A EUROPA? É PARA REFAZER
Pai socialista e mãe católica. O fascínio por Willy Brandt. A raiva dos vinte anos. Até à surpresa no Meeting de Rimini. O Presidente do Parlamento de Estrasburgo fala.«Cheguei céptico, fui-me embora contente». Pelo meio, evidentemente, alguma coisa aconteceu. E impressiona-nos que para falar da Europa e de confiança, de crises a vencer e ideais a relançar, Martin Schulz, de 58 anos, alemão de Hehlrath, social-democrata, presidente do Parlamento europeu desde 2012, parta precisamente dali, de um facto que lhe aconteceu há seis meses atrás, no Meeting de Rimini. «Surpreendeu-me muito. Não pensava que fosse um evento tão imponente. Aliás, para dizer a verdade, achava que era uma espécie de congresso de uma associação de católicos conservadores. Em vez disso, vi um punhado de jovens vindos de todo o mundo. Vi pessoas muito sérias, a discutir os desafios que nos esperam, mas ao mesmo tempo com um optimismo intacto».
Schulz não é homem para se surpreender facilmente. Já viu muita coisa, numa carreira que começou muito cedo. Inscrito no Spd desde os 19 anos, depois duma adolescência complicada (começou a beber quando um azar num joelho despedaçou o seu sonho de ser futebolista, saiu disso com a ajuda do irmão, médico) e de um liceu feito com dificuldades, foi livreiro, antes de se tornar político a tempo inteiro: o presidente de câmara mais jovem da Land e depois, em 1994, eurodeputado. Tornou-se famoso em Itália em 2003, graças a uma troca de opiniões não propriamente institucionais com o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi (Schulz atacou fortemente os processos e conflitos de interesses, o Cavaliere respondeu que o iria propôr «para o papel de kapo num filme sobre as SS».
E no entanto, aquele que encontramos à nossa frente numa salinha do último piso da Torre Louise Weiss, o edifício europeu de Estrasburgo, não é um homem rude. Sorri ao ver a fotografia em que dança a tarantella nos pavilhões de Rimini, arrastado por um grupo de voluntários («eram australianos, não eram? Ah, não, já me lembro: canadianos!»). Recorre muitas vezes à ironia. E vê-se que não é apenas por cortesia com o seu interlocutor que diz daqueles jovens: «Creio que é esta a verdadeira diferença entre velhos e novos: os jovens não temem os riscos, não têm medo. Se os jovens bloqueassem diante dos riscos, nunca haveria desenvolvimento. E ali em Rimini, vi gente que não tinha medo».
Partamos então daí, Sr. Presidente: riscos e medo. Para muitos, a Europa está a transformar-se nisso. O que é a Europa para si?
É ainda uma ideia, simples. A ideia de que alguns países ultrapassem as fronteiras e se juntem numa instituição, porque sabem que já não podem combater-se uns aos outros. É uma ideia que combina capacidades muito heterogéneas: é uma espécie de mosaico de tradições, experiências, culturas diferentes. Bem, esta ideia ainda está viva, vibrante: se falarmos com as pessoas, damo-nos conta disso. Mas há um problema: que muitos, sobretudo entre os jovens, pensem que não tem nada a ver com a união europeia. Uma vez o meu amigo Wim Wenders, o realizador, disse-me uma coisa que descreve bem esta percepção: «A ideia tornou-se administração. E agora as pessoas pensam que a administração é a ideia.». Nós temos que escolher: ou renunciar a esta ideia, ou mudar a administração. Eu prefiro a segunda hipótese.
Mas como? O antieuropeísmo crecfe pro todo o lado, fora e dentro dos partidos. E no Parlamento que vai nascer em Maio há uma boa probabilidade de encontrarmos cerca de 25 a 30% de eurocépticos.
Haverá muitos, mas não ao ponto de bloquear o trabalho das instituições. Feitas as contas, mesmo contando tudo – da vossa Lega ao Front National francês, aos nacionalistas húngaros, até aos conservadores britânicos, que são eurocépticos doutra forma – serão entre 100 e 130 deputados. Claro, se dermos ao mundo exterior a impressão de que serão a extrema-direita e os eurocépticos a definir a direcção da união, o que acabará por acontecer é que, no final de contas, estes a vão condicionar. Mas se as grandes famílias dos partidos europeus, populares e centro-esquerda, apresentarem candidatos credíveis, torna-se mais claro que votar nos eurocépticos não serve para nada. Não é um voto útil.
Sim, mas o problema mantém-se: como é que se faz para recuperar a confiança das pessoas? É apenas uma questão de âmbito institucional, como referiu, ou existem também outros factores? Talvez o debate sobre as raízes perdidas – também cristãs – e os ideais perdidos pelo caminho não fosse uma discussão inútil…
Repare, eu acho que a perda de confiança é a chave dos problemas, da União e dos próprios estados nacionais. Somos menos capazes de proteger os cidadãos, de assegurar o seu bem-estar. Dou-lhe um exemplo, pessoal: eu sou um alemão do pós-guerra. Aos meus pais, foram pedidos sacrifícios que nós hoje nem sequer conseguimos imaginar: salários baixos, horários de trabalho grandes, muitos impostos, nada de férias. Os meus pais tinham cinco filhos, e o meu pai era um polícia, nem sequer chefe. Tiveram que pagar do seu bolso para nos mandar à escola: o estado não tinha dinheiro. Os meus pais foram de férias a primeira vez quando o meu pai tinha sessenta anos. Sessenta, está a perceber? Mas por que é que esta geração aceitou todos estes sacrifícios? Simples: «Fazemo-lo pelo futuro dos nossos filhos. Para que seja melhor que o nosso»
E hoje?
Hoje acontece que a minha geração, os que estamos hoje no poder, está a pedir às pessoas para trabalharem mais, pagarem mais impostos, reduzirem os salários e contentarem-se com serviços piores. Mas para quê? Para salvar os bancos. Não as pessoas. Isto é o que milhares de pessoas pensam. Não é uma surpresa que tenham perdido a confiança. As pessoas pensam: as instituições preocupam-se com a crise financeira, mas não têm tempo para nós. Uma rapariga espanhola disse-me há uns tempos: «A Europa gastou 700 biliões para salvar os bancos. Sr. Presidente, diga-me: quanto dinheiro é que tem para mim?» Se nós pudéssemos dizer aos pais, em Itália ou na Alemanha: vocês têm que fazer sacrifícios, mas garantimos-vos que a vida dos vossos filhos será melhor, todos os fariam. Por isso uma questão-chave é combater o desemprego jovem. Falámos precisamente disso com Enriço Lessa, na última cimeira: se conseguíssemos garantir a todos os jovens saídos da escola ou da universidade um lugar no mercado de trabalho, seria um ponto de retoma enorme. Restituiria confiança às pessoas. Também confiança nas instituições.
Mas mais uma vez, como? A retoma, por enquanto, está asfixiada. Como é que se volta a dar impulso à economia? E não terá chegado a hora de abrandar os laços da austeridade? Faço esta pergunta ao Presidente do Parlamento, mas também a um alemão…
Temos que mostrar às pessoas que queremos mudar de direcção. Dou-lhe três exemplos de coisas a fazer imediatamente. Primeira: a maior parte dos trabalhos, também para os jovens, são criados pelas pequenas e médias empresas. Ora bem: são estas empresas que têm mais problemas de acesso ao crédito. O credit crunch afectou sobretudo as médias e as pequenas, em quase todos os estados. Ultrapassar isto é a primeira coisa que devemos fazer. Temos que nos focar nisto. Como? Segunda: impondo mais regras aos mercados financeiros. Não podemos aceitar que enquanto o Banco Central Europeu tem o custo do dinheiro a 0,25%, os bancos vão buscar o dinheiro a estas taxas e, em vez de financiar a economia real, fazem investimentos financeiros e especulações. É preciso haver mais regras e um maior controlo do mercado bancário. Terceiro: quem tem lucros numa determinada zona, deve pagar os impostos ali. É um princípio muito simples, não é preciso haver um ministério único da economia europeia para chegarmos aqui. A estimativa é de mil biliões de euros de impostos não pagos todos os anos. Na Alemanha, há empresas como a Google que ganham 3 biliões de euros e não pagam um cêntimo de impostos. A austeridade não é apenas uma questão de cortes, mas também de entradas. Para isso é preciso haver mais disciplina fiscal a nível europeu. São tês coisas muito simples, mas funcionam.
Sim, mas e as obrigações?
Repare, eu percebo os italianos. Creio que o vosso Presidente fez recentemente uma observação que explica bem a atitude dos italianos em relação aos alemães. Ele disse: nós não fomos buscar um euro ao mecanismo europeu de estabilidade, mas metemos lá 53 milhões. A França 62. A Alemanha 82. França e Itália juntas pagaram para a estabilidade mais do que a Alemanha, mas toda a gente na Europa pensa que é uma coisa alemã… Mas aqui voltamos à questão inicial. A minha recomendação é que a União volte a ser uma cooperativa entre países, não um cenário de competição.
Em Maio são as eleições, e em Julho começa o semestre da presidência italiana; que papel pode representar a Itália neste percurso de retoma?
Um papel de destaque, a todos os níveis: económico, institucional e político. No que diz respeito à economia, sublinho sempre – às vezes mais do que o que fazem os próprios políticos italianos – os pontos fortes da vossa economia: um deficit público controlado, um baixo endividamento das famílias, um sistema bancário saudável, as autarquias que souberam diminuir custos e reconverter-se, uma exportação que está a voltar a crescer… Letta fez bem em colocar a diminuição do custo de trabalho no centro do seu programa, para relançar o crescimento e o emprego. Mas a luta contra a crise não permite tréguas: as reformas têm que ser levadas por diante com mão firme. E eu acho que a estabilidade de governo é uma condição necessária para agarrar a retoma na Europa. Mas o contributo de Itália será fundamental também a nível europeu. Em termos de “forças”, a presidência italiana não será uma presidência “legislativa”: coincide com o semestre branco que levará à renovação da leadership das instituições. Mas será uma presidência de visão. A Europa precisa de toda a força do pragmatismo visionário da Itália para se reformar. Creio que a renovação interna da política e das instituições italianas pode acompanhar de forma positiva esta delicada fase de transição para toda a Europa.
Não acha paradoxal que enquanto entre nós se espalha desilusão com a Europa, na Ucrânia as pessoas saiam às ruas durante dias inteiros para apanhar o nosso comboio? O que é que procuram os ucranianos que se manifestam com as bandeiras da União?
Acima de tudo, acho que procuram os valores ocidentais. Querem fazer parte duma comunidade democrática, baseada em valores democráticos. Não é uma luta entre a Rússia e a União Europeia, é uma luta interna no país sobre o futuro do país. É um reflexo contra um governo que tentou restaurar mecanismos e medidas autoritárias. Yanukovich tem que respeitar os padrões internacionais de democracia, se quiser tornar-se um parceiro de relevo para nós. As pessoas que se manifestam em Kiev querem estar presentes. Aquilo que devemos fazer, enquanto União, é ajudá-los a encontrar uma combinação de segurança económica, individual, e de direitos. Nós damos como certa a liberdade garantida pela nossa história e pelas instituições europeias. Não é. Deveríamos ter isso mais em conta.
Há outra fronteira quente na União: o Sul. Foram precisos meses e o naufrágio de Lampedusa para que se começasse a olhar para a emergência que são os refugiados como uma questão europeia, e não apenas italiana. Mas não lhe parece que falta uma visão sobre as relações com a zona mediterrânica?
É uma das minhas maiores amarguras, nos últimos tempos: o quanto estamos a subvalorizar o potencial que reapresentam para nós as relações com a África. Líbia, Egipto, Tunísia, Nigéria… são tudo países que têm um grande potencial. Não apenas de energia. Ali se encontram centenas de milhares de pessoas que passam de repente do século XIX para o século XXI. Pense no Cairo: 22 milhões de habitantes, e não se pode beber água. Precisam de infra-estruturas. São investimentos com um potencial enorme e com um efeito muito grande na política: significaria dar a estas pessoas não apenas alimento, mas também trabalho. Mas quem é que pode ser sócio duma coisa destas? Quem é que pode dar o know-how, os financiamentos, as ideias? A Itália, a França, a Espanha. Os países que têm uma grande tradição de relacionamento com esta zona. Encarar os problemas do Mediterrâneo é encarar os problemas de uma faixa da Europa. Mas para o fazer, é preciso mudar de política, sem dúvida.
Há algum tempo, foi impressionante a sinceridade com que falou da sua juventude difícil: o álcool, os problemas na escola… Mas por que é que começou a fazer política?
Cresci numa zona de mineiros e operários. E numa família muito politizada. Os meus pais tinham opiniões muito diferentes: o meu pai era social-democrata, a minha mãe uma activista católica e votava Cdu. Mas o amor era mais forte do que a militância. Eu sou o resultado disto. Andei na esquerda, como os meus irmãos, até porque eram os anos de Willy Brandt, havia motivações de ideias fortes. Eu era um tipo muito inquieto: com raiva, diria. Olhando para hoje, vejo que perdi muita daquela raiva. Mas não os ideais.
A propósito de ideais: primeiro falou do Meeting, agora daquilo que viu também na sua família. Na sua opinião, que contributo pode o catolicismo dar para enfrentar a crise?
Não creio que seja a pessoa mais indicada para responder a essa pergunta. Mas posso dizer-lhe que eu, tal como milhões de outros cidadãos no mundo, crentes ou não, fiquei muito tocado com as palavras do Papa Francisco, pela sua verdadeira humildade, pelo seu ecumenismo genuíno e pela sua atenção para com as periferias do mundo, materiais e não materiais. Também a União deve aprender a abrir-se. Demasiada introspecção e auto-referencialidade são males comuns às instituições europeias: às vezes corremos o risco de sermos demasiado “Bruxelocêntricos”. A Europa transformou-se de força ao serviço da paz em força administrativa e de regulamentação, mas na ausência de ideais sólidos, de um sentido de dedicação aos objectivos e de uma missão conjunta, a sua legitimidade encaminha-se para um declínio inexorável. Julgo que parte destes ideais se encontra na mensagem que o Papa nos deu na sua exortação apostólica, a Evangelii Gaudium: não a uma economia da exclusão, não a um dinheiro que governa em vez de servir e não à iniquidade que gera violência.
Mas que efeito lhe causou o encontro com o Papa, há três meses?
Transmitiu-me muita força, energia e confiança: confiança no diálogo, confiança na solidariedade e confiança nos valores, sobre os quais podemos não estar de acordo, mas sobre os quais nunca podemos deixar de dialogar.