HOMILIA DE DOM NUNO BRÁS

Entreguemos-lhe tudo. Entreguemo-nos. Basta tomar a sério a Sua entrega total por cada um de nós. Ele é o Senhor! O nosso Senhor

A incapacidade do povo de Israel de reconhecer o Messias, como escutávamos no evangelho há pouco proclamado, constitui um daqueles mistérios que apenas encontra um vislumbre de solução no “insondável desígnio” que, à recusa do povo do Antigo Testamento, faz corresponder o acolhimento do Evangelho entre os pagãos, a que S. Paulo faz referência na Carta aos Romanos (Rom 11,12).

Tomado por Deus em “asas de águia” (Dt 32,11; Is 40,31), Israel viu a glória do Senhor ao longo de toda a sua história, e foi por Ele particularmente preparado para acolher o Messias. Em cada momento da sua existência, em cada acontecimento vivido, delineava-se, cada vez melhor, o rosto daquele que, prometido a Adão como Salvador, foi sendo pedagogicamente anunciado e como que “construído” por Deus nas tantas figuras do Antigo Testamento que o prefiguravam.

Israel esperava-no com impaciência, é certo (como vemos igualmente no trecho de S. João) mas, ao mesmo tempo, diante dos seus olhos permanece como que uma cegueira — S. Paulo, na 2ª Carta aos Coríntios, fala de “um véu” que lhes tolda a visão, e os impede de contemplar a glória divina, tal como outrora os impedia de contemplar o rosto de Moisés, quando este regressava do encontro com Deus na Tenda da Aliança (2Cor 3,14) — uma cegueira que os faz encolher o coração às medidas do que pensavam e do que esperavam, em vez de os deixar surpreender (como aconteceu com Saulo no caminho de Damasco) por aquela presença que estava ali, bem à sua frente, por aquele acontecimento de que eles próprios eram participantes, mas cujo sentido lhes escapava: “Poderá vir da Galileia, em vez de Belém? Será este o Profeta, ou o Messias, ou é simplesmente um sedutor bem-falante?”

Facilmente o tempo da graça passa por nós e nos escapa, à conta dos véus que colocamos diante dos nossos olhos. No fundo, neste pecado se resumem todos os outros: é o pecado de quem não se deixa surpreender pela presença de Deus; de quem teme as alturas a que o voo divino nos convida, para permanecer pequeno, mesquinho mesmo, de coração estreito, e mente humanamente temerosa. Atitude compreensivelmente humana, mas incompreensível no cristão.

Compreensivelmente humana, porque aventurar-se no horizonte de Deus nos faz medo. É demasiado para nós. O abismo do amor divino; as transformações a que ele, inevitavelmente, nos conduz; a conversão que ele comporta; os critérios novos do agir e do pensar que ele nos exige concretamente, são um peso que tememos, uma radicalidade muito maior que aquela de alguém que se propõe percorrer a nado o oceano.

Israel tinha-o experimentado. Com o Mar Vermelho pela frente, e o exército do Faraó em sua perseguição; com a sede no deserto, e sem réstia de água para beber; com a fome e o cansaço do caminho, e as saudades das cebolas do Egipto; com a Terra Prometida, finalmente diante do olhar, e com o temor da conquista, dada a força aparente dos seus habitantes. É aquela hesitação humana (tão humana!) de quem teme dar tudo — ou, para usarmos as palavras da Escritura, de quem teme “escutar a Deus e amá-lo com todo o coração, com todo o entendimento e com todas as forças” (Dt 6,4-5).

Connosco são aquelas hesitações, aquela necessidade de, pelo menos, termos ainda alguma coisa que nos ligue à terra, para o caso de não conseguirmos esse mergulho na vida de Deus — sem percebermos que é precisamente esta hesitação em permanecer ligado ao Egipto que nos impede de chegar plenamente à Terra Prometida! É-nos, afinal, difícil o “todo”. Gostamos de saborear um pouco de Deus. Faz-nos bem. Até achamos que somos um pouco melhores. Mas falta-nos o arrojo da santidade. Uma atitude compreensivelmente humana, dizia. Mas incompreensível no cristão.

É certo que muitos são aqueles que confundem a santidade com a insensatez humana, apenas humana, tão humana que termina em si mesma: no gosto da originalidade, no orgulho do pensamento — o nosso mundo está cheio de pseudo-artistas (qualquer que seja a arte) e de pseudo-pensadores (qualquer que seja o domínio de pensamento), soberbos daquilo que pensam, que sabem, que são capazes, ou de irracionais fanáticos. E também desta atitude podemos e devemos ter medo. E havemos de nos precaver.

Mas não é por isso que aquela atitude hesitante é incompreensível no cristão. É que, como gosta de sublinhar o Papa Francisco, Deus já foi à nossa frente. Este Deus que venceu o abismo que O separava do ser humano para se fazer um de nós; este Deus que, como nos recordava há pouco o profeta, “era como manso cordeiro levado ao matadouro e ignorava a conjura que tramavam” contra Si (Jer 11,18): o abismo da entrega total, encontramo-lo vivido por Deus em primeira pessoa, em Nosso Senhor Jesus Cristo.

E é vivido não apenas como exemplo, de modo a não termos medo de o imitar: é vivido de modo a podermos fazer nossa a Sua Vida, a Sua entrega total. Porque, como afirma o Apóstolo Paulo, “Quem nos poderá separar do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? Realmente, está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte o dia inteiro; somos tratados como gado destinado ao matadouro (Sl 43,23). Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela força daquele que nos amou. Pois estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor que Deus que se manifestou em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rom 8,35-39).

Hoje, não são menores os milagres que diante de nós, Deus realiza. Basta ter os olhos abertos e ver os acontecimentos da nossa história individual e da história do nosso mundo.

O Deus que libertou do Egipto, é claro que pode fazer passar o povo a pé enxuto por meio do mar; o Deus que fez passar o povo por meio do mar, é claro que pode matar a sede no deserto; o Deus que matou a sede no deserto, é claro que pode alimentar; o Deus que alimentou todo o povo, é claro que pode fazê-lo entrar pela Terra Prometida. Porque é eterna a Sua misericórdia (Sl 135).

O Deus que me deu a vida, é claro que me pode oferecer uma família; o Deus que me ofereceu uma família, é claro que me pode dar a fé; o Deus que me deu a fé, é claro que me pode alimentar com o Seu Corpo e o Seu Sangue; o Deus que se me oferece como alimento, é claro que me pode fazer entrar na Terra Prometida! Porque é eterna a Sua misericórdia (Sl 135)!

Mas, então, porquê hesitar? Como a Pedro, Tiago e João na hora de angústia do Getsémani, também hoje, a cada um de nós, o Senhor nos interroga: “Nem uma hora fostes capazes de vigiar comigo?” (Mt 26,40). Não lhe entreguemos apenas esta hora. Entreguemos-lhe tudo. Entreguemo-nos. Basta tomar a sério a Sua entrega total por cada um de nós. Ele é o Senhor! O nosso Senhor