esperava receberam a vida. Foram geradas por uma mãe que esperava.
O homem moderno também espera, mas é como se faltasse a resposta.
P. Pigi. É “como se”, porque a resposta já existe.
A nossa doença é que nós pensamos que já sabemos.
P. Pigi. “Quando poderei ver o teu rosto?”. É para esse “quando” que se dirige a humanidade das pessoas. Adriana Mascagni cantava isso. “Como a corça suspira pela água viva, assim tem sede de ti o meu coração, ó Deus!”. Isso vale também para o mais cretino e idiota homem da Terra... É preciso saber dirigir-se a essa coisa que existe em todo homem... O Gius [Dom Giussani] tocava aquela corda que existe em todos nós. Eu procuro sempre me manter ligado a essa espera, nos meus sermões. E é essa espera que se ouve. “Ho un sassolino nella scarpa. ahi! Che mi fa molto molto male. Ahi!” (Tenho uma pedrinha no sapato, ai! Que me faz muito, muito mal, ai!). Giussani cantava essa musiquinha para nós, durante a aula.
* As heresias gnósticas, muito importantes nos primeiros séculos do cristianismo, mas que sobrevivem matizadas mesmo nos dias atuais, consideram que o acesso a Deus implica num conhecimento específico, que não está ao alcance de todos, mas só aos iniciados que se dedicam ao seu estudo.