ÉBOLA: O DIA SEGUINTE

Até hoje fez mais de 6 mil mortos. Quase 17 mil infectados. Mas o que agora preocupa é o “depois”. A epidemia que alarmou o mundo, vista por quem ficou junto da sua gente.
Alessandra Stoppa

Padre Maurizio Boa, missionário em Freetown há quase vinte anos, não esperava que chegasse algo tão terrível quanto a guerra. «O vírus alterou as relações sociais».

Certas aldeias estão ligadas por pequenos caminhos no capim, por onde se anda em fila indiana. Aminata, dez anos, está parada no meio da passagem, enquanto o pai lhe põe a lenha sobre a cabeça. Carrega, carrega. Carrega ainda. «Basta, não vês que a menina não aguenta mais?», irrompe o missionário que assiste à cena. Mas ela, debaixo do pesado feixe, com um sorriso: «É meu pai. Sabe quanto consigo levar».
O padre Maurizio Boa pensa sempre na lição daquela menina quando vê a sua gente aceitar uma vida que aqui, na Serra Leoa, não alivia a carga a ninguém. O missionário da Congregação de S. José, há dezoito anos em Freetown, não esperava chegasse algo tão terrível quanto que não fosse a guerra. A Serra Leoa ultrapassou a Libéria em número de infectados com Ébola: com 7.798 casos, é o país mais atingido da África ocidental, segundo o boletim da oms (os contágios totais são 17.834, os mortos 6.346).
«Agora a situação está sob controlo, está a melhorar, também porque nasceram bastantes centros para doentes», diz o padre Maurizio: «O verdadeiro problema vai ser o pós-Ébola. Já antes não havia trabalho, agora nas ruas multiplicaram-se os miúdos que abordam os carros para vender água ou bananas». Nestes meses, minas e fábricas pararam e os preços dispararam, nesta terra riquíssima em recursos, em que 75% das pessoas vive com um dólar por dia. O pós-Ébola são também os muitos órfãos a recuperar e educar, as viúvas com crianças pequenas e, sobretudo, o trauma que o vírus provocou nas relações: «A epidemia alterou o tecido social». Olha-se com medo e desconfiança para o amigo, o vizinho. Já ninguém se abraça. Na missa, na saudação da paz acenam com a cabeça. «Nestes meses o silvo contínuo das ambulâncias dizia-nos que a morte nos rodeava». Porque «o inimigo» é invisível, não se sente, não se vê quando chega.

O grito de Jenku Sesay. A comunidade do padre Maurizio é a de Waterloo e das aldeias vizinhas, a uma hora e meia da capital, aonde nunca deixou de ir todos os dias. Mesmo quando os corpos dos primeiros mortos, segundo os ritos tradicionais, eram lavados e a água aspergida sobre os familiares. Aí começou a mortandade. Permanece vivo o choque de 21 de Setembro, quando foram encontrados 45 cadáveres num dia. Cedo deixaram de bastar as vagas nos poucos centros de saúde que ficaram abertos: os doentes estavam no chão ao ar livre, à chuva. A maior parte morria em casa, com medo de serem rejeitados e pelos boatos de que os médicos davam injecções letais.
Só agora os doentes vêm a descoberto. Recuperaram a confiança, vendo que há que se cure pela proximidade da Igreja e de tantas ONG que não desistiram de acompanhar, informar, apoiar. Desde aquele 21 de Setembro, nasceu na comunidade uma task force voluntária para ir às casas. «Agora com a Emergency preparámos mais de 90 pessoas que vão, família a família, pelas aldeias de Kissy Town (22.500 pessoas) e de Morabie (12 mil)». Controlam a situação, tranquilizam as pessoas e fazem uma triagem, porque há confusão e os sintomas de malária, de tifo, ou simplesmente os enjoos de uma gravidez são tomados por Ébola. Muitas pessoas estão ainda fechadas em casa, de quarentena, e precisam que alguém lhes leve o necessário para sobreviver. As escolas por enquanto permanecem fechadas. «Os onze anos de guerra foram terríveis, mas sabia-se mais ou menos o que fazer. Diante do Ébola, não. Quando as crianças lhe saltam para o colo, o que faz?». Ele abraça-as. «São os meus filhos».
Chegou em 1996, aos 52 anos. Mas com a cabeça e o coração está aqui desde 1980. Afeiçoou-se à Serra Leoa quando ainda a missão não tinha nascido: pároco em Pádua e depois em Viterbo, envolvia os fiéis e os jovens na recolha de fundos para a primeira pick-up vermelha para mandar para lá. «Eram oportunidades para formar missionários no coração e sentir-nos ligados aos nossos amigos que já cá estavam». Assim que aterrou não teve tempo de planear o que fazer e como viver: a guerra já havia decidido por ele. «Caritas Christi urget nos. E, se não agora, quando?». Foi a pergunta fulgurante a que teve de responder quando Jenku Sesay entrou na igreja desesperado: «I can’t piss myself». Sem mãos, procurava ajuda para ir à casa de banho.
Para onde quer que se voltasse, o padre Maurizio encontrava pela frente aqueles cotos erguidos para não sangrar. Jovens e crianças mutilados pelas catanas dos rebeldes. «Tinham um olhar apagado e suplicante, perguntando: e agora o que havemos de fazer?». Desde então dedicou-se a eles: durante a guerra, com ajuda de muitas associações, abriu três casas-família onde acolheu os jovens, depois os poços, os projectos para as mães e as crianças subnutridas, para a alfabetização de adultos, para os cegos, a escola. Ao longo destes anos viu os seus primeiros jovens seguirem para a universidade, foi raptado pelo rebeldes e espancado por soldados nigerianos, abriu o Centro de Saúde Comunitário São José em Kissy Low Coast, nos arredores da capital. Aqui, onde tudo se torna letal, mesmo uma bronquite ou desidratação: uma criança em cada quatro morre antes dos 5 anos. Na pequena aldeia de Kent, um triângulo de terra no litoral, nasceu uma associação de 24 jovens pescadores: tinham canoas como cascas de noz, hoje têm 6 barcos, 6 motores e 6 redes. E uma câmara frigorífica onde conservar o peixe. Pensa com a mesma alegria que sentiu, centenas de vezes, ao entregar a amputados de guerra as chaves de uma casa de tijolo para eles (há 7 mil mutilados no país).

Os trabalhos de Sidimba. «Nunca me cansarei de agradecer ao Senhor por me ter dado a companhia desta gente. A felicidade está toda neles e por eles. E partilham-na contigo até te fazerem sentir em comunhão com Deus». Não tem nada a acrescentar sobre a sua vida aqui. Quando estalou a epidemia, o pensamento de voltar nem lhe passou pela cabeça. Ficou pela família de Nakama: eram dez em casa e agora são dois. Pelo pai de Usman, que continua a trabalhar no duro pela comunidade mesmo após o Ebola lhe ter levado o filho. Ficou pela Winnifred, uma jovem mulher que nestes meses correu por toda a parte a ajudar, assistir, cuidar. Ou pela Sidimba, de 9 anos, que só tem um braço. «Vales menos que uma cabra», dissera-lhe o pai quando a largou nos seus braços. «Aprendi tanto com ela, que nunca foi à escola e começou por fazer os trabalhos de casa no meu escritório». Encostava a cabeça à folha para escrever e, quando se enganava, tentava apagar mas não conseguia. Atirava o caderno ao chão, ajoelhava-se em cima dele e apagava. Se a folha se rasgava, chorando, recomeçava do princípio.
«Aqui temos uma necessidade: viver a presença de Deus. Vejo isso nas pessoas que dão a própria vida, como Jesus. Não apenas os médicos e enfermeiros, ou quem morreu por tratar outros. Quantos gestos concretos de amor vejo, todos os dias! E não gestos feitos por dinheiro, nem só por profissionalismo. Dentro têm sempre algo de religioso». As pessoas nunca deixaram de vir à igreja rezar. «É por nós próprios que o fazemos: temos necessidade de sentir Deus perto de nós, de pedir que tudo isto não passe em vão. Como a criança a chamar pela mãe: sabe bem que ela está, está ali, mas chama por ela, chama por ela. Precisa de sentir a sua carícia».
A igreja de Cristo Rei em Waterloo é uma pequena comunidade católica no meio de um mar de muçulmanos. «A maior comoção para mim é quando alguém recebe o Baptismo. Quem mo pede é porque conheceu Jesus». Sobretudo nestes últimos meses, atravessou o desconforto que se converte em oração e uma impotência que aflige muito. «Sou sacerdote. Não o sou unicamente quando rezo ou prego, sou sempre, vislumbro o empenho da minha consagração ao deixar-me envolver com os meus pobres. Tenho só um anúncio a oferecer: a vida plena, a certeza dum amor que não desilude. Mas oferecê-lo a que não tem nada, sem lhe dar educação, alimento ou medicamento, é vazio. E tenho permanente necessidade da comunhão com Jesus: sem Ele depressa me fartaria e largaria tudo». Por vezes escapa-lhe dizer: «Money free to nobody». Dinheiro grátis para ninguém. «É a tentativa absurda de pôr uma distância entre mim e a necessidade do outro. Posso justificar-me dizendo que alguém me está a aldrabar. Mas é a vida deles que me diz a verdade. É o meu coração diante do juízo final: “Tive fome, tive sede...”».

A colher. Para ele, sem um pobre por amigo a vida não pode ser significativa. «Por amigo. É muito diferente ouvir dizer: “Tu fazes tanto por mim”, ou ouvir dizer: “Tu gostas de mim”». Certo dia, na casa-família, estão a comer o habitual mix de arroz, folhas de mandioca e peixe. Pela primeira vez há um único prato em comum, o padre Maurizio não tem um para si. As crianças comem com as mãos, só ele tem uma colher. «Um por um, puseram-se de boca aberta para eu lhes dar de comer. Fiz isso com todos e, depois, houve como que um instante de expectativa. Mas depois percebi...» Ao verem que come com a mesma colher, de repente uma delas diz: «Ele gosta de nós». «Aquela frase não era para mim, e não era suposto eu ter ouvido. Mas fez-me perceber que, para além da ajuda e do sustento, eles buscam a certeza do amor».
Todos os anos o padre Maurizio aguarda o relatório da onu sobre o desenvolvimento humano. A Serra Leoa está invariavelmente no fim. Assim como o da unicef sobre a infância. E hoje em dia, depois do vírus mais grave dos últimos quarenta anos, está de rastos. «Quando os peixes choram ninguém vê as suas lágrimas», diz um provérbio africano que lhe vem à memória diante das classificações. «Nós somos os últimos em tudo. É verdade. Mas quando recitamos o Pai Nosso, sentimo-nos os primeiros. Para Alguém somos os primeiros».