O JOGO DOS OPOSTOS

Depois do massacre no Museu do Bardo o país esforça-se por recomeçar. O Padre Ramón Echeverría fala da sociedade que deu ao mundo o maior número de pensadores reformistas e de jihadistas. E onde se encontra a maravilha da mixité
Luca Fiore

«Senhor Presidente, permita que a nossa comunidade católica esteja ao vosso lado neste momento de grande sofrimento para o povo tunisino». O Padre Ramón Echeverria, basco de nascimento, é Vigário Geral da Diocese de Tunes e pároco da Igreja de São Cipriano de Cartago, em La Marsa, o elegante subúrbio da capital situado à beira-mar. Lê em voz alta a carta que o Arcebispo Ilario Antoniazzi dirigiu ao Chefe de Estado tunisino Béji Caïd Essebsi, na manhã seguinte ao massacre do Museu Nacional do Bardo. Três homens, três kalashnikovs. Os autocarros de turismo. A tomada de reféns à sombra das estátuas e dos mosaicos romanos. No final do dia havia 22 mortos e 42 feridos. A reivindicação traz a chancela do Califato. «A barbárie terrorista quis humilhar a Tunísia atacando os valores fundamentais da sua sociedade, que são a hospitalidade e a cultura», prossegue a carta: «A nossa comunidade católica congrega inúmeras nacionalidades, mas na vida quotidiana o povo tunisino conseguiu fazer-nos sentir verdadeiramente em casa. Nós queremos agradecemos-vos e proclamar bem alto que nenhum acto criminal conseguirá jamais destruir esta comunhão recíproca». A Tunísia mudou e continua a mudar, fazendo dela um alvo da violência: «Valorizamos os esforços que o país está a fazer no campo económico, social e educativo, para construir uma sociedade livre e democrática onde todas as opiniões políticas, culturais e religiosas possam conviver em paz. Neste esforço podeis contar sempre com a nossa total colaboração».

Padre Ramón, como reagiram as pessoas?
Nessa mesma noite o povo saiu à rua para protestar contra o terrorismo. A de 20 de Março, dois dias depois, fui com alguns amigos à cidade, à Medina, onde estão as lojas frequentadas por turistas. Vi muita raiva, diziam: «Estes querem-se mortos; desde quarta-feira que não vemos nem um turista. Se a Costa Crociere cancela a escala em Tunes, que havemos de fazer nós aqui?» Mas ao mesmo tempo era o Dia da Festa da Independência. A Avenida Bourghiba, a artéria principal da capital, estava repleta de jovens. Havia um concerto, muitas bandeiras tunisinas, o ambiente era de alegria. Sentei-me na esplanada dum café e vi que, apesar de ser sexta-feira, se servia cerveja sem problema nenhum. E muita...

Nunca lhe tinha acontecido presenciar isso? Nem mesmo a seguir à revolução?
A seguir à revolução com certeza que aumentou o consumo de cerveja. Pelo menos um 50 por cento. Sei dizer-lhe isto porque um dos meus paroquianos produz latas e diz que a procura aumentou. Os turistas haviam diminuído, mas vendeu-se mais cerveja. O Governo do Ennadha tinha mantido o costume dos tempos de Ben Ali de apenas se poder vender álcool em determinados locais e nunca à sexta-feira. Actualmente já não é assim e a mim parece-me um sinal de abertura. E não é o único.

Algum outro?
Uma religiosa que trabalha em Manouba, num orfanato, disse-me que o novo Governo levantou o bloqueio às adopções internacionais imposto pelos islamistas. São pequenos sinais mas que mostram uma atitude de fundo.

Mas o atentado é um grande golpe contra o Governo.
Sim, agora toda a energia está concentrada no problema da segurança. Tal como na Europa, também aqui o Governo está focado na emergência mas não se consegue concentrar nos problemas a longo prazo, que acabam por ser os mais importantes.

E quais são?
A sociedade tunisina, pouco mais de 10 milhões de pessoas, deu ao mundo duas coisas: o mais elevado número de pensadores muçulmanos reformistas e o mais alto contributo de jihadistas para o Iraque a Síria. O que significa que é uma sociedade dividida em duas. A esperança é que, com o tempo, prevaleçam aqueles que eu não chamaria “laicos”, mas “bons muçulmanos”. A partida decide-se entre os jovens. Como em todo o mundo, também aqui estão em busca de uma identidade. Mas quem é jovem hoje tem uma formação cultural e religiosa muito inferior à dos seus pais. As razões são muitas, mas uma delas é que, no tempo de Ben Ali, o regime controlava tudo, incluindo a religião: os jovens eram desencorajados de ir à mesquita. Assim, estas pessoas não puderam frequentar muçulmanos pacíficos. Agora chegaram os fundamentalistas que, com a sua visão simplificada, garantem uma via fácil para responder à exigência de certezas. O risco que vejo é que aqueles a quem os europeus chama laicos ou laicistas – não sei como chamar-lhes porque o termo europeu não corresponde a nenhuma realidade tunisina – se tornem demasiado “laicistas” e que, ao mesmo tempo, os islamistas se tornem demasiado islamistas.

Está preocupado com a presença dos cristãos?
O contexto geral nestes últimos anos melhorou. É claro que devíamos tomar medidas de segurança, devíamos ser mais prudentes. Mas, dum modo geral, nós enquanto cristãos não tivemos problemas e não penso que os venhamos a ter. Também é claro que bastam dois loucos isolados... Mas quem consegue controlar todos?

O senhor padre vive em Tunes há mais de vinte anos. O que é que aprendeu vivendo nesta sociedade?
Não posso dizer que tenha aprendido muitas coisas, mas uma coisa impressionou-me mais que todas as outras: a mixité, a mescla entre as culturas. As mulheres europeias casadas com tunisinos são a base da presença católica na Tunísia. É a parte mais estável, porque o resto são turistas ou empresários mais ou menos de passagem. Mas as mulheres dos casais mistos ficam aqui, casaram com a Tunísia. Muitas vezes estes casamentos não funcionam, mas não se chega a perceber se é por serem mistos ou por via do casamento... Mas a mim impressiona-me ver quando funcionam e na minha paróquia há vários. São uma graça de Deus.

O que é que o impressiona?
Num casal misto que funciona encontramos duas pessoas às quais, se perguntássemos em que acreditam mais profundamente, responderiam duas coisas diferentes, sobre as quais nunca estarão de acordo. No entanto, sabem que há um mistério que os une, tão profundo que lhes permite caminhar juntos. Neste país a mistura foi sempre muito importante. E foi a minha chave de interpretação do trabalho aqui. Vejo que quando há um funeral da mãe cristã dum tunisino, a igreja enche-se de muçulmanos que rezam com fervor. Penso que a mescla é a melhor coisa que encontrei na Tunísia.

Na Europa é uma dimensão que assusta.
Certo, quando não funciona mete medo. O que é o divórcio? São duas pessoas diferentes que não conseguem viver com a diferença do outro. Ao passo que na mescla realiza-se o impossível e é uma maravilha. Para mim é também uma leitura da nossa vida religiosa: para nós, cristãos, a mistura mais absoluta, que segundo a nossa lógica nunca poderia funcionar, é a de Deus com os homens em Jesus. E no entanto funciona.