SURPRESA NA HAVANA

O anúncio histórico, os sinos a rebate. E na ilha onde (graças ao Papa) se reatou o diálogo com os EUA e se espera o fim do embargo, começou uma nova revolução.
O que pode mudar para as pessoas e a Igreja?
Luca Fiore

«Senti um misto de surpresa, choque e alegria...». Orlando Márquez é o director da Palabra Nueva, a revista da Arquidiocese da Havana, nascida em 1992 e voz da Igreja Católica na ilha. Sente toda a envergadura histórica do acordo para restabelecer as relações entre Cuba e os Estados Unidos. Barack Obama e Raul Castro anunciando, em simultâneo, o fim duma guerra fria iniciada antes ainda de Márquez ser nascido: foi há 53 anos. Por ora, haverá mais facilidades para viagens e turismo, negócios e comunicações, cartões de crédito e internet. Em breve uma embaixada norte-americana na Havana. Obama vai pedir ao Congresso que levante definitivamente o embargo. «Era 16 de Dezembro, festa de S. Lázaro, um santo que tem imensos devotos em Cuba», conta o director: «o seu santuário nacional é na Havana, e vêm aos milhares do país inteiro e do estrangeiro para o visitar. Nesse dia foram celebradas muitas missas e, em cada uma delas, cada vez que o sacerdote falava deste acontecimento, a gente irrompia em aplausos e gestos de alegria. Não apenas os fiéis: também a polícia. Em muitas igrejas na Havana os sinos tocaram a rebate em sinal de festa».

Satisfeitos, portanto...
Em geral as pessoas estão contentes. Mas também há quem não o esteja tanto, e é compreensível, porque todos estes anos de relações conflituosas provocaram muito sofrimento em muita gente, de um lado e do outro do estreito da Flórida. Somos um povo dividido pelo mar, pela política e pelo conflito entre dois governos.

Qual é o significado desta decisão?
É um acontecimento epocal. Ficam para trás décadas de políticas de hostilidade, mas também dores, medos, desconfianças e até morte. Pela primeira vez ambos os presidentes estão em sintonia e declararam publicamente quererem deixar para trás as políticas desastrosas. Sem dúvida que tiveram de enfrentar fortes resistências, porque desfizeram uma pesada estrutura que se foi formando em anos de relações conflituosas. Mas era este o momento, e agiram como era devido. A isto soma-se a actuação do Papa Francisco. Não posso deixar de pensar na Divina Providência...

Que impacto vai ter na sociedade cubana? E sobre o regime?
Obama anunciou as medidas que vai pôr em prática em breve. Não conhecemos ainda a resposta do Governo cubano a essas propostas. Geralmente a Havana é muito prudente antes de passar à acção, mas mesmo que com grande cautela, penso que responderá favoravelmente. Se assim for, como muitos de nós esperamos, o impacto será seguramente frutuoso para a nossa sociedade. Somos dois países muito próximos geograficamente, que partilham história, interesses e até ameaças naturais ou de outro tipo. Residem nos Estados Unidos cerca de dois milhões de cubanos e actualmente as suas remessas de dinheiro têm já um impacto, ainda que informal, sobre a economia cubana. Tudo o que facilite o fluxo económico, das comunicações ou das pessoas será positivo para o país.

É um acordo que chega num momento particular da história cubana. Faz parte das reformas prometidas por Raul?
Cuba é um país que vive uma grave crise económica, mas também social e política. É também uma situação comum a outras nações. Mas esta crise atingiu profundamente o país porque o modelo social marxista-leninista, imposto há cinquenta anos, se apresentava como uma coisa infalível e eterna. É difícil processar esta desilusão, aceitar que tudo quanto se julgava perfeito, ou pelo menos melhor, não o é. É complicado admitir que é preciso recorrer ao dinheiro estrangeiro dos capitalistas para preservar aquilo que temos. E entre o que temos estão também os programas sociais que sempre mereceram o reconhecimento da Igreja, como a assistência sanitária e a instrução para todos. É por esta finalidade que Raul Castro impulsionou as reformas, mas é precisamente o mesmo motivo por que as reformas avançam muito lentamente, porque a burocracia institucionalizada resiste a qualquer mudança que a afecte.
Não creio que o acordo com os Estados Unidos faça parte das reformas, mas com certeza que assim se elimina uma dificuldade importante e isso contribuirá para a concretização das reformas.

O fim do embargo seria certamente um presente para o povo cubano. Sê-lo-ia também para o regime?
Pôr termo ao embargo poderá exigir muito mais tempo do que as medidas anunciadas a 17 de Dezembro. Preferia esperar para formar um juízo sobre isto. No entanto, como demonstram as recentes sanções de Washington contra alguns bancos europeus por terem feito negócios com Cuba, a eliminação do embargo pode ser benéfico para muitos.

Porque é que o Papa decidiu agir na primeira pessoa? Este facto poderá ter uma influência negativa na vida da Igreja em Cuba?
Não sei. Provavelmente tem a ver com as suas origens latino-americanas e o seu profundo conhecimento deste conflito: dura há muito tempo, tendo impacto sobre toda a região e reflexos também nas relações dos Estados Unidos com o resto da América Latina. Talvez isto, aliado ao facto de ser um pastor atento às tragédias e urgências que atingem tantas populações no mundo, o tenha levado a agir deste modo. Na realidade, não sabemos em quantos conflitos interveio o Papa, como já outros Pontífices o fizeram antes dele. Mas neste caso obteve uma resposta positiva da parte de ambos os presidentes, por isso tivemos conhecimento. Estamos por certo muito agradecidos pela sua proximidade e a sua actuação, bem como por ter confiado na boa vontade dos dois Chefes de Estado.

O que pensam as pessoas desta iniciativa do Papa?
O seu envolvimento foi uma surpresa. Que a Igreja se esforce para contribuir ou facilitar a resolução de conflitos como este é uma coisa bem vista. E o papel de Francisco ganha maior relevo porque os dois presidentes foram muito espontâneos a reconhecer-lhe o mérito pela sua intervenção. O Granma, único jornal nacional e órgão oficial do Partido Comunista, no dia seguinte ao anúncio, além dos discursos de Raul Castro e Barack Obama, publicou também o comunicado da sala de imprensa da Santa Sé. E foi um facto bem recebido pelos cubanos.

Quais são as necessidades da Igreja cubana?
Muitas, e dependem da lente com que se olha para elas. Na verdade, a Igreja cubana é pobre e pequena, dependendo em grande parte da solidariedade dos nossos irmãos católicos noutros países. Mas ao mesmo tempo, e recordando o que Bento XVI disse, acho que nós somos uma minoria significativa: não pela presença numérica, mas pela fidelidade no testemunho, no interesse pela realidade social. E por termos conservado a esperança contra toda a esperança.