A estrada Lobito-Benguela

Aconteceu... em Benguela

O tempo faz mesmo a cama, como em todo o grande amor, porque foi necessário o caminho de cada um para que, neste preciso fim-de-semana de 21 a 22 de Março, começasse uma história de amizade de proporções inimagináveis
Matilde Dias

Voo às 9:45, Luanda-Benguela. Descola uns minutos antes, o que é raríssimo em voos domésticos de Angola. Em menos de uma hora estamos a aterrar no recente aeroporto da Catumbela, a meio caminho entre Benguela, diocese e capital da província com o mesmo nome, e o Lobito, cidade portuária.

Ao chegarmos, vemos estacionar o jipe branco do padre Adriano Ukwatchali, com quem apenas tínhamos conversado pelo telefone. De lá sai um homem alto, de jeans, com os braços abertos e um sorriso de quem vinha encontrar amigos há muito conhecidos e esperados: o Enrico, a Rosarinho e eu. Mochilas na mala, entramos no carro e, no mini ecrã ao pé da rádio, passava o «Estrada Bela», que o padre Adriano recebeu sem que nenhum de nós lho tivesse feito chegar antes. Afinal, tinha vivido 7 anos em Modena, conhecera o movimento, e também dom Giussani em pessoa, falava italiano perfeitamente, e repetia constantemente que os universitários de Benguela tinham de conhecer o CL e o modo como se vive a relação com a universidade, o mundo do trabalho, a família.

Primeira paragem: um dos pólos da universidade, onde inicialmente iria ser o encontro, mas que devido à chuva e ao facto de ser sábado era menos acessível aos alunos. Estacionamos, vemos salas, conhecemos professores. O padre Adriano conta-nos que depois de voltar de Itália (não só ele mas todos os sacerdotes da diocese são enviados pelo Bispo a estudar em Itália, Espanha, Portugal), foi para uma missão no interior, cheia de crianças e gente simples, onde era preciso construir a escola, o hospital, etc. E que quando o Bispo lhe pediu que viesse para o Lobito e liderasse a Pastoral Universitária, não queria vir porque queria estar com os simples, mas disse que sim «porque o Bispo se habituou a alguém que lhe diz sempre que sim, e eu digo que sim, porque um dia disse sim a Jesus, e agora não tenho como dizer não!»

A seguir, damos uma volta pelas zonas afectadas pelas chuvas do dia 11 de Março, que provocaram a morte a mais de 100 pessoas, tal foi a fúria das águas. Vemos muitas pessoas tristes e sem casa, e ao mesmo tempo uma onda de solidariedade e um inesperado desejo de reconstruir sem estar à espera dos apoios do governo ou do estrangeiro.
Depois, uma bebida refrescante, junto à praia, na Restinga, a antiga zona de habitação colonial, em que se pode sair de casa, dar uns passos e mergulhar no mar. Entretanto, o padre Adriano recebe mil telefonemas, liga a todos a dizer que há um encontro às 16h na universidade, pára o carro para cumprimentar paroquianos que passam, apresenta-nos a toda a gente. Ao almoço juntamo-nos em casa do padre Adriano com o padre Mário, com quem vive, mesmo em frente ao edifício provisório da Paróquia. Ficamos a saber que estão a construir a igreja definitiva, com o dinheiro do povo cristão. E que ainda só chegou para fazer as fundações e os pilares do primeiro piso. Falamos de língua e de literatura portuguesa e angolana, pois o padre Mário é professor e a Rosarinho também.

Corações em sobressalto. Um café rápido e lá vamos novamente de carro a Benguela, chamados pelo Bispo, D. Eugénio dal Corso, que nos quer conhecer. A Casa Episcopal é numa antiga casa, simples e austera. Condiz com a pessoa que encontramos, que pergunta a cada um nome e profissão e, ao mesmo tempo, mostra a Tracce sobre a mesa, o Educar é um risco e ainda O Sentido de Deus e o Homem Moderno: «É que aquela intuição de Giussani, quando diz que não está ali para que adoptem as suas ideias, mas para ensinar um método verdadeiro para ajuizar todas as coisas que serão ditas, é genial!», diz. E nós que, sem saber que iria dizer isto, tínhamos escolhido exactamente este texto para pôr no livrinho do encontro na universidade!

Já atrasados, mas com o padre Adriano tranquilo, dizendo que à hora marcada também não estaria ninguém, voltamos a fazer os 30km e chegamos ao outro pólo da Universidade Católica. Tínhamos pensado ver o filme da Estrada Bela e depois dar um pequeno testemunho, mas acabámos por não ver o filme e pedir, antes, que fizessem perguntas. Sala composta, com cerca de 20 pessoas, incluindo o Reitor da Universidade, Padre Amadeu Ngula. Cantamos «Aconteceu» e cada um fala. O Enrico conta que é italiano, engenheiro, casado e pai de uma filha. Que trabalha na Oil&Gas, e que pode afirmar que sem a experiência cristã seria hoje um engenheiro pior. Eu falo de como conheci o movimento aos 14 anos, e o porquê de nunca mais ter vindo embora. Porque encontrei e segui amigos que não têm vergonha de Cristo. E que a relação com Jesus não acontece através de milagres extraordinários, mas na vida de todos os dias, na maneira como se cuida da casa, como se trata o marido e os filhos. A Rosarinho conta que a certa altura da sua vida parecia estar tudo bem, curso acabado, namoro que viria a dar em casamento, convite para dar aulas, e no entanto faltava acontecer alguma coisa. E vai pela primeira vez a um encontro do CL, em que o Carras diz «eu não sigo Jesus porque Ele é bonzinho e amigo das pessoas, mas porque Ele é a verdade! E o nosso coração só se contenta com a verdade! Se alguém souber de uma pessoa que responda mais ao meu coração que Jesus, diga-me, que eu vou atrás dele!» Sem saber muito mais sobre aquelas pessoas, decidiu que queria ser uma delas.

Algumas perguntas sobre o movimento, Dom Giussani, a fé, e no fim o Reitor, depois de sintetizar o encontro com uma frase de cada um, conclui: «Não estamos na Católica para que vocês sejam todos católicos, mas porque vocês até podem ser engenheiros, doutores, professores, mas se não forem felizes não vale a pena. E que Jesus existe e por Ele vale a pena dar a vida, é o que estes amigos nos testemunharam!» A seguir ao encontro, corremos para missa das 18:30, na qual, em vez de fazer uma homilia, o padre Adriano nos faz testemunhar novamente. No fim vamos à sacristia, onde, sem sabermos (nem nós nem o padre Adriano), está o padre Boaventura, que é pároco noutra cidade de Angola (‘Ndalatando a 600km!), e que também já tinha falado com o centro do movimento em Roma, perguntando se haveria alguém do movimento cá. O nosso coração estava em sobressalto. Tudo isto ia acontecendo sem nossa mínima programação.

Ao jantar, uma bela garoupa na praia e muitas histórias de Itália, Portugal e Angola. Ficamos a saber que o padre Adriano é cidadão honorário da cidade de Modena por tudo o que fez durante os anos em que lá esteve e por ter mudado a maneira como se via a África! Descansamos num simpático hotel e, de manhã, novo testemunho na missa das 7:30. Missa cheia, belíssimos cantos africanos e muito entusiasmo. E chega a hora de ir para o aeroporto, pois o padre Adriano ainda tem às 11:00 a missa das universidades, à qual já não conseguimos ir.

Combinam-se no carro os próximos encontros e despedimo-nos de coração cheio. De coração cheio de Cristo, que se fez palpável nestas 24 intensas horas. O mais giro é que o tempo faz mesmo a cama, como em todo o grande amor, porque foi necessário o caminho de cada um para que, neste preciso fim-de-semana de 21 a 22 de Março, começasse uma história de amizade de proporções inimagináveis.

Matilde, Luanda

Fotos: Matilde Dias (grupo); Patrícia Araújo (paisagem retirada de pseudotudo.blogspot.pt)