A VERDADE DO PARADOXO
Homem do Norte, de carácter robusto e feito de uma peça só, Oliveira não perde nunca de vista o fascínio que a realidade, enquanto tal, exerce sobre o humano, e é sobretudo deste fascínio que nasce a sua fecundidade artística.Faz sentido que Manoel de Oliveira – o maior cineasta português, que completou 106 anos e fazia filmes há mais de 80 – tenha morrido em Quinta-Feira santa. Porque este é um dia belo, intenso e perturbador, marcado por aquele indefinível sentimento que cruza a alegria da festa com a dor da despedida, anunciando que o sacrifício é a lei da vida e que o amor se cumpre plenamente na eternidade. Oliveira foi assim: positivo e “faminto de vida” (como afirmou a sua musa, Leonor Silveira), encarando a vida como festa irrecusável (em que a refeição, precisamente, ganhava simbólico lugar de destaque, como se vê em tantos dos seus filmes), ao mesmo tempo que enfrentava com irónica lucidez o drama da existência, assumindo com coragem e entrega a sua dimensão de “dúvida” (que é a outra face da fé, enquanto permanente e indispensável decisão pessoal) e também de “derrota” (“nasce-se contra vontade e não se é senhor do seu destino“, ou seja, depende-se). Variadas vezes soube o cineasta confundir o seu público – nomeadamente com a interpretação mais completa e explícita que fez da História de Portugal, no filme Non, ou a Vã Glória de Mandar, em 1990 – ao afirmar que “as derrotas são mais ricas que as vitórias […]. A derrota chama o homem a si próprio”, já que o que vale “não é a conquista, mas a dádiva”.
Tanto a vida como a obra de Oliveira atestam este aspecto paradoxal do homem e do artista sempre em movimento, com uma força anímica invejável, uma intransigência absoluta em relação aos seus cânones artísticos e existenciais, uma indefectível esperança, e simultaneamente atravessado por uma dimensão sombria, por vezes mesmo crua, que o levou a fixar na película a brutalidade das relações humanas (A Caça, Os Canibais), a tentação, o mal e o pecado (Vale Abraão, A Caixa, O Convento, Belle Toujours), a impossibilidade de plenitude do amor humano (Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição, Francisca), a morte (A Caça, O Passado e o Presente, Retrato de Angélica). Vale a pena lembrar que Manoel de Oliveira, nascido em 1908, é estética e espiritualmente filho da geração que, entre os finais do século XIX e os inícios do século XX, une Camilo Castelo Branco a Eça de Queirós, passando por Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes e chegando, mais tarde, aos seus contemporâneos José Régio e a Agustina Bessa-Luís, de quem foi amigo pessoal. Apesar de todas as naturais diferenças, é possível identificar, nestes autores, um traço identitário comum, herdeiro desse Ultra-Romantismo profundamente místico e inquieto, mesmo quando se afirmava agnóstico ou não católico, quase sempre em luta com Deus, exprimindo-se frequentemente através de uma ironia rebelde ou sofrida, sinal de um desejo pessoal intenso e inalienável. Mas em Manoel de Oliveira esta posição de luta – que transparece no rigor formal, por vezes seco, das suas obras, nos temas escolhidos, num sentido de humor imprevisível, irónico e quase sarcástico – rende-se, de algum modo, a uma estrutura-base que o caracteriza. Homem do Norte, de carácter robusto e feito de uma peça só, Oliveira não perde nunca de vista o fascínio que a realidade, enquanto tal, exerce sobre o humano, e é sobretudo deste fascínio que nasce a sua fecundidade artística.
Diferentemente de outros cineastas para quem o cinema se torna “a” razão de existir, Oliveira reafirma a preponderância do real sobre a arte: “Amo profundamente o cinema porque amo profundamente a vida”; “o que há de mais concreto é o real. Por isso gosto do histórico”. A sua carreira inicia-se em 1931 com um espantoso documentário sobre o rio Douro (Douro, Faina Fluvial), que, na linha dos filmes dos anos 20 e 30 sobre capitais – como o de Walter Rutmann sobre Berlim ou o de Dziga Vertov sobre Moscovo – regista com interesse apaixonado a paisagem e a vida das gentes da zona ribeirinha do Porto, na sua luta quotidiana pela sobrevivência. É um específico olhar sobre o mundo que o filme documenta, um olhar que se deixa deslumbrar pela dignidade do mais ínfimo ser humano, sempre em acção, sempre em risco, sempre desejoso de amar. Várias das suas curtas-metragens testemunham este gosto pela existência e pelo humano, desde o extraordinário e angustiante A Caça (1964) até ao despretensioso documentário O Pão (1966). Tal interesse irá, aos poucos, assumir uma forma cada vez mais precisa, que redundará na construção de uma leitura da história de Portugal no contexto europeu, como acontece com o já citado Non e também com Um Filme Falado (2003), O Quinto Império – Ontem como hoje (2004), Cristóvão Colombo – O Enigma (2007), Painéis de S. Vicente de Fora – Visão Poética (2010) e O Velho do Restelo (2014). Ao mesmo tempo, o amor de Oliveira pela literatura será uma das mais sólidas âncoras do seu cinema, através do peso dado à palavra como geradora de vida e de movimento, inspirando, entre outros, alguns dos seus maiores filmes: Amor de Perdição (1978), Francisca (1981), Le Soulier de Satin (1985), Vale Abraão (1993), sem esquecer também os recentes Singularidades de uma Rapariga Loura (2009) e O Gebo e a Sombra (2012).
Negativamente marcado pela estreia, na televisão, do seu longo Amor de Perdição – um filme cuja estética não pactua com a gramática televisiva, exigindo a dimensão do grande ecrã e a condição silenciosa da sala de cinema – o público português teve, em geral, muita dificuldade em dar nova oportunidade ao cineasta, sem se aperceber de que, apesar de Oliveira não ter abdicado um milímetro do seu estilo pessoalíssimo, a sua produção é de grande diversidade temática e formal e a duração média dos filmes dos últimos 20 anos ronda uma hora e meia. Entre a redução do cinema a mera forma de entretenimento – esquecendo a sua possível expressão artística – e a exigência de uma atenção incompatível com a rapidez e a pressa do nosso quotidiano, a obra de Manoel de Oliveira ficou, para muitos, remetida para o domínio frio e longínquo do “intelectualizante”. Mas vale a pena desafiar os que lhe pretendam dar segunda hipótese a verem a força e a beleza contidas em obras como Douro, Faina Fluvial, Acto da Primavera (1963), A Caça, O Dia do Desespero (1992), Vale Abraão, Belle Toujours (2006) ou o fascínio e a surpresa que encerram, por exemplo, as menos “exigentes” Vou para Casa (2001), Singularidades de Uma Rapariga Loura (2009), O Gebo e a Sombra (2012). Para além da necessária disponibilidade interior – sabendo que, como dizia Simone Weil, a atenção repugna tanto à alma quanto a fadiga à carne – é importante a aceitação de uma estética que recusa deliberadamente o naturalismo realista. Oliveira repete sempre que o seu propósito é “representar” a realidade e não “simulá-la”, e que o cinema não coincide com a realidade, mas sim com a sua encenação, já que só esta é capaz de penetrar no real. “O teatro é uma síntese de todas as artes”, afirma o cineasta, “e assim também o cinema, com a capacidade suplementar da fixação”. Daí a necessidade de uma permanente ascese artística: do cinema como fixação do teatro no tempo, como resgate do momento, deve transparecer o real, mas “este cinema da transparência é de facto aquele que é mais manipulado, mais sofisticado. Diria mais ‘artístico’”.
Sendo de uma extensão invulgar, a obra de Oliveira é indubitavelmente vária, e variada é também a qualidade de cada um dos seus filmes. Mas de todos eles se desprende a persuasão de um olhar que quer ver até ao fundo, colher o invisível – não para o “explicar”, o que seria um absurdo contra-senso, mas sim para o iluminar, de forma a constatar a sua presença, com maravilhamento e até veneração. Homem de fé perseguido pela dúvida, como gostava de se definir, Manoel de Oliveira arriscou exprimir o drama da relação amorosa, ele que esteve fielmente casado 75 anos; arriscou exprimir o desespero, ele que, diante de Bento XVI, fez suas as palavras do padre António Vieira, afirmando que o homem “caminha na esperança, apesar de todos os negativismos”; arriscou exprimir tantas vezes a morte, ele que de tanto amar a vida, foi abençoado com esse generoso “capricho da natureza” que lhe permitiu “ver os filhos dos filhos dos seus filhos”. No seu cinema foi crescendo a ânsia de gritar aos homens que não percam a sua humanidade e que abram os olhos ao mistério de que as coisas são feitas. Por ser a sua vida – plena de trabalho e vitalidade, vontade íntegra, atenção ao outro, delicadeza, simplicidade e humor – a afirmação mais convincente daquilo que a sua obra exprime, tantos, mesmo desconhecedores da sua obra, se lhe referem com afeição. Naquilo que fez e foi, Oliveira uniu. Sendo português, é universal. Por isso apetece voltar a Vieira e dizer: “Para nascer, Portugal; para morrer, o mundo”.
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