É O EGIPTO COM QUE SONHAVAM?

Os jovens da Praça Tahrir que continuam a fazer «pressão», o receio duma guerra civil, as tensões entre os poderes. No quarto aniversário da revolução, o politólogo Tewfik Aclimandos fala do seu país, que parece ter entrado num cone de sombra
Luca Fiore

Que é feito da revolução da praça Tahrir? E do Cairo? Capital cultural do mundo árabe, continuará sendo esse laboratório político onde se busca a via da democracia para os países de maioria muçulmana? Passaram quatro anos desde os dias quentes que marcaram o fim dos trinta anos do regime de Hosni Mubarak. Igualmente quente foi o Agosto de 2013 quando, sempre na praça central do Cairo, milhões de pessoas pediram e obtiveram a destituição do primeiro presidente islamista da história egípcia, Muhammad Morsi. E agora? O que faz um general na liderança do Egipto? Que intenções tem este Abd al-Fattah al-Sisi, eleito com um resultado “búlgaro” há apenas seis meses? Após a sua eleição, para os media internacionais o país entrou num cone de sombra. Entretanto, os tribunais egípcios absolveram Mubarak da acusação de ter disparado sobre a multidão (foram mais de oitocentas as vítimas da revolução) e emitiram condenações à morte, às centenas de cada vez, para os membros da Irmandade Muçulmana. Será este o Egipto com que sonhavam os jovens da Praça Tahrir? A pergunta é simples, mas a resposta pode ser complicada. É-o para Tewfik Aclimandos, investigador do Centre d’Études et de Documentation Économiques, Juridiques et Sociales do Cairo e do Collège de France de Paris, que olha para o seu país e vê um emaranhado de contradições.

Que país é hoje o Egipto?
No poder está um regime autoritário que goza de grande apoio popular. Al-Sisi tem de enfrentar dois grandes desafios: o da economia e a da segurança interna. Mas o que dificulta a resolução destes dois problemas são as relações complicadas com a classe política e com a liderança económica. Até agora o regime mostrou competência na frente da política económica e fiscal, mas muitos, embora aprovando as decisões individuais, estão preocupados pelo modo como são tomadas.

Em que sentido?
Diz-se que o general Al-Sisi, antes de tomar decisões, consulta todas as partes. Na realidade é sabido que os decisores são quatro ou cinco e pertencem ao mundo do exército.

Como se explica o grande apoio popular?
A gente sabe que não existe uma alternativa real. E isso dá uma ampla margem de manobra ao Presidente. Haveria a Irmandade Muçulmana, mas as pessoas já não querem saber dela. Os egípcios vêem o que está a acontecer na Líbia, Palestina, Síria, Iraque, Sudão, Bahrein. Todos temem uma guerra civil e os militares representam uma garantia dum Estado forte, capaz de manter a paz interna. Não sabemos, porém, se este consenso está para durar.

Como interpreta a sentença de absolvição para Mubarak?
Os juízes não tinham elementos para o condenar. Não estou a defendê-lo mas a magistratura é que não fez bem o seu trabalho, até porque não foi ajudada pelos serviços de segurança e da polícia. Estou convencido que Al-Sisi não está satisfeito com a absolvição, porque se Mubarak estiver inocente, o actual regime é ilegítimo. A sentença deste processo não pode ser lido na perspectiva da relação entre o velho e o novo regime, mas no contexto das relações internas ao mundo árabe. Os países do Golfo não queriam ver o Rais acabar os seus dias na prisão. Mubarak apoiou-os muitas vezes no passado, como quando apoiou a guerra para libertar Kuwait da invasão de Saddam. E hoje as ajudas económicas que chegam do Golfo são muito importantes para o Egipto.

Outra coisa pouco compreensível são as condenações à morte de centenas de membros da Irmandade Muçulmana.
É preciso ter presentes duas coisas: o sistema judicial egípcio e a influência de Al-Sisi sobre ele. Em primeiro lugar, no Egipto uma pessoa que é processada por contumácia, se for culpada, obtém automaticamente a pena máxima. E não só: caso a pessoa condenada se constituísse, a sentença de morte não é executada, mas o condenado tem direito a outro processo. Disto isto, a pena de morte é uma condenação injusta em si mesma, mas isso não significa que os imputados estivessem inocentes. Muitos membros da Irmandade Muçulmana cometeram crimes muito graves e é justo que respondam por isso.

Não houve pressão da parte do Presidente?
A verdade é que Al-Sisi não controla a magistratura. Sucedeu que a condenação à morte de quinhentos membros da Irmandade Muçulmana ter sido emitida quando o presidente e o ministro dos Negócios Estrangeiros se encontravam em Washington para negociações. Se Al-Sisi tivesse tido alguma influência sobre os juízes teria arranjado forma de que a sentença fosse emitida na sua presença. O ponto é que a magistratura está em debandada. Gostava de dizer isto dum modo menos drástico, mas a minha ideia é que os juízes se estão a vingar da Irmandade Muçulmana. Isto porque o Governo de Morsi tinha tentado desfazer-se dos juízes, em certos casos tentando processá-los. Mas também houve casos de violência física contra eles. As milícias ligadas à Irmandade Muçulmana chegaram a ameaçar com armas juízes do Tribunal Constitucional. Actualmente a justiça egípcia não é neutral relativamente à Irmandade Muçulmana. Mais uma vez: com isto não quero dizer que no processo houvesse inocentes.

É pensável um regresso da Irmandade Muçulmana à cena politica?
Não com a actual liderança, que tem responsabilidades gravíssimas por quanto fez o Governo de Morsi. O Egipto está a passar uma fase muito difícil e os chefes da Irmandade Muçulmana não tencionam negociar. Porquê? O povo deu luz verde ao exército para depor Morsi e perseguir os chefes da Irmandade. Houve um momento em que Al-Sisi pediu explicitamente ao povo para lhe dar apoio na luta contra os «terroristas». Por isso os Irmãos que estão não só contra o Governo mas também contra a opinião pública. Mas seria muito interessante que participassem nas eleições.

Porquê?
Poderíamos medir o apoio efectivo que detêm junto da população. Na primeira volta das eleições presidenciais de 2012, o Partido Liberdade e Justiça obteve 24 por cento. Era um bom resultado, mas não era nem metade nem um terço da população. Quanto teriam agora? Penso que muito menos. Mas a questão é que a condição para voltar é que ponham fim aos actos de violência e que os seus chefes sejam processados. Mas isto não vai acontecer.

Os ideais da revolução da Praça Tahrir foram traídos?
O que sucedeu em 2011 não será esquecido. Os egípcios depuseram dois chefes de Estado em três anos e sabem que o poderiam fazer de novo. Hoje há uma cultura política que antes não existia. As pessoas olham com atenção para o que vai acontecendo.

Onde se apercebe disso?
As pessoas foram votar a nova Constituição, Al-Sisi foi eleito por mais de 25 milhões de egípcios, números impensáveis no tempo de Mubarak, actualmente há um grande consenso sobre a ampliação do Canal de Suez. Por outro lado, os jovens que encheram a Praça Tahrir em 2011 e 2013 ainda continuam e fazem pressão junto do Presidente. As verdadeiras ameaças ao regime de Al-Sisi são a velha elite ligada a Mubarak e estes jovens revolucionários. Com a primeira é possível negociar, mas não há grande necessidade de fazê-lo, ao passo que com os segundos seria preciso estabelecer pactos mas, para os revolucionários, Al-Sisi devia simplesmente ir-se embora. São os jovens licenciados da classe média do Cairo e de Alexandria. Os pobres, mesmo que licenciados, estão com o Presidente porque estão mais preocupados em arranjar emprego.

Porque é que os revolucionários são uma ameaça?
A nível eleitoral não contam muito, até porque não têm um programa político claro. Mas demonstraram ter força para encher as praças. Poderiam fazê-lo novamente.

Como se tem movido o Presidente na política externa?
Procura alianças regionais com a Arábia Saudita, os países do Golfo e a Argélia. Partilha com estes países o ponto de vista sobre quase todos os temas, à parte a Síria. A Al-Sisi interessa manter boas relações com os Estados Unidos, mas deseja ter outras opções. Também porque os presidentes norte-americanos, de Bill Clinton em diante, não se mostraram capazes de entender os problemas da região. Por isso é que no Cairo se começa a olhar também para Moscovo e Pequim.

Qual é a situação dos cristãos egípcios hoje?
Melhorou muito comparativamente à fase do Governo de Morsi. Os conflitos confessionais diminuíram e as agressões aos cristãos estão reduzidas ao mínimo. Mas as descriminações continuam a existir e os conflitos poderiam voltar a explodir.

Quais são os problemas?
Por um lado há a dificuldade na autorização para a construção de novas igrejas. As licenças são concedidas muito lentamente e os cristãos tendem a não esperar. Isso suscita a reacção, por vezes violenta, dos muçulmanos. O outro problema são as relações e os casamentos entre muçulmanos e cristãos. Mas em relação a isso pouco há a fazer, é difícil impedir os jovens de se apaixonarem entre eles... Quanto ao resto, o novo Patriarca copta ortodoxo Tawadros tem-se vindo a revelar uma figura positiva. Todos reconhecem que é uma pessoa aberta. E isso está a contribuir para as boas relações entre as comunidades.