A Porta Santa

Esse abismo (graças a Deus) intransponível
entre a nossa justiça e a misericórdia

O Papa Francisco dedicará um jubileu extraordinário à misericórdia. Para ficarmos a conhecer melhor a nós próprios e ao Senhor
John Waters

Sem Deus não pode existir o perdão, porque sem uma medida absoluta o homem é incapaz de produzir um juízo imparcial. O homem está obcecado por um ânsia infinita de justiça, porém não sabe fazer mais do que criar sistemas que emitem sentenças caracterizadas pelo desejo de vingança, pelo sentimentalismo e pelo capricho. Só na mendicância é que o homem se pode libertar do peso do rancor e do ódio, incluindo o ódio a si mesmo.

Não se trata simplesmente de que devemos perdoar para chegar a uma solução prática das discussões e impedir o prolongamento dos conflitos. Devemos perdoar porque a alternativa é intoxicarmo-nos de ódio, sufocando na nossa dureza. Como alguém disse, a certa altura, mesmo nos ressentimentos mais antigos, alimentados pelo sofrimento e pela ira, quando se vislumbra o instante da reconciliação sucede-se um alívio que invade o corpo e a mente humana. E esse momento para mim só é possível quando me rendo à ideia de que também eu sou um pecador e que a minha redenção depende da leveza do meu coração.

A misericórdia é um dos temas principais do Pontificado do Papa Francisco. Há poucos dias anunciou um «Jubileu Extraordinário», um «Ano Santo da Misericórdia» que terá início em Dezembro, na solenidade da Imaculada Conceição.
Mas também sublinhou muito este tema no seu discurso ao Movimento de CL, a 17 de Março passado em Roma. «Só quem foi acariciado pela ternura da misericórdia», disse o Papa «conhece verdadeiramente o Senhor. […] E por isso, às vezes, vós ouvistes-me dizer que o lugar privilegiado do encontro com Jesus Cristo é o meu pecado. […] A moral cristã não é o esforço titânico, voluntarista de quem decide ser coerente e é bem sucedido, uma espécie de desafio solitário perante o mundo. Não! […] A moral cristã é uma resposta, é a resposta comovida a uma misericórdia surpreendente, imprevisível e, segundo os critérios humanos, até “injusta”, de Alguém que me conhece, conhece as minhas traições e que, no entanto, me ama, me estima, me abraça, me chama de novo, espera em mim, espera algo de mim. A moral cristã não consiste em nunca cair, mas em levantar-se sempre, graças à sua mão que nos resgata.»
Aqui o Papa tocou num ponto vital e inevitável, como frequentemente se demonstra no sector público quando o perdão fica como que bloqueado pela importância de grandes crimes. O homem pensa na “justiça” sobretudo em termos de castigo e pena, mas nada disto basta para o satisfazer. Existe, pois, um abismo entre a “justiça” tal como é concebida no âmbito civil e a justiça em sentido último. A “injustiça” que parece caracterizar o perdão incondicional oferecido pelo cristianismo atrai a nossa atenção para os limites da “misericórdia” terrena.

A misericórdia não se pode reduzir ao acto sentimental de “perdoar e esquecer”. A misericórdia só pode existir quando a pessoa está consciente da sua natureza de pecador. Isto permite-nos intuir a razão por que, na nossa luta terrena, não somos capazes de gerar misericórdia apenas com as nossas próprias forças, mas nos tornamos cada vez mais rígidos e punitivos porque não nos apercebemos da trave no nosso olho.
Recordando-nos o poder educativo dos nossos pecados, o Papa ajuda-nos a caminhar para a luz. A sua menção pode parecer paradoxal: o homem não pode crescer sem o pecado. É melhor o pecado perdoado do que a ausência de pecado, porque só o meu pecado me permite compreender a misericórdia.
O nosso mundo foge de uma misericórdia incondicional, rejeita-a como um meio para o malfeitor se subtrair ao juízo e à justa punição. Mas não há outra maneira de enfrentar o radicalismo de Cristo a não ser compreendendo esta “injustiça”.

Felizmente, como disse o Papa, a solução não está em nós e nos nossos esforços. A misericórdia é dom de Outro. Para nós só tem início aceitando a sua possibilidade, e depois permitindo a nós mesmos perdoar tanto a quem nos fez mal como a nós próprios. São estas as condições essenciais para que a graça possa chegar a nós.
Mesmo na origem do processo político mais técnico deve prevalecer esta compreensão da necessidade e do limite humano. A misericórdia acontece. A nós não é exigido gerá-la.