Protestos na praça Tahrir

A PRIMAVERA ÁRABE? ERA APENAS UM FILME DE HOLLYWOOD…

Pelos menos, da forma como os meios de comunicação social a pintaram. Meios de comunicação social que agora, mais do que contarem factos, procuram histórias para encaixar sob um título
John Waters

De tempos a tempos, é anunciada no mundo uma vaga de mudanças que se apresenta como um movimento decisivo na direcção daquilo que é ideologicamente definido como um “progresso”. Obviamente, nunca é expressa exactamente nestes termos. Chega antes através da subtil apresentação de uma série de factos de determinada forma, que provoca imediatamente uma expectativa no público. De repente, todos falam disso, a tv trata do assunto, a internet desfaz-se em informações.
Depois, a realidade toma a dianteira. Acontece alguma coisa que não se enquadra, mas durante algum tempo os meios de comunicação social tentam evitar que isso seja um problema. As coisas são minimizadas e explicadas de forma a manter viva a trama já decidida. No fim, a pressão dos factos e dos acontecimentos torna-se demasiado forte, e a história desfaz-se, até já ninguém falar disso ou até outro saltar com uma história oposta para explicar porque é que a primeira não se concretizou. E começa um novo filme.
Vimos um bom exemplo disto há três anos, com as chamadas “primaveras árabes”. Para qualquer observador atento da política do Médio Oriente, a ideia de que se pudesse verificar uma qualquer “revolução de veludo” naquelas paragens era bastante difícil de aceitar. E não só por causa do problema do islamismo, que muitos comentadores insistiam em ignorar ou desvalorizar. Pedindo emprestado um esquema narrativo ligado às revoluções de há vinte anos nos países da Europa, os meios de comunicação social insinuaram diariamente que o Facebook e o Twitter tinham dado início a uma nova era.
Não podia haver nada de mais tolo, e isso veio a confirmar-se. Não houve nenhuma “primavera”, mas apenas uma série de pseudo-revoluções que, na maior parte dos casos, desembocaram em situações piores do que as anteriormente existentes.
Alguma coisa mudou, desde os tempos em que os meios de comunicação social nos diziam simplesmente o que estava a acontecer e – sempre que possível – porquê. Hoje, é preciso insinuar imediatamente um esquema, e encerrar os acontecimentos sob um título previamente constituído, como o título dum novo filme. Os meios de comunicação social contam-nos “histórias” escritas como se fossem pensadas em Hollywood, em vez de nos contarem simplesmente a verdade.
Os jornalistas sempre usaram o termo “história” quando se referiam à matéria do seu trabalho. Mas obviamente, as histórias “reais”, no sentido clássico do termo (com um herói, um contexto temporal, um desenrolar que implica crises, passagens, solução) raramente se manifestam naturalmente na vida real. E estas histórias interrogam-nos porque, como a música, actuam sobre alguma coisa que é intrínseca aos desejos do homem.
A tarefa dos meios de comunicação social, porém, é contar às pessoas o que aconteceu, a realidade dos factos e o motivo pelo qual estas coisas interessam também a quem não está directamente envolvido. O jornalismo, pela sua natureza, mergulha em situações, vidas, épocas, em que as histórias, no sentido clássico do termo, são escorregadias. Mas hoje os meios de comunicação social insistem no facto de que cada “história” se deve adaptar a uma trama, com um percurso que tem que chegar a um processo de solução.
O facto é que estamos a assistir a uma espécie de hollywoodização do jornalismo. Em vez de contar simplesmente o que acontece, os meios de comunicação social hoje em dia tentam acomodar e “editar” os factos da vida real, para que se possam inscrever em tramas à laia de soap operas ou de contos populares. O jornalismo transformou-se num ramo da indústria de entretenimento, e procura converter a realidade em histórias no sentido clássico, com heróis, desenvolvimentos, conclusões e moral. A realidade já não chega.