Carlos I de Habsburgo: o último imperador
A figura fascinante e intensa de um homem que não queria nem o trono nem a guerra. Mas foi forçado a atravessar ambas as coisas. História do último Imperador católico, beatificado no dia 3 de Outubro de 2004 por João Paulo II.“Um amigo da paz” como foi definido pelo Papa no dia da sua beatificação. Carlos de Habsburgo, o último imperador católico da história moderna, tornou-se oficialmente bem-aventurado exactamente enquanto o mundo está ainda atravessado por guerras, atentados, destruições. Com ele, esclareceram no Vaticano, não se quis santificar um determinado sistema político, ainda que fosse do passado, mas sim o homem, a pessoa. E este Imperador foi realmente uma pessoa fascinante e intensa, que não ambicionava o trono, que não queria a guerra (o único que seguiu Bento XV, o qual pedia para parar “a inútil matança”), a Primeira Grande Guerra na qual é envolvido todo o mundo. Um homem de paz radical, um obstinado seguidor de Jesus Cristo, que recusava os privilégios da corte e a quem não interessavam a etiqueta nem o aplauso do mundo. Um personagem até historicamente trágico, que regeu os últimos meses de um grande Império multicultural e federalista que si estendia do Adriático ao centro da Europa. Personalidade fora dos padrões e difícil de narrar e, no entanto, protagonista de um período fascinante e terrível para os historiadores, e não só. Basta ler uma das poesias de Ungaretti dedicadas à vida na trincheira, ou o esplêndido Um ano no Planalto de Emílio Lussu ou as cartas do fronte de Winston Churchill, que também inventou e ajustou naqueles meses o tanque de combate, formidável máquina da guerra moderna para destruir o inimigo. Pois bem, Carlos subiu ao trono aos vinte e nove anos, com o conflito já iniciado, quando aquela terrível Primeira Grande Guerra de massas, um massacre sem precedentes, “a inútil matança”, tinha começado e era imparável. Ele tentará opor-se-lhe com todas as suas forças e todos os seus actos, até pagar pessoalmente com o exílio e a morte. Eis, portanto, o primeiro paradoxo desta beatificação: é proclamado beato o último Imperador católico não porque tivesse vencido, pois pela história já dissemos que é um perdedor, mas porque deu testemunho até o fim da vida. Giuseppe Dalla Torre, que escreveu na década de Setenta um “retrato espiritual” dele recentemente reeditado (Carlos d’Áustria, Ed. Âncora), narra um episódio elucidativo. A quem lhe observava que distribuir mantimentos e bens da corte aos cidadãos em tempo de guerra não o faria ser popular, respondeu: “Eu seria realmente muito miserável se fizesse tudo isto somente para obter gratidão e aprovação. O bom Deus, por quem o faço, me recompensará muito abundantemente depois, qualquer dia, por tudo isto. Para que tenho eu necessidade agora já da aprovação deles?”.
Descendente quase esquecido
A sua vida até então é a história de um descendente quase esquecido de uma grande família real europeia, que teve a sorte de ter mestres católicos e uma esposa de grande fidelidade e realismo. Nasceu à beira do Danúbio em 1887, estudou línguas, arte militar, direito em Praga. Em 1911 casou com Zita dos Bourbons de Parma, que lhe dará oito filos; o último nascerá após a morte de Carlos. Zita, italiana de origem e francesa por cultura, sobreviveu até a década de Oitenta, guardando a memória de um esposo santo e, sob certos aspectos, mártir do mesmo poder que também havia exercido. O historiador Gordon Brook-Sheperd (em Itália foi publicada A tragédia dos últimos Habsburgos, de sua autoria) foi quem mais longamente usufruiu das suas narrações vívidas.
O assassínio do tio Francisco Ferdinando em Sarajevo abre de facto em 1914 o período bélico, a morte do tio-avô Francisco José dois anos depois marca a inesperada subida ao trono de Carlos I de Habsburgo. O jovem e catolicíssimo rei herdou um vasto Império em franco declínio: a Providência preparou-lhe meses duríssimos. Ele, como soldado, vai frequentemente à frente de batalha, ajuda os feridos, expõe-se pelas tropas, manda celebrar missas perante a reprovação do círculo da corte. Quer a paz e move-se política e diplomaticamente nesse sentido, com obstinação. Trabalha também numa negociação à parte com a França e numa tentativa secreta orientada pelo cunhado, o príncipe Sixto de Bourbon Parma. Mas a máquina da história criou algo monstruoso.
A vitória a todo o custo
Escreve François Fejtö no seu fundamental Requiem por um Império Defunto: “No decorrer da guerra - que esbarrou mais de uma vez em pontos mortos, dos quais tradicionalmente se saía com a negociação ou com o acordo - apresentou-se uma ideia inédita: a da vitória total a todo o custo. Tratava-se já não de forçar o inimigo a ceder, a retroceder, mas de lhe infligir feridas incuráveis; não já humilhá-lo, mas destruí-lo. Este conceito da vitória total condenava a priori ao fracasso qualquer tentativa razoável de pôr fim, com um acordo, a um inútil massacre. Mudou a guerra não só “quantitativamente”, mas também, para usar o conceito hegeliano, qualitativamente (…). Havia um tom quase místico. Era ideologia. Consistia em diabolizar o inimigo, fazer da guerra de poder uma guerra metafísica, uma luta entre o Bem e o Mal, uma cruzada”. Descrição perfeita que ilustra uma entrada no diário de Augusto del Noce sobre aquele período, deixado inacabado entre seus papéis: «A recusa da cumplicidade com o mal coincidiu para mim com a “fuga sem fim” diante daquilo que me se me afigurava como mal, a progressiva destruição do que restava do Sacrum Imperium. A fidelidade ao compromisso de Agosto de 1916 antes de eu iniciar a escola».
Recusa do acordo
A ideia deveras diabólica da recusa do acordo, da vitória do Bem sobre o Mal, encontra o seu objectivo no Império Habsburgo. Carlos é a vítima de uma cruzada ideológica e até mística. Eis o segundo paradoxo da sua santa e terrível existência: o Imperador católico é derrotado não por uma obstinação nos “valores católicos” mas porque quer o acordo. Entretanto hoje a história e os próprios acontecimentos pessoais de Carlos testemunham como era verdade que o progresso, as reformas, os princípios democráticos estavam presentes em Viena mais que noutros lugares. Basta dizer que naquela época as mulheres austríacas votavam, as italianas não. É lembrada ainda, de Carlos I, a grande amnistia de 1917, decretada para favorecer a pacificação social, e a criação do Ministério da Saúde e o da Acção Social (os primeiros na Europa). Contudo, como escreve Alain Besançon, é um facto que “as democracias, uma vez que se permite que entrem em guerra, são ferozes, porque elas pensam ter absolutamente razão e que os próprios adversários estão absolutamente errados”. A história, como se vê, repete-se de maneira impressionante.
A armadilha contra Carlos é desencadeada pelo seu ministro do Exterior Ottokar Czernin, nomeado em 1916. Logo após uma vitória contra a Itália em Caporetto, no ano de 1918, na alternância dos episódios de guerra, há um momento positivo para Viena. O Imperador leva avante o projecto de um acordo com os franceses, conforme era desejo do Papa. É Czernin quem revela ao mundo, na hora em que a paz tecida por Carlos parece finalmente possível, que a França de Clemenceau pedira o armistício. Não é verdade e isso basta para irritar Paris e mandar tudo pelos ares: destruir o Imperador aos olhos das potências, acima de tudo a Alemanha. O Kaiser Guilherme não renunciou ainda ao sonho da expansão prussiana (Hitler irá recolher esta herança), e exigirá a humilhação da Áustria- Hungria. A Revolução Russa fará o resto, oferecendo aos cidadãos da Boémia e da Hungria a bandeira do resgate nacional contra a monarquia. Escreveu John W. Mason em O Ocaso do Império dos Habsburgos: “Se o governo absolutista dos czares podia ser destruído com tanta facilidade, que garantias tinha o sistema absolutista na Áustria?”.
Fim da guerra, exílio e morte
O fim da guerra virá de repente, mas a energia de inimigos e aliados explode toda contra Viena. No final de 1918 Carlos assina a Paz de 4 de Novembro, após o revés do rio Piave na Itália, que o obriga a uma pesada deslegitimação. Os acontecimentos de sua vida pessoal complicam-se com uma doença que lhe ataca o coração (a famosa epidemia de “espanhola” que faz quase tantos mortos como o conflito) e um progressivo exílio que coincide com o fim da monarquia Habsburgo. Permanece até ao fim da sua vida na ilha da Madeira, onde veio a morrer de pneumonia a 1 de Abril de 1922, pronunciando o nome de Jesus. Ali está sepultado na Igreja Nossa Senhora do Monte.
Anos mais tarde, reflectindo sobre o papel deste Imperador, o socialista radical francês Anatole France dirá acerca de Carlos: “É o único homem decente revelado durante a guerra num cargo directivo; mas não foi ouvido. Ele desejou sinceramente a paz, e por isto foi desprezado por todo o mundo. Perdeu-se uma grande oportunidade”.