De economista do Banco de Portugal a religiosa de clausura no Algarve

"Estou convencida de que o Senhor me quis carmelita"
Samuel Mendonça

Embora natural de Lisboa, viveu a infância e juventude no Sobralinho, uma aldeia entre Vila Franca de Xira e Alverca. Licenciada em Economia, trabalhou mais de uma década no Banco de Portugal, mas no ano 2000 começou a perceber que a sua felicidade não passava por aquela vocação e arriscou descobrir o que é que a interpelava. No dia 16 de julho de 2004, o simbólico dia de Nossa Senhora do Carmo, chegou ao Carmelo de Nossa Senhora Rainha do Mundo, no Patacão (concelho de Faro), para ser Carmelita Descalça.
A irmã Lúcia Maria de Nossa Senhora de Fátima e da Santa Cruz iniciou então o Postulantado – tempo de experiência e preparação para o Noviciado, o período de discernimento que antecede a consagração definitiva a Deus – e foi revestida do hábito de Nossa Senhora do Carmo no dia 2 de Fevereiro de 2005. No dia 13 de Junho de 2009, dia do seu aniversário de baptismo, professou votos solenes e hoje faz parte de uma comunidade de 16 Carmelitas Descalças.


Que profissão tinha? Que função desempenhava no Banco de Portugal?
Eu estava a coordenar o grupo que fazia a avaliação da performance da gestão de reservas. O Banco de Portugal tem a responsabilidade de gerir as reservas sobre o exterior. Há uns que gerem a reserva, outros que estão na parte do backoffice a fazer as transacções e depois há um outro núcleo que faz a avaliação da gestão e era nesta área, a que chamamos o middle office, que eu trabalhava.

Portanto, uma missão de extrema responsabilidade…
Pois… [risos]

Aliás, como a própria instituição…
Todas as empresas são importantes quando têm a consciência que estão a trabalhar para o bem comum. É sempre um bem existir uma empresa, não só pelos trabalhadores a quem dá trabalho, mas pelos produtos que produz. Mas o Banco de Portugal tem esta especificidade: a missão principal é o bem-estar da situação monetária e financeira do país. Dava-me gosto quando lá estava e agora, como religiosa, dá-me gosto também ter essa consciência de que trabalhava para o bem. Contribuíamos para o bem-estar. Pelo menos tentávamos trabalhar com toda a responsabilidade e empenho para o bem-estar público, o bem-estar comum.

Quanto tempo é que esteve lá?
Cerca de 13 anos e tive o gosto de trabalhar com uma equipa muito boa. Aliás, o nosso departamento, o Departamento das Reservas Externas, tinha um funcionamento, a nível de relacionamento humano, muito bom. Foi uma experiência pessoal muito boa, além de ser uma óptima experiência profissional. Sempre trabalhei naquela área até sair.

Sempre quis ser economista?
Sim… Quando era criancinha não pensava nisso. Foi mais na juventude que tive de decidir. Tinha um primo que não era economista mas gestor e passámos algumas férias de família juntos e foi esse o clique na decisão de eu ir por ali. Havia professores meus que achavam que eu devia ir para letras ou para outra área porque gostava muito de Filosofia, de Português, de Literatura. Mas aquele contacto com o meu primo foi um clique decisivo porque percebi que o que ele tratava mexia muito com a vida concreta das pessoas: a inflação, o ter emprego ou não ter. Eram coisas muito reais do dia a dia e que mexiam com a vida das pessoas e isso atraía-me.

E como é que se deu a sua entrada para o Banco de Portugal?
Naquela altura estávamos ainda em bons tempos de emprego. O banco, normalmente, abria estágios todos os anos. Eu, graças a Deus, fui selecionada. Foi um processo absolutamente normal. Fiz a licenciatura no antigo ISE – Instituto Superior de Economia (atual ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão) e entrei com vários colegas.

Na altura tinha, então, uma situação profissional completamente estabilizada…
Estabilizadíssima.

E calculo que, financeiramente, também fosse…
Era confortável.

Se calhar, a situação sonhada para a maioria dos jovens…
Pois. Eu fiquei efectiva logo no final do estágio e isso dá-nos aquela segurança que hoje em dia as pessoas já não sabem qual é: ter um emprego. Tinha uma estabilidade e uma segurança na vida que hoje, infelizmente, os jovens não conhecem. Eu ainda sou dessa geração que teve essa experiência. Estava num banco que pagava bem, com perspectivas boas de carreira e tinha um trabalho aliciante. Foi uma experiência muito boa, gostei muito.

Portanto, até para a sua família, a sua situação estava completamente resolvida…
Sim. Estavam felizes e descansados [risos]. A minha irmã era professora e também já estava a dar aulas e eu tinha um bom emprego. Isto, para o coração de uns pais, era um descanso muito grande. E vivíamos felizes, o que é muito importante.

Como foi a sua infância?
Foi uma infância normal. A minha mãe costumava dizer que eu fui uma santinha até aos três anos e a partir daí, uma traquinas [risos]. E, como eu costumo dizer, as más-línguas diziam que eu era muito vaidosa. Gostava muito de brincar e de aprender. Foi uma infância absolutamente normal, dentro do contexto de uma família da classe média.

E a juventude?
A juventude também foi normal, sempre muito empenhada…

Em quê?
Na escola. Eu gostava muito de aprender e de estudar e a minha mana também. Ela também me entusiasmava. Fazíamos aquilo que era próprio dos jovens. Tínhamos os nossos colegas da escola, uma coisa normal dentro do contexto de uma aldeia entre Vila Franca e Alverca.

Namorou?
Apaixonei-me três vezes [risos], o que é bom para termos a experiência dessa capacidade de amar…

Mas como é que projectava o seu futuro?
Queria casar e ter muitos filhos. Dizia: "Quando casar quero ter seis filhos [risos]".

…para não contribuir com este inverno demográfico que se está a viver.
É verdade. E que vai levar muitos anos a corrigir.

Depois de uma prática cristã mais comprometida na sua infância e juventude seguiu-se um período de algum distanciamento. Porquê?
Foi depois da morte da minha mãe. Foi um grande acontecimento em que percebi que havia variáveis exógenas – como lhes chamávamos na economia – que aparecem e que ninguém as controla. Foi no meu último ano de curso e foi uma experiência muito forte porque eu amava muito a minha mãe. E amo. Ela morreu de cancro na mama e teve um último ano de vida muito, muito doloroso e naquele momento percebi que há coisas que nos acontecem na vida completamente fora das nossas possibilidades de gerir e acompanhar.
Não cortei com a Igreja, nem me revoltei contra Deus, até porque a minha mãe transmitiu-me, em relação a isso, uma experiência muito bonita. Ela pedia sempre a Deus que lhe desse vida até que as suas filhas – na sua linguagem simples – tivessem uma «enxada» na mão. A preocupação da minha mãe não era a de deixar-nos uma herança ou fortuna mas a dar-nos formação e morreu com as duas empregadas e com capacidade para se gerirem a si próprias. Quando soube que estava numa situação em que já não havia nada a fazer, agradeceu a Deus por ter ouvido as suas orações, por ter vivido até "dar uma «enxada» às filhas" e isto foi muito forte para mim. Não me revoltei mas deparei-me com algo muito superior a mim.
Ela era catequista e o seu grupo ficou sem catequista e as outras responsáveis perguntaram-me se eu queria continuar o seu trabalho. Levei o grupo até à primeira comunhão mas depois comecei-me a afastar. Não foi pela morte da minha mãe mas sei que foi a partir daí. Gostava de pensar pela minha cabeça e havia certas coisas na Igreja que achava que não estavam bem. O erro está, não só em não pensarmos a sério no porquê das coisas, mas também em não irmos procurar as suas razões profundas. Ficamos na "onda" do que ouvimos dizer e foi isso que me aconteceu. Fui-me afastando porque achei que havia certas coisas que não faziam sentido nenhum.

A sua mãe tinha então uma fé…
Inabalável. Fortíssima. Foi das pessoas mais empenhadas na construção da igreja do Sobralinho pela qual lutou durante anos com uma comissão. Graças a Deus hoje está lá, construída.

Foi um modelo de fé e uma inspiração para si?
Foi. Foi a minha catequista e o pilar da fé, desde o princípio e depois com esse último gesto da vida ao agradecer a Deus por ter acedido ao seu pedido.

A história da irmã Lúcia cruza-se com o Jubileu do ano 2000…
É verdade [risos]. Foi uma grande graça pessoal.

A vivência das celebrações pascais desse ano, assim como uma peregrinação que realizou à Terra Santa também em 2000, assumem particular importância e significado na sua mudança de vida, altura em que se inicia na sua vida um processo de conversão, chegando a ser crismada em 2001. Que processo foi esse?
Isto começou mesmo no ano 2000 e é uma experiência muito bonita de se ser enamorada por Deus. As coisas iam-me acontecendo e eu ia tendo consciência de que alguma coisa estava a mudar e a chamar por mim mas não percebia o que era. Olhando agora para trás percebo que logo no princípio do ano 2000 o evangelho de cada domingo mexia muito comigo. Aquilo era para mim! Eu ouvia e Ele [Deus] estava a falar comigo! Mas continuava a minha vida normal.
Era o ano da beatificação dos Pastorinhos de Fátima, estávamos a construir a primeira igreja dedicada a eles em Alverca e o pároco organizou umas conferências. Numa delas, a oradora disse que os Pastorinhos levaram a sério a experiência que tiveram com Nossa Senhora e aquilo tocou-me. Era Ele de novo. E eu pensei: "tenho de levar a sério isto que me está a acontecer". Chegada à Semana Santa tive um impulso, na Quinta-feira Santa, para me ir confessar. Há quase 10 anos que não me confessava. Entrei na igreja de São Nicolau [risos] e fui-me confessar. Foi uma confissão normal mas foi um momento de graça porque me senti pecadora e o quanto o nosso pecado ofende ao Senhor, mas, ao mesmo tempo, como Ele derramava a sua misericórdia. Mesmo sendo pecadora Ele me queria abraçar. E depois na Vigília Pascal foi outra experiência inesquecível e incapaz de se traduzir em palavras. Foi de novo uma experiência da misericórdia de Deus e de quanto Ele nos ama e de quanto fica triste e o magoa os nossos pecados. Apesar de tudo, Ele só nos quer mesmo, mesmo abraçar. Eu, se quisesse pôr em palavras diminuía aquilo que foi a experiência. Senti-me acolhida, abraçada, amada e, a partir daí, percebi que o Senhor queria alguma coisa de mim e me deu a graça de ter um coração livre.
No ano 2000, a paróquia estava a organizar uma viagem à Terra Santa. Eu nem ligava muito mas a minha irmã estava sempre a insistir para que fosse e decidi inscrever-me. Quando cheguei à Terra Santa pensei: "Então mas eu ia desperdiçar uma experiência destas, de pisar a terra onde Jesus andou?". No primeiro dia fomos ao Monte Carmelo, onde nasceu a nossa sagrada Ordem, e eu recebi o escapulário, num gesto explicado pelo padre: "É uma espécie de avental para nos pormos ao serviço dos outros". Aquilo foi outra chave que Deus utilizou para me tocar no coração. E pensei: "Quando sair daqui tenho que agradecer isto e vou procurar pôr-me ao serviço dos outros". Foi-me nascendo a ideia de fazer voluntariado. Comecei então a fazer voluntariado no Hospital da Estefânia e foi uma experiência muito bonita.
Na Terra Santa conheci ainda um casal que pertencia ao movimento Comunhão e Libertação, tendo mais tarde assistido a uma conferência deles na qual a esposa disse que até a caminho do supermercado se pode encontrar Deus. E eu pensei: "Mas é isto que eu quero para mim, viver esta consciência a toda a hora". Eles convidaram-me para ir ao lançamento do livro "O Sentido Religioso" de D. Luigi Giussani que apelava a viver sempre intensamente o real para ser sempre e verdadeiramente religioso. A experiência íntima de Deus, de Ele vir ao nosso encontro, eu ainda não a tinha experimentado e foi isso que me estava a acontecer. Foram dois momentos muito fortes, no sentido em que eu percebi que ser religioso e ser cristão não é só ir ao domingo à igreja, tentar não fazer o mal e portar-me bem. É mais do que isso, é viver intimamente com Deus. Então, viver intensamente o real era eu, com a consciência que Ele me envolvia, ser economista e fazer o melhor que sabia com o sentido de, com o meu trabalho, dar glória a Deus. Foi isso que redescobri com o movimento e foi muito bom para perceber as razões da fé.

Portanto a irmã, nessa altura, já não lhe bastava a possibilidade de viver intensamente o real na sua profissão de economista?
Eu aí percebi que, independentemente do que Ele quisesse de mim – porque eu já estava à procura de alguma coisa que Ele me queria e até podia ser como economista e esposa e mãe dos tais seis filhos –, o meu coração estava aberto. Eu só sabia que tinha de viver intensamente o real para viver intimamente unida a Deus. Quando recebi o escapulário pensei: "Se queres que eu seja mesmo só tua, como religiosa, freira, quero ser carmelita".
Mas nem sabia o que era ser carmelita.

Então nessa altura começou a pôr essa possibilidade?
Estava aberta a tudo.

Até aí nunca tinha pensado nisso?
Não. Só comecei a pensar assim depois de ir à Terra Santa. Comecei a procurar sites de ordens religiosas na internet, mas ia sempre parar aos dos Carmelos. Porquê, não sei. Imprimi o horário de vida de um dos Carmelos e a minha mana entrou de repente no meu quarto. Eu estava com o papel na mão e meti-o rapidamente num livro sobre os mártires do século XX, não fosse ela pensar que eu estava maluquinha se soubesse que andava a consultar ordens religiosas. Quando lá fui buscar o papel estava nas páginas sobre Santa Teresa Benedita da Cruz [Edith Stein]. Eu costumo dizer que ela foi a minha «mãe» no Carmelo porque apaixonei-me por ela, pela sua vida. Depois fui crismada em 2001 numa lindíssima e suave experiência do Espírito [Santo], no dia de Pentecostes, em que percebi que me entregava toda a Deus e que Ele ia fazer o que quisesse.

A Quaresma de 2002 também foi especial nessa caminhada?
Foi quando tomei a decisão de vir para o Carmelo, também com a Edith Stein porque tinha lido uma frase dela na qual dizia que a experiência humana faz-nos passar pelo sofrimento e quando, no sofrimento, nos unimos a Cristo fazemos parte do corpo místico d'Ele e somos corredentores n'Ele. Isto para mim até aí era uma linguagem completamente abstrata mas naquele momento percebi, interiormente, o que é que ela queria dizer e também percebi que não era o meu raciocínio que o estava a explicar. Sem ler nenhum tratado de Teologia percebi que Jesus está vivo no corpo da Igreja e esta é o corpo atual d'Ele.
Depois fiquei com dúvidas. Pensei: "Meu Deus, isto é tudo uma loucura! Eu sou lá chamada para estas coisas! Eu devo estar é tonta da minha cabeça! Isto é para os santos, não é para mim!" [risos] Ao princípio tinha vergonha de pôr estas dúvidas a um sacerdote para me ajudar a fazer o discernimento, pensando que ele me poderia achar maluquinha da cabeça [risos].
Entretanto, andava a pedir [a Deus] a graça da confissão de uma pessoa que gostava muito e que, há muitos anos, não se confessava. E aconteceu. De repente, o Senhor deu-me aquele sinalinho e eu percebi que o caminho era o Carmelo.

Mas, nesse chamamento à vida consagrada, via-se como religiosa de clausura?
Eu já não perguntava mais nada. Era como se Deus me estivesse a dizer: "Eu quero-te carmelita". Portanto, fui andando. Pedi um ano sem vencimento [no Banco de Portugal] e entrei no Carmelo de Fátima. Estava apaixonada por Ele e só lhe queria responder. Eu gostava muito dos meus sobrinhos que eram criancinhas e foi muito difícil a separação. A Beatriz deixou-me no Carmelo de Fátima agarrada às minhas saias a chorar. Aquilo foi uma «faca» no meu coração…

Como é que a família acolheu a sua decisão?
Foi muito difícil, muito difícil… A minha mana ficou muito abalada. Foi muito doloroso para eles…

Foi uma surpresa?
Claro! Uni-me de todas as forças e pedi a Nossa Senhora de Fátima que ajudasse a minha mana a aceitar porque foi uma «bomba» no coração dela e ninguém estava à espera de uma coisa destas. Nem eu estava preparada emocionalmente para viver esse corte. E depois saí de Fátima porque só chorava com saudades dos meus pequeninos. Estive mais um ano a trabalhar e foi uma experiência bonita porque pedi ao Banco de Portugal para regressar e eles de imediato me concederam o regresso. Mas o Senhor continuou a insistir e aqui estou [risos].

E a relação com o seu pai, como foi?
A relação com o meu pai é muito boa. Depois de algum tempo, acabou por aceitar com mais passividade. Agora está muito feliz e compreende muito bem, mas também sofreu muito. Para ele foi muito difícil porque vivia comigo e ficou sozinho. O Senhor vai controlando os corações.

A irmã escreveu que Deus lhe concedeu o dom de ser Carmelita Descalça…
Pois, o dom é d'Ele! Foi uma dádiva e uma vocação que Ele me deu e que eu aceito com a minha liberdade. Podia dizer que não. É um dom.

A irmã escreveu que chegou ao Carmelo de Faro "por um longo caminho de luzes e sombras". Que luzes e que sombras foram essas?
As que já referi porque Ele falava-me ao coração através das pessoas, dos santos da terra e dos santos do céu, através das circunstâncias, através de toda a realidade para me despertar na liberdade de me lançar nesta aventura – e, muitas vezes, tinha medo de ser eu que estivesse a ficar tontinha da cabeça – porque Ele não me estava a obrigar, estava a convidar-me. E eu fui aceitando e fui querendo saber o que é que era. E quando percebi que era o Carmelo lancei-me imediatamente, mesmo sem medir se estava bem preparada ou não. Fui respondendo e isto era luz.

E quais foram as sombras?
As sombras são as sombras da fé, são as dúvidas no meio do caminho: se eu estou a perceber bem, se isto é sério, se não é imaginação minha. Uma das sombras foi também não ter ficado logo na primeira vez que entrei em Fátima. Entrar foi um sofrimento para a família e depois saí. Isso foi muito doloroso, mas nem sempre tudo é claro e há períodos em que a fé é posta à prova. Faz parte do caminho.

Como é que se percebe que estamos a fazer a vontade Deus e não a nossa?
Pois, essa é a pior dúvida que a gente tem neste processo. Olhe… não sei… é ir respondendo à graça. É um caminho de fé. Deus vai-se manifestando de uma forma muito intensa.

Através de sinais?
Exato. Ele fala ao coração através dos acontecimentos da nossa vida. Podemos estar um grupo de pessoas a viver o mesmo acontecimento e nem todos o interpretam da mesma maneira. A adesão à nossa liberdade de ver cada acontecimento assim é como D. Giussani dizia: "A vocação é a inspiração no sentido mais puro". Como Deus não quer forçar a nossa liberdade, penetra-nos num conhecimento íntimo através da realidade e há um momento em que a gente percebe. Só quando eu chegar ao céu e ver-me face a face com Ele é que vou ter a certeza absoluta que esta era a minha vocação. Mas agora estou muito feliz, sinto-me como peixinho na água, no concreto das luzes e sombras que vamos tendo ao longo da vida. Essas sombras foram as sombras que Ele me deu a viver para ter a certeza que estou a fazer a vontade d'Ele e não a minha.

Conseguiu atingir essa felicidade que, anteriormente, não havia conseguido encontrar?
Sim.

Hoje tem essa certeza?
Tenho a certeza, tenho. Na experiência e no estilo de vida das irmãs, sinto-me muito bem e plenamente realizada. Não posso dizer que atingi a meta da felicidade porque isso é sermos santos e ainda não somos. É um caminho que Deus vai fazendo connosco. Há muita coisa que Ele quer purificar e corrigir em mim: os meus pecados e infidelidades de todos os dias. Isso não me faz ser plenamente feliz mas só o seremos no céu. No entanto, sinto-me uma mulher feliz e, infelizmente, há poucas pessoas que podem dizer isso. Sou muito feliz porque sei por que é que existo. Estou convencida de que o Senhor me quis carmelita e me faz feliz carmelita. Vivo para me unir a Ele e para sermos sinais ao mundo de que tudo o que se faz, nasce da oração e da união com Ele. Como diz São João da Cruz: "Um ato de puro amor é mais valioso do que todas as obras de misericórdia juntas". Às vezes há este dilema: "Por que é que vocês estão aí fechadas com a Igreja a precisar de tanta gente?". Há muitos cristãos que compreendem melhor outras vocações religiosas do que as das ordens contemplativas.

Mas as irmãs têm noção de que muitos cristãos reconhecem imensamente o vosso contributo na Igreja…
Um cristão consciente percebe que a oração é a primeira de todas as ações. Os frutos que isso dá, de bem para a Igreja, não sabemos calcular. Os apóstolos, os missionários, os doutores só fazem obras se o coração estiver a bater de amor. Se o coração está a bater cheio de amor, aquece todos: os que estão na Igreja e até os que estão fora. É um mistério porque Deus é que faz a obra.

Como é que a irmã vem parar ao Carmelo de Faro?
As irmãs daqui eram as que, naquela altura, tinham a página de internet mais desenvolvida e eu consultava-a muitas vezes. A determinada altura da caminhada, o meu orientador espiritual aconselhou-me a escolher uma comunidade na qual tivesse plena consciência de estar a viver a experiência de carmelita para testar a minha vocação e eu lembrei-me que na altura em que estive no Carmelo de Fátima passou por lá um visitador que comentou que também tinha gostado muito da comunidade de Faro. Fui à lista telefónica, liguei para cá e vim passar uns dias.

Até a internet contribuiu para a descoberta da sua vocação…
É verdade. A internet tem muitas coisas más mas também muitas coisas boas e que temos de aproveitar estas. É um meio de comunicação fortíssimo pelo qual podemos evangelizar.

Portanto, apesar de as irmãs viverem em clausura, acompanham a atualidade…
Sim. Vivemos a nossa intimidade com Deus para acender esse «fogo» que abranja todos, sempre viradas para o que está a acontecer no mundo, mas sem entrarmos nesse frenesim que se vive hoje, sobretudo na área da comunicação.

Antes de entrar para o Carmelo vivia nesse frenesim…
Vivia. Quando estava no banco, a cada segundo, entravam três notícias da Reuters.

E como é que conseguiu fazer a transição para o ritmo atual?
Estava tão apaixonada por Jesus que me encaixei muito bem e não tive dificuldades nenhumas.

Como é o dia a dia das irmãs?
A nossa vida aqui é muito simples: umas fazem costura, outras limpam a casa, outras fazem bordados, outras trabalham na quinta.

E a irmã faz o quê?
Agora estou a fazer os hábitos [risos], eu que nunca peguei numa agulha… De vez em quando, rodamos os ofícios. O trabalho na cozinha muda todos os dias, há tarefas que mudamos todas as semanas como lavar a louça ou o trabalho no refeitório e depois há grandes ofícios que, por requererem mais programação dos trabalhos, são mudados de tempos a tempos. Normalmente, quando muda a prioresa, há uma revisão dos ofícios, até para termos experiência de todos os trabalhos, consoante também o jeito que temos. Eu, como não tenho muito jeito para nada, dá para experimentar tudo [risos]. Nunca tinha cosido e agora estou a fazer hábitos. Isto é um autêntico milagre! [risos]

Mas como é um dia vivido aqui?
Levantamo-nos às 6h, temos uma hora de oração silenciosa e depois a missa às 7.30h. Depois da missa rezamos Tércia [oração das 9h da Liturgia das Horas (LH)], vamos tomar o pequeno-almoço e entramos na hora de trabalho até ao meio dia, altura em que vamos de novo, todas juntas no coro, rezar Sexta [oração das 12h da LH] e a seguir vamos almoçar. A seguir ao almoço temos uma hora de recriação em que estamos todas juntas a conviver e a contar as pequeninas coisas da manhã. No final do recreio fazemos uma visita ao Santíssimo Sacramento e temos uma hora livre. Às 15h temos Noa [oração das 15h da LH] todas juntas no coro e, a seguir, de novo o trabalho. Às 18h temos, de novo, uma hora de oração silenciosa, seguida de Vésperas [oração do final da tarde da LH] e do jantar. Segue-se mais uma hora de recriação e depois voltamos ao coro para rezar o ofício de Completas [oração da noite da LH], seguindo-se o recolher. Isto é assim desde que existe o carmelo teresiano [século XVI]. A nossa vida está organizada e equilibrada, psicologicamente, para a estrutura humana e preparada, teologicamente, para estarmos ao serviço da Igreja como pessoas, absolutamente, equilibradas.

Acha que falta esse equilíbrio na sociedade de hoje, na vida das pessoas?
Pois, se calhar, falta… Falta, acima de tudo, tempo para estarem a sós consigo mesmas. As pessoas não têm tempo para rezar! E o pior é que algumas não têm consciência de que isso é importante! Nem que fosse um quarto de hora! Não pedia que fizessem duas horas como nós temos o privilégio de ter no nosso dia. A vida é muito frenética e se as pessoas não têm a consciência de que é importante parar para estarem consigo mesmas e para perceberem que Deus está dentro de si, é difícil esse equilíbrio.

As irmãs, como qualquer comunidade religiosa, vivem daquilo que produzem…
Sim. E das pensões das irmãs que já são pensionistas. Essa é a nossa principal fonte de receitas para vivermos.

Produzem aquilo que consomem em termos de alimentação?
Quase. Vamos pedir algumas coisas a hipermercados, produtos que têm dificuldade de escoamento e que já estão perto do prazo limite de validade. Mas temos alguma agricultura biológica realizada por duas irmãs que percebem muito disso.

Acha que se tem vindo a perder o sentido da importância da espiritualidade na vida do Homem?
Sim e não. Sim, em relação à espiritualidade verdadeira. Não, porque, do que nos contam, há muita procura de espiritualidade mas em sítios errados. De facto, as pessoas procuram mas há muita procura de espiritualismo e não de espiritualidade. Se calhar mais ou menos conscientes desse frenesim e das preocupações terrenas que são tão sérias, às vezes esquecem-se que há coisas superiores e que lhes dão força para viver essas situações. Aprender a ter a certeza de que Ele está sempre presente –, quer nos momentos em que corre tudo bem, quer nos momentos difíceis –, é um dom para alimentar a fé, para as pessoas não resvalarem e não irem à procura de outras espiritualidades que até parecem dar sensações muito boas, mas que são um engano.

Como é que vê, neste último século, o avanço de correntes culturais como o hedonismo e o relativismo?
É fruto, penso eu, do que nos trouxe a Revolução Francesa. É resultado daquele processo que se iniciou – quer a nível da Filosofia, quer dos sistemas económicos –, com o intuito de querer matar Deus, Jesus e a Igreja.

E pensa que isso tem contribuído também para a diminuição das vocações nos últimos 50 anos?
Contribui muito. As crises são sempre momentos para renascer e nós estamos num momento em que há sinais. Quem agora renasce na fé, renasce com mais convicção. É a limpeza do coração e das mentes. Até quem está fora da Igreja percebe que está a acontecer algo de grande no mundo e na Igreja. É muito cómodo a gente alimentar o nosso egoísmo com o relativismo. São filosofias e estados de vida de acordo com o nosso egoísmo natural, mas não vamos deixar que nos matem a esperança porque o Senhor está vivo.

Continuam a aparecer jovens vocacionadas aqui no Carmelo?
Sim. Não muitas mas aparecem de quando em quando. Infelizmente não é muito comum. O que acontece com muita frequência é raparigas fazerem perguntas através do nosso site na internet e a nossa Ordem tem uma equipa de padres e irmãs que respondem a esses contactos para ajudar as pessoas a fazerem discernimentos.

A irmã escreveu que "Jesus Cristo continua a chamar. O importante é fazer silêncio para O escutar". Acha que atualmente a sociedade não se faz o silêncio necessário para que isso aconteça?
Acho. Os jovens, neste frenesim todo, procuram a verdade, sensações fortes. Os jovens precisam de alguém que os vire para a verdade, de alguém que os ajude a saborear a sua consciência e a descobrir que Deus está dentro deles. Perdeu-se o sentido do pensar. Esta fortaleza pessoal de olhar para si e falar com a consciência é o toque que falta nos jovens. E depois, a partir daí, descobrem e saboreiam a beleza da espiritualidade e da interioridade porque percebem que têm uma força dentro de si que é Deus. O ser humano é corpo, alma e espírito. Temos de perceber que somos plenamente felizes quando estas partes estão totalmente harmonizadas. Há aqui um equilíbrio e quando cuidarmos estas três dimensões seremos pessoas seguras, livres e espontâneas para estarmos em paz connosco e com os outros. Acho que os jovens procuram isto. Temos muito medo de falar em mística e de coisas espirituais, quando é uma parte integrante do homem e é isso que há que despertar nos jovens.

O facto de ter estudado economia é uma mais-valia na sua vida consagrada?
O facto de eu ser economista não tem importância nenhuma. Os talentos são absolutamente secundários porque ninguém vem para o Carmelo para fazer coisas, mas para ser carmelita, uma amiga forte de Deus, para ser uma pessoa orante. O nosso trabalho é a oração contínua com Deus pela Igreja e pelo mundo, seja a fazer uma coisa no computador, seja a varrer o chão.
Que mensagem gostaria de deixar a alguém que se sinta interpelado a seguir também pelo caminho da vida consagrada?
Que leve a sério aquilo que lhe está a acontecer no coração e a não ter medo porque se é obra de Deus, o Senhor vai conduzir à felicidade que a pessoa deseja e precisa. E [aconselho também] a procurar uma ajuda, um diretor espiritual no qual tenha confiança e de fácil trato para falar de coisas íntimas. [Recomendo] que deixe de se perguntar o que é que o Senhor lhe quer e possa abrir o coração porque Ele ama-nos e, se há interpelações, não as podemos deixar calar porque nunca seremos felizes noutra coisa se não as esclarecermos.