NÃO RESPONDER AO VAZIO COM O VAZIO.
O atentado no primeiro dia dos saldos. O medo que domina todos e os muitos slogans. Perante a consternação, o desafio do facto cristão: «De quem esperamos a salvação?». O contributo dum professor que vive de perto os acontecimentos de ParisQuarta-feira, 7 de Janeiro, dia do atentado ao jornal Charlie Hebdo, era também o primeiro dia dos saldos. Em Paris isso significa a presença duma multidão infernal nos quartiers do centro. Um caos “programado”.
Saí do metro, num destes bairros, e vi materializar-se o vazio. Quase ninguém nas ruas, nenhum ruído, pouquíssimos carros. O medo era fisicamente palpável em tudo aquilo que poucas horas antes se tinha de viver no exagero frenético das compras. Pensei no começo do Apocalipse e disse para mim: «O princípio será assim».
“Vazio” é a palavra que melhor descreve a primeira sensação do que aconteceu. Tudo está como sempre, como dantes. Mas tudo parece estar vazio. Foi perpetrado um massacre em nome não sei de quem nem do quê. O efeito criado é o vazio humano: não mais poder comunicar, mover-se, criticar. Acaba-se morto.
Dizem que os carniceiros são uns “bárbaros”. Mas os bárbaros verdadeiros eram atraídos pela civilização de Roma, pela sua beleza. Os chamados bárbaros, hoje, são atraídos somente pelo vazio: «Formar o vazio». Como alguns terroristas declararam noutras ocasiões: «Queremos trazer o inferno à terra!».
O ataque ao jornal não é apenas à “liberdade de expressão”, aos “valores da República”, ao “Ocidente”, como se lê e se ouve por estes dias. Porque esta liberdade, como estes valores invocados, foram criados por uma civilização ao longo de séculos. Não nasceram por si mesmos. Como justamente disse Nicolas Sarkozy: «É uma guerra declarada contra a nossa civilização».
Vendo as diferentes reacções das pessoas nestes primeiros dias, perguntei-me: o que é que restou, na nossa sociedade actual, desta herança de civilização, duma cultura que deu origem à Fraternité, à Egalité, à Liberté? Um slogan. Impressionou-me como as cadeias de televisão, imediatamente após o terrível atentado, começaram a cunhar os slogans: «Eu sou Charlie», «Sou livre», «Homenagem a Charlie», «Somos todos Charliberté». Todos adoptaram unanimemente estes slogans em sinal de luta contra “a barbárie”.
Surgiu-me uma interrogação: que querem dizer estas frases? O que é que me comunicam? O que quer dizer ser livre quando já não tenho liberdade de movimentos, de ir ao teatro, ao museu, de me encontrar com os meus amigos? Quando há uma vontade de “arrancar-me” da história e da tradição que me geraram e forjaram esta vida em sociedade?
A emoção face ao que aconteceu fez renascer um desejo de humanidade, um desejo de “pertencer”, quer dizer, de não ficar sozinho diante de uma tragédia como esta. Mas será que se pode responder ao vazio com outro vazio? Quanto poderão resistir estas palavras perante tanto ódio e sofrimento? Perante uma vontade “inimiga” desta civilização? O vazio fora de nós talvez já esteja em nós.
Na noite anterior ao trágico atentado, tinha lido com alguns amigos o texto sobre o Natal do padre Julián Carrón. A consistência de tudo o que havíamos dito não evitou a nossa consternação, mas uma frase, agora, fere como um dardo: «É por isso que o Natal nos convida a converter, acima de tudo, o modo de conceber de onde pode vir a salvação, isto é, a solução dos problemas que a vida quotidiana nos coloca. Desafia cada um de nós com a grande pergunta: de onde esperamos a salvação?».
Diante da tragédia imane, estas palavras tornam-se ainda mais urgentes. O quê, ou quem, nos pode salvar de uma situação como esta? O que quer dizer esperar a salvação perante tais assassinos? A captura dos criminosos? A justiça? A liberdade de expressão? Que tudo volte a ser como era? É tudo verdade, mas não me basta. A essa pergunta de Carrón percebo que só posso responder se eu não estiver sozinho. Paradoxalmente, diante de tanta dor, perda e medo, vejo realizar-se em mim o sentido de festejar, hoje, o Natal: Deus nunca nos deixa sós na provação.
Não sei até que ponto a minha sorte estará ligada à loucura deste vazio. Mas nestas horas tão dramáticas, percebo a urgência de não viver mais “a crédito”. A única possibilidade é viver – claro – porque reconheço que sou querido, amado, independentemente do que me possa acontecer. A evidência de que Cristo nascido é o único facto que dá consistência ao meu eu, torna-se, repito, ainda mais acutilante e por isso paradoxal. Olhar a realidade como Ele me olha, desde o primeiro instante. Nem o ódio nem o vazio que o Mal espalha podem diminuir este desejo de felicidade, de esperança, de liberdade. Dizer “Cristo” não é uma palavra vazia, mas reconhecer e verificar se eu amo a vida tal como se apresenta mais do que a mim próprio.
Sou professor e, desde o primeiro instante depois do atentado, disse aos meus alunos: «Vejam, se não queremos participar também nós na barbárie, a única possibilidade é amar aquilo que temos para fazer, ou seja, estudar, ensinar; olhar os nossos colegas ou os nossos professores como um bem. Para que através deste olhar “estudioso” (apaixonado) possamos construir uma nova civilização». Realizar a verdadeira “revolução de si”.