EM CASA DO PEDRO

Aparecem apenas durante uns segundos. São os rostos das pessoas comuns no filme dos 60 anos do movimento. Fomos descobrir quem é esta família portuguesa.
Davide Perillo

O coração da casa dos Dias da Silva está ali, atrás das grades de um berço de hospital. Mal o vemos no vídeo. Poucos segundos, intercalados com cenas de vida normalíssima: um pai no carro com duas crianças pequenas, a mesa a ser posta, a fotografia do casamento... E a voz da mãe que a certa altura fala dele, do Pedro. Da «possibilidade de experimentar uma dependência total de Deus» e de «deixar que seja Ele a construir a nossa família».
Esta é a família do Pedro. Gonçalo, 36 anos, trabalha num banco. Inês, 33, é psicóloga. Os irmãozinhos mais velhos chamam-se Gonçalo e Francisco. Vivem em Lisboa. E falam desta grandeza infinita que vive na casa deles, de uma «preferência de Deus» – dizem exactamente assim – que tem o rosto de um bebé de apenas dois anos, mas uma história muito mais longa.
Para a Inês, o encontro com a fé dá-se no liceu. Mas a semente estava lá antes, em casa. «Tive uma irmã, Leonor, que morreu aos sete anos de uma doença estranha: não crescia bem, não conseguia comer. Quando eu tinha dez anos, nasceu a Constança: tinha os mesmos problemas». Desta vez chegou um diagnóstico. Uma doença genética raríssima, menos de 200 casos no mundo: atrasa o crescimento e o desenvolvimento, enfraquece os músculos, debilita os pulmões. E muitas vezes vitima crianças muito pequenas, depois de anos de vaivém do hospital.
«Aos 15-16 anos na escola discutia-se muito o aborto». Estava na baila um referendo em Portugal. «Muitos diziam que as crianças com doenças graves era melhor não deixá-las nascer. Eu, no fundo, estava de acordo». Mas depois voltava para casa. Para a Constança. «E reparava que o que eu tinha eram ideias, ao passo que ela existia. Existir não é o mesmo que não existir, e a felicidade é uma questão maior do que eu pensava. Nos livros de D. Giussani que tinha começado a ler dizia-se que era preciso partir da experiência. Dei-me conta que aquilo que eu pensava eram coisas teóricas: a experiência dizia-me outra coisa. A minha irmã foi importante para a minha conversão. Comecei a perceber o sentido de certas coisas graças a ela».
Constança morreu em 2003. Em casa da Inês já tinham acontecido muitas coisas. Em primeiro lugar, a confirmação de que a doença era hereditária. E que também ela era portadora. «Tinha 21 anos. Não foi fácil sabê-lo. Estava noiva, pensava no casamento. O futuro subitamente tinha-se tornado sombrio». Também aí a Constança foi decisiva. «Olhando para ela via o que diz Giussani: ser dependentes é a nossa condição, em tudo. Ela tinha-me ensinado a abraçá-la».
Acontecera também outra coisa entretanto. Aquela história estava encerrada, mas tinha aparecido o Gonçalo. Conheciam-se dos tempos do CLU: ela estudava Psicologia, ele Economia. «Conhecemo-nos numa peregrinação a Fátima». Também não foi simples falar-lhe a ele da doença: levei um ano para arranjar coragem. «A reacção dele foi muito bonita», diz a Inês: «Perguntou-me o que significava ao certo. Mas disse-me imediatamente que não seria um problema». É ele que explica porquê: «Pensei que acima de tudo gostava dela. E que não podia haver nenhum obstáculo à nossa relação. Depois, claro, foi um golpe. Pensava casar, ter filhos. E aqui havia uma probabilidade muito elevada de ter filhos doentes. Mas conhecia os pais dela. Via como estavam com a Constança: era uma vida dura, cheia de problemas, mas eram felizes. Como a Inês. E isso dava-me uma certeza: até podia acontecer, mas seria uma coisa para o nosso bem».
Inês e Gonçalo casaram a 8 de Setembro de 2007, Natividade de Nossa Senhora. Ela fica logo à espera de bebé. Medo? «Os receios estão lá. Começas a perguntar-te como será o teu filho. Gostarias de controlar tudo. Para evitar a tentação, nem sequer perguntaram qual era o sexo. Queriam uma posição de abertura total. Aquilo que mais a ajudava era ir à missa e fazer Escola de Comunidade. E rezar».
Gonçalo junior nasce em Maio de 2008, perfeitamente são. Francisco segue-se-lhe 18 meses mais tarde, são também ele. «Nos meses de espera rezei sempre para que fossem crianças normais», conta Gonçalo: «Tinha medo de não sermos capazes de criar um bebé como o Pedro, de ajudá-lo. Mas hoje, por causa da grandeza que estamos a viver, posso dizer que é ele quem nos ajuda a nós».
Pedro chegou a 23 de Outubro, há dois anos. Inês percebe num ápice: «Nessa mesma noite vi que não se mexia. Que não comia. Era diferente das outras vezes». Fica transtornada. «Ao princípio olhava para ele com estranheza, quase como se não fosse nosso filho. Parece-me impossível dizer isto agora, mas é a verdade... Depois, passado um tempo, fomos para casa. E lá recomeçámos a ser uma família». Com os primeiros sinais de como a vida ia mudar. «Uma noite não respirava. Pneumonia. Levámo-lo ao hospital. Esteve nos cuidados intensivos duas semanas, ventilado. Estava entre a vida e a morte». Os médicos falavam de desligar o ventilador: «Era uma discussão contínua se valia a pena ou não que este bebé vivesse».
«Também para mim os primeiros dias foram estranhos», conta Gonçalo: «Parecia-me distante, não sabia como gostar dele. E ao mesmo tempo tinha a dificuldade de não deixar que a minha mulher percebesse. Depois, quando foi parar ao hospital, o coração mudou de repente. Vi-o sofrer. Dei-me conta de que, doente ou não, era meu filho. E amava-o tanto como aos outros. Disse para mim: vale a pena que ele exista, como vale a pena para mim. Saí com uma maior certeza de que dependemos de Outro, que não nos fazemos a nós mesmos. É uma descoberta através do Pedro, mas que abrange tudo».
Uma grandeza simples, que extravasa do álbum de família. Pedro com uma coroa de príncipe, ao colo da mãe, deitado na relva num dia de sol. Ou entubado, num dos muitos dias passados no Hospital Santa Maria. «É difícil estarmos em casa todos juntos», diz o pai: «E os manos sofrem quando ele não está. É impressionante como ele está a tornar tudo mais pleno também para eles». Como? «Tudo o que não corre bem para eles converte-se num pedido a Jesus», diz a Inês: «Pedem que o Pedro se possa sentar, possa andar, possa comer. Não é “uma coisa que lhe falta” a ele. É uma coisa que eles pedem». O que é que quer dizer cuidar dele? «Eu deixei o emprego numa agência de publicidade e agora estou em casa», explica a Inês: «Faço um trabalho que se assemelha ao do meu pai. Ele é agrónomo. Bem, estou a aprender o que significa que o teu trabalho é cuidar daquilo que tens diante: segui-lo, esperar, ter paciência, dar tempo para descobrir como podes fazer melhor... E vê-lo crescer. Ele cresce devagar. E eu quero descobrir a maneira de lhe mostrar a beleza da vida».
Ao perguntar como mudaram eles, as respostas entrelaçam-se. Inês: «Diante dos filhos, dou por mim a contemplá-los. Estou agradecida por aquilo que há. Por aquilo que fazem, que aprendem. Nunca pensei, por exemplo, que estar em casa com as crianças ia ser tão atractivo». Gonçalo: «Estou mais aberto a tudo. Há uma tensão maior pela vida. Tem um sentido. E eu posso admirar o que me sucede dia a dia graças ao Pedro, porque se ele não existisse eu não seria assim». Mas em que é que o movimento vos ajuda a viver? «Eu hoje não saberia viver sem a Igreja, e a Igreja para mim é o movimento», diz ele, simplesmente: «Não é uma coisa filosófica: é muito concreta. Ajuda-nos a não estar desesperados numa situação que, de si, o seria». «Eu aqui encontrei sempre uma palavra que me corresponde e me ajuda a responder às circunstâncias», acrescenta ela: «É como se a vida, um passo de cada vez, me confirmasse aquilo que tinha intuído em miúda».
O próximo passo é outra expectativa: Inês está de novo à espera de bebé. O menino (ou menina) nascerá em Março. «Medo? Há sempre», diz ela a rir: «Mas está cheio da memória daquilo que nos está a acontecer. E de uma felicidade imprevista».