ONDE ESTÁS TU?

Chama-se Valentina, é ginecologista e fazia investigação em Inglaterra. Acabou por ir trabalhar em consultórios, deparando-se com muitos problemas hoje em dia tão discutidos: pílula, fecundação assistida, sexo. “Eu pensava que bastava conhecer a doutrina,
Davide Perillo

A mão era a sua. Escrevia à pressa, para terminar quanto antes, enquanto fazia as perguntas habituais àquela mulher que acabara de conhecer. Era a última paciente do dia. Doenças? Distúrbios? Antecedentes familiares? “A dado momento olhei para a minha mão movendo-se nervosamente ao escrever no papel, um tanto histérica. Fiquei incomodada comigo mesma. Parei e pensei: onde estás tu agora, Vale? Ergui os olhos e vi aquela senhora. Mas quem é esta mulher? É uma pessoa, é uma gota do Ser que eu não conhecia. E agora está à minha frente...”. Um instante. Coisa de nada. No entanto, foi ali que de novo se abriu a vida de par em par. É uma história simples, esta da doutora Valentina Dória, mas que ajuda a entender muitas coisas. Os desafios que temos diante de nós, impensáveis há uns anos atrás. A oportunidade que podem representar para quem decide enfrentá-los. E também o que quis dizer o Papa Francisco quando falou de uma Igreja que “acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e longos que possam ser”, como faz na Evangelii Gaudium. Ou quando pede aos cristãos que “busquem formas e modos de comunicar, com uma linguagem compreensível, a perene novidade do Cristianismo”, porque “é preciso ser realista” e “muitas vezes é melhor desacelerar o passo, deixar de lado a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou à beira do caminho”, como recordava na mensagem ao último Meeting de Rimini.
Valentina tem quarenta anos, uma vida de entrega total a Cristo (é Memor Domini) e um currículo invejável (seis anos de PhD em Londres, estudando as redes neuronais dos fetos, em projectos que a levaram inclusivamente a Estocolmo a fim de relatar as suas pesquisas perante a comissão do Nobel), mas a certa altura toma outro rumo: “A pesquisa é uma coisa óptima, mas faltava-me o contacto com uma realidade mais viva, e eu quis voltar à clínica”.
No seu caso a clínica é o Hospital Niguarda, em Milão. Chega lá em 2010, onde passa três anos “intensos e duros. A pressão às vezes pesa: se alguém sofre um infarto aos 70 anos e morre, a gente pensa ‘é a lei da vida’. Mas se uma mulher jovem tem complicações durante o parto, pensa-se logo que a culpa é do médico”.
Depois, de repente, vê-se sem trabalho. Reestruturação empresarial e cortes. Começa a procurar por onde pode: ambulatórios, consultórios... Com uma dúvida dentro de si, empolada pela conversa dos colegas: “Os consultórios, comparados aos hospitais, são considerados de segunda classe. Eu dizia a mim mesma: será que não estou a desperdiçar tantos anos de estudo? Porém, a realidade era aquela: vagas em hospitais não havia. E eu queria ler a realidade”. A ajuda tem a forma de uma centelha que surge no diálogo com Davide Prosperi, um dos responsáveis de CL: “Ele disse-me: olha, Vale, nós não construímos na vida por levarmos a cabo o nosso projecto, fazer medicina, depois a especialidade para ser ginecologista, depois o doutoramento... Tudo coisas justas, sem dúvida que sim. Mas nós só construímos se respondemos a alguém no presente. Agora, fazendo o que fazes, o que é que afirmas? O que é que tu amas?”

“DOUTORA, É CONSIGO...” Pergunta seca que vai moendo enquanto a semana se enche de compromissos (ao primeiro consultório em Bérgamo acrescenta-se um segundo, depois um ambulatório, depois outros) e dias cheios de desafios. Desafios fortes, desde logo. “O primeiro impacto foi com as adolescentes. Lembro-me do primeiro dia, em que chega uma mãe com uma rapariguinha de 13-14 anos e praticamente a atira para dentro do consultório dizendo: Doutora, é consigo, explique tudo à minha filha que eu não quero problemas. Estamos entendidas, certo? A pílula, por favor...”
Isto repete-se constantemente. As meninas vêm acompanhadas ou sozinhas. E com Valentina acontece uma coisa, simples e dramática: entra em crise. “Trabalho há quinze anos, sei o que diz a Igreja, li mil vezes a Humanae Vitae: pensava que estava bem equipada”. Mas... “Percebi que essas jovens falavam outra língua. Eu recusava receitar a pílula, porque tenho a certeza de que não é uma coisa certa e divide o humano em dois. Eu procurava explicar o que é o amor, a responsabilidade. Tinha uma lista de frases bonitas de don Giussani para citar, para impressioná-las. Nada. Era uma conversa de surdos. Não havia nenhuma palavra sobre a qual estivéssemos de acordo: amor, felicidade, plenitude, responsabilidade. Cada valor que eu tentava fazer vir ao de cima era reduzido ou incompreendido. Eu não as atingia. E não podia viver procurando fazer com que o outro entendesse um valor. Não me bastava”.
Os dias eram áridos. E não por causa do ritmo de trabalho, as 20-24 consultas diárias, poucos minutos para a paciente e horas de deslocação de um consultório a outro. “Eu estava numa situação desconfortável. Chegava, pegava a lista das consultas e fazia as contas. `Esta está na menopausa: ok, sem problema. Meu Deus, esta é jovem: o que será que vai querer...´. Enfim, o dia ainda nem tinha começado e já eu o tinha classificado em chatices e coisas a evitar. Um delírio”. Com um caruncho a roer por dentro. “Um tempo depois dei por mim a pensar: talvez não seja assim tão verdade que Cristo responde. E se não pode responder a elas, por que haveria de responder a mim? Era um ponto de conversão total. Me lembro de um dia ter dito às minhas amigas: ou me reavalio a fundo, ou perco-me de vez”.
A reavaliação veio com aquela senhora. Sem dizer nem uma palavra. “Era um dia extenuante, eu já tinha visto muitas pacientes. Ela entra. Eu fazia as perguntas de rajada, para poder ir para casa o mais rápido possível. A certa altura irrompe com toda a força aquela exigência de estar inteiramente presente. Ergui os olhos e vi a mulher. Não creio que ela tenha percebido toda a minha aflição interior. Foi uma coisa intensíssima para mim. O que ali irrompeu foi o desejo de viver o presente tal como se apresenta. Foi ali que comecei a entender que não queria escapatórias. Foi uma reviravolta total, também na minha relação com Cristo”. Em que sentido? “Em vez de partir de uma boa intenção de viver com Ele no centro da vida, de repente dizes: ‘Mas se não está aqui na realidade agora, em toda a lista das pacientes e não naquelas que eu quero… Afinal, Quem é? Nada. Reduzo-O aos meus pensamentos. Quanto me dei conta disto a terra tremia-me sob os pés”.
E multiplicava-se a necessidade de compreender. “Comecei a pedir ajuda, concretamente: a colegas ginecologistas, católicos e não só. A famílias, a jovens, a padres...” Um deles alterou-lhe de novo a perspectiva, alargando-a: “Disse-me: Valentina, antes de mais, tens de fazer o teu trabalho. O primeiro trabalho de um médico, qual é? A anamnese: fazer perguntas. Pois é, precisas de aprender a fazer as perguntas. Por isso comecei, aos poucos, a fazer às pacientes perguntas verdadeiras, reais, não aquelas cujas respostas eu já sabia”.
Acabou fazendo uma outra descoberta. O Teen Star, um método de educação da afectividade criado por Pilar Vigil, médica chilena, e muito difundido na América Latina. “Baseia-se na teologia do corpo, de João Paulo II”, explica Valentina. “Restitui à corporeidade a sua plena dignidade. Coloca no centro a pessoa. E, sobretudo, parte da experiência. Porque aos jovens não se pode ensinar nada que não tenha relação com o que vivem”. Um exemplo? “Se se diz um adolescente: olha que vocês não são só o vosso corpo, há também um aspecto espiritual; por isso, por favor, não usem..., hoje é muito provável que isso entre por um ouvido e saia pelo outro. Pilar, ao invés, manda fazer um exercício. Diz: ‘Olhe nos olhos, por uns 40 segundos, a pessoa que têm na frente...’ Elas riem, não conseguem, é muito difícil. Mas no fim perguntamos-lhe: ‘O que aconteceu?’. ‘Não, professora, é uma confusão’. Porquê? E aparece uma miúda como aquela que uma vez me respondeu: ‘Porque por detrás dos olhos há outra coisa’. Entendido? Não se impinge nada e na vez seguinte a gente parte daí”.

A RESPOSTA DE DEUS. A experiência. É aí, naquilo que acontece, que Valentina começa a encontrar as respostas e um caminho. “Pense nos métodos naturais. Muitas vezes falava deles e caía no vazio. Eu pensava que me faltava uma verdadeira compreensão da doutrina, ou um profissionalismo pleno, para ser capaz de dizer a coisa certa no momento certo. Além de que a Igreja fala disso num contexto de casamento: as minhas pacientes quase nunca são casadas. Eu dizia para mim: nunca vão entender. Mas depois chegou a Grace”.
É o nome (inventado) de uma jovem nigeriana dos seus 25 anos. É prostituta. Uma tarde chega ao ambulatório e diz: “Doutora, eu, por causa do meu trabalho, obrigo a usar preservativo”. Um instante de embaraço. “Mas com o meu homem não quero usá-lo porque aí é outra coisa”. Mais uma pausa. “No entanto já temos dois filhos e agora não podemos ter mais. A senhora ensina-me os métodos naturais?” Valentina ainda sorri ao contar o caso. “Pedi-lhe para repetir três vezes, achava que não tinha percebido bem. Mas não, ela tinha as ideias muito claras. Aquela jovem foi uma resposta de Deus a mim. Era Ele quem me dizia: ‘Vês? Achas que o homem de hoje não é capaz de entender. Bem, Eu mostro-te onde menos esperas’... Para mim foi fundamental”. Porquê? “É o método da Encarnação. A gente vê em acção uma coisa que desejou ardentemente desde sempre: de repente acontece e a gente entende que é o que desejava... É como se o eu tocasse a realidade. Tocas uma coisa e essa coisa transforma-te, é como uma vacinação. A partir daí tens instrumentos novos. Aconteceu. Eu não sei como acontecerá com outras mulheres, comigo bastou para dizer que ‘não é verdade que elas não conseguem entender’. Depois, a coisa mais interessante será descobrir junto o caminho, os passos a dar em conjunto”. Grace tornou-se sua amiga. O mesmo aconteceu com outras colegas dela, nigerianas e romenas.

PERGUNTAS CERTAS. Mas esse caminho resolveu os problemas? A pílula para as adolescentes, por exemplo: como é que fazes, o que é que mudou? “Estou mais segura ao propor uma alternativa. Antes eu dizia sempre, falava sempre de outras vias. Mas não era uma proposta real. Era como dizer: ‘Eu faço assim, se você não quer vá bater a outra porta’. Mas parecia-me uma coisa intelectual”. E agora? “Não estou a reescrever a Humanae Vitae, imagina! Nem desenvolvi nenhuma casuística de procedimentos correctos. O cume da montanha permanece alto e magnífico. Mas sei que a caminhada é feita com a paciência para esperar. E não é que abaixando o cume o homem fica mais feliz”. E tu? Estás mais serena? “Nunca estou plenamente satisfeita, estou em agitação contínua. Mas noto que aos poucos lhes vou chegando; e eu também estou dando alguns passos reais. Todas as vezes que entra uma jovem que eu acho que quer a pílula procuro entender em que contexto ela vive, qual a sua história, até que ponto posso avançar”.
Anamnese, precisamente. As pergunta certas. Aquelas que tocam o coração da mulher tunisina que entra no consultório querendo abortar “porque já temos três filhos e já não dá mais”. E agora teve uma quarta filha, que se chama Doria. “Ela disse-me: não posso chamar-lhe Valentina, é um nome cristão. Mas queria dar-lhe o seu nome porque quero que seja feliz como a senhora. Não disse boa, disse feliz...” Ou aquelas perguntas que fazem vir à tona o coração do casal que lhe bateu à porta há umas semanas. “Duas pessoas muito simples, ele operário, ela dona de casa”. Não conseguiam ter filhos e noutro lado convenceram-nos a tentar a inseminação artificial. “Vieram até nós porque já haviam tentado de tudo. E eu: bem, mas por que vocês estão aqui? ‘Para entender’. Entender o quê? ‘Se é certo ou errado’. Como assim? E eu via que ele estava cada vez mais desconfortável. Até que desabafou: ‘Doutora, quero entender o que é certo, humano, que não me faça sentir tão mal. Porque eu fiquei com imensa raiva. Sinto que me usurparam um espaço com minha mulher que é sagrado e é só meu’”. E tu? “Eu fiquei chocada: ele tinha percebido por si mesmo, por experiência própria. É um espectáculo ver um coração descobrindo algo de si mesmo. Não recalquei: ‘Sim, exactamente, está a ver? A Igreja diz mesmo...’ Ali já estava tudo. Estava a acontecer. Depois lemos juntos trechos da Humanae Vitae e da Donum Vitae, porque sempre as trago na mala. E isso iluminou-lhes o coração, ajudou-os a julgar”.

“ESTÁS CONTENTE?” Iluminar o coração. Acompanhar a redescoberta do humano, partindo do próprio terreno da experiência. Eis o que faz o cristianismo. Em qualquer situação.
“Na semana passada vejo chegar um casal indiano, muito jovens. Para conversar com os estrangeiros temos um calhamaço que contém as frases fundamentais em 145 línguas. A deles não estava lá. Ele é cozinheiro, ela trabalha em casa. Uma miúda de 1,45 m, pesava 33 quilos e estava grávida. Estava completamente perdida, vomitava muito e estava preocupada”. Primeiro filho? “Sim. Prescrevemos os exames, tranquilizei-a como pude, falando por intermédio do marido, que sabia um pouco de italiano. Depois, a certa altura, perguntei: Mas você está bem? Está contente? E ele: ‘Sim, está contente’. Acontece muitas vezes: a gente pergunta à mulher e quem responde é o homem. Eu insisto: não, desculpe, ela é que tem de responder. Alguma vez lho perguntou?”. E ele? “Ficou surpreendido. Depois voltou-se e perguntou à mulher: ‘Estás contente?’ Não sou capaz de descrever as caras deles. Como se olhassem um para o outro pela primeira vez”. Como se alguém tivesse olhado para eles pela primeira vez.