Quem ousa esperar?
25 mil homicídios num ano. Falta de comida e de medicamentos. O preço do petróleo em queda e a repressão politica. O país sul-americano nas trevas de uma das suas crises mais duras. Mas a coisa mais frágil não desaba...Tem-se falado pouco, mas a Venezuela está mergulhada numa das situações mais dramáticas e desesperantes do mundo, e a população é cada vez mais vítima de pobreza e violências inauditas. A tal ponto que o Papa Francisco, no Angelus de 1 de Março, a associou às tragédias da Síria e Iraque. Como é possível viver aqui? Para um venezuelano, o salário, quando o tem, não chega. O bolívar tem o nome pomposo do grande Libertador e o valor de papel de embrulho. A inflação é vertiginosa: 70%. Comida e medicamentos (imaginem o resto) parecem ter desaparecido. Para se conseguir arranjar um quilo de farinha ou um litro de leite é preciso passar dias inteiros numa fila, como em tempo de guerra ou na antiga União Soviética.
Mas, pensando bem, aqui é tudo destroços de guerra e de socialismo. Confrontos nas ruas que provocam mortes, brutais capturas de autarcas democraticamente eleitos, torturas horríveis de jovens presos arbitrariamente, e uma vaga de delinquentes dispostos a tudo para roubar algum dinheiro. Num ano, vinte e cinco mil mortos por homicídio.
Semelhante desastre é resultado de quase vinte anos de utopia no poder, com o povo reduzido a cobaia no cruel projecto dum émulo de Fidel Castro, o visionário Hugo Chávez, apostado em fingir que fazia nascer, ele, o sol do futuro sobre um monte de petrodólares… que já nem há sequer. Assim desfigurou sociedade e economia, antes de designar o herdeiro, o fidelíssimo Nicolás Maduro, motorista de autocarro, à frente da nação. Um país às escuras.
Dito isto, será possível ter a audácia de afirmar que há esperança, e que esta não consiste em ideias mais ou menos inteligentes e projectos de mudança mais ou menos violentos, mas naquilo que de mais aparentemente frágil e inerme existe, que é a pessoa? Se alguém duvida que as forças que movem a história são as mesmas que movem o coração do homem, veja os testemunhos simples que se seguem. Trata-se de uma mãe de família a braços com a falta de comida e de dinheiro, chamemos-lhe Carmina, e de um jovem artista a quem daremos o nome de Pedro, como Simão, chamado Cefas.
Sapatos a prestações. Carmina ainda não tem 40 anos, é professora, tem dois filhos e um marido taxista que trabalha a 70 quilómetros de El Tucuyo, onde moram. Seria fácil pensar: bem, com dois ordenados devem safar-se. Oxalá. O marido faz o pino para poder manter o seu táxi em condições, dado que as peças sobressalentes valem ouro. E o problema das filas para a comida arruína tudo: «Quem tem de ir trabalhar onde é que tem tempo? Impossível», explica Carmina: «Não nos resta senão recorrer a algum conhecido que revende os produtos fora dos canais legais, a preços inflacionados». Contrabando e comércio clandestino são actividades que a que muitos se dedicam para terem de que viver. Em contrapartida, não é frequente, nem fácil, ajudarem-se mutuamente sem qualquer espécie de proveito. Só se pode fazer entre amigos, se se tiver a companhia verdadeira de amigos verdadeiros. «Em El Tucuyo faço parte duma comunidade cristã de 22 pessoas; ajudamo-nos entre nós e ajudamos também os nossos vizinhos», conta Carmina. «E por intermédio dos amigos de Caracas, consegui recentemente arranjar leite e sabão». E isso (reparem, uma coisa de nada como encontrar leite e sabão) basta-lhe para estar agradecida e confiante: «Não estou sozinha, tenho a experiência de que o Mistério não me abandona. E agradeço a companhia dos amigos que Deus me ofereceu, que não me deixam desesperar».
Carmina e amigos ajudaram-se também para pagar as despesas com o material didáctico dos filhos, organizando bancas na escola. Não desespera nem mesmo face ao problema de pagar um alojamento em Barquisimeto para a filha, de modo que possa frequentar a universidade. «Tens o dinero?» «Não». Durante um tempo andou a vender bijutaria, «ganhava alguma coisa, mas não me parecia certo fazer as pessoas gastarem dinheiro em coisas fúteis…» Agora vende sapatos a prestações. Sim, a prestações: um par custa no mínimo 5 mil bolívares (à volta de 35 euros ao câmbio oficial), o salário de dois ou três meses, e quem os tem? Toda a dedicação e os sacrifícios de Carmina são pelo futuro dos filhos: por causa desta sua opção nem põe a hipótese duma operação à mama para tirar o fibroma que lhe descobriram. «Era preciso ter 36 mil bolívares». No entanto, impressiona a determinação e alegria desta mulher, cheia de vida e iniciativas num contexto que esmagaria um rinoceronte. «Tenho amigos que são Ojos de cielo voltados para mim».
Pedro, por sua vez, tem 25 anos e é músico: toca guitarra em orquestras e ensina música. Mora em Caracas, na zona Este, o Bronx da capital. Numa manhã de sexta-feira igual às outras, Pedro sai de casa sem saber que estão a começar os seus Três Dias do Condor ou, melhor dizendo, os seus três dias de paixão, inferno e ressurreição.
Primeiro dia, raiva. Foram convocadas duas manifestações opostas, chavistas e anti-chavistas. «Durante anos, governos e oposição transmitiram ao povo a ideia de que quem não é por ti é contra ti, um inimigo a odiar e se possível eliminar». As forças da ordem blindaram a área em redor da casa dele. A única passagem é uma rua controlada pela criminalidade. Pedro sente-se espumar. Pela via peligrosa consegue chegar à estação de metro: fechada. Não resta senão a estação seguinte, muito distante. Mais raiva. Passa o dia de trabalho, chega a hora do regresso: a estação certa continua fechada, as manifestações ainda decorrem. E Pedro vê-se bloqueado pela turba dos militantes chavistas, sem conseguir andar nem para um lado nem para o outro. Bem lhe apetecia insultar aqueles prepotentes, os guardas, os políticos, as entradas do metro, e o mundo inteiro.
Segundo dia. Pedro sai de casa e dirige-se para o metro. Umas centenas de metros e repara em três tipos estão a apontar para ele. «Jovens, de 18 anos ou menos», conta: «Caras de delinquentes». Os três abordam-no e exigem que lhes dê o dinheiro. Pedro desvia-se para desatar a correr a sete pés, mas nisto aparecem mais dois de reforço. «Eles cinco e eu sozinho. E a gente por ali como se nada fosse». Ele ainda tenta fugir, o chefe do bando apanha-o, agarrando-o pelo blusão. Por instantes os olhos de Pedro cruzam-se com os olhos do brutamontes: destilam ódio. Por fim consegue escapulir-se do blusão que o indivíduo tem preso e pôr-se a salvo. Mas aqueles olhos de ódio são como o espelho da sua mesma raiva do dia anterior. «Como é possível…», diz para si: «Eu que encontrei a realidade de Cristo e participo da sua amizade, como é possível eu ser tão loco e reagir com a mesma instintividade que domina toda a gente?» Escreve aos amigos, fala com o melhor amigo, don Aliprando, para ser ajudado a comparar o caminho cristão que está a fazer com a realidade, sem a adoçar. Com este propósito que não o deixa tranquilo, Pedro quer verificar como é que «através da circunstância o Mistério me constrói».
O caminho clarifica-se. Domingo: terceiro dia. Pedro está ocupado na preparação duma mostra sobre D. Giussani. O trabalho está a ser executado em casa dum amigo. Para lá chegar, mais uma vez vai de metro. Para comprar o bilhete, Pedro tem de ir levantar dinheiro ao multibanco. Mais uma vez há um tipo que o aborda, que o agarra por um braço, quer o dinheiro. Ele já aprendeu a maneira de se soltar, esgueira-se para o metro, respira fundo e, desta vez, surpreende-se diferente: «Como se fosse o homem mais calmo do mundo, não sentia nenhum ódio por aquele desgraçado», conta: «Estava desesperado por não saber como safar-se nesse mês».
Pedro começa a preparação da mostra, vão fazer ser precisas várias cadeiras, coisa que o ajudará a estar atento à experiência que vive. «Só Cristo pode curar a nossa alma do ódio e da raiva, e assim nós podemos levar a todos uma nova esperança. Não porque somos melhores que os outros». Mas porque Pedro é como São Pedro quando, ao Jesus que pouco antes havia negado, disse sincero «tu sabes que te amo».
Parece uma coisa de nada, na Venezuela, no meio do túnel que em que se discute fome, política e petróleo. Mas são luzes que se acendem. E irradiam luz à sua volta.