Pepe Rodelgo com a equipa de futebol americano do Colégio St. Brendan de Miami.

Madrid. Um jogo sempre em aberto

A carreira militar, a morte do irmão, o desejo de dar a vida por um grande ideal. Pepe Rodelgo conta como descobriu aquele "ponto irredutível" de sua pessoa, que hoje o faz viver, mesmo na doença.
Anna Leonardi

Um acidente de trânsito. Um choque traseiro no caminho de casa. Foi assim que José Rodelgo-Bueno, conhecido como Pepe, diretor de uma escola em Miami, descobriu aos 51 anos que tinha cancro. Os exames, feitos nas Urgências para verificar se não havia lesões na coluna, revelaram a presença de uma massa tumoral no abdómen. «Os médicos disseram-me que eu tinha sorte. É dum tipo que não tem sintomas e que teria degenerado silenciosamente. Propuseram-me um plano de tratamento e tornou-se claro que, a partir daí, algo de diferente começava para mim». O acidente teve lugar no dia 17 de abril de 2019, data que Pepe fixou, juntamente com outros três momentos fundamentais da sua trajetória, devido à reversão que causam e que para ele coincidem sempre com um “chamamento dentro do chamamento”. Situações em que a vida se tornou frágil e o expôs à grande alternativa, entre «ser esmagado pelas catástrofes ou encontrar o ponto irredutível que me mantém de pé».

Quando aconteceu pela primeira vez, Pepe tinha 20 anos. Frequentava a Academia da Força Aérea em Madrid, onde nasceu e cresceu. «Eu queria servir o meu país. Era o maior ideal ao qual eu podia dar a vida, pensava eu». Tinha uma promissora carreira militar pela frente, mas alguma coisa se bloqueou quando o Hector, um dos seus colegas, morreu durante um exercício de voo. «Chamaram-me, junto com outro aluno, o então príncipe Felipe, agora rei de Espanha, para velar o corpo. Durante uma hora, ficámos em posição de sentido, olhando nos olhos um do outro, conforme o protocolo exigia, diante do corpo do nosso amigo. E a minha cabeça estava cheia de perguntas: «Onde estava o Hector, que riu e brincou connosco de manhã? O que era a nossa vida, se num instante podia acabar?». São perguntas que o acompanharam e o magoaram até no dia da formatura: «Finalmente era tenente, mas estava triste. Sentia o desconforto de querer dar a vida, sem saber já muito bem quem era».

Destacado para Madrid, começou a frequentar a Faculdade de Economia, onde fez amizade com um grupo de jovens de Comunhão e Libertação: «Eu não era religioso, mas tinha-me apaixonado por uma rapariga e comecei a participar das reuniões». Não demorou muito para perceber que a fé que eles viviam tocava todas as suas perguntas e despertava o desejo de viver por um grande ideal. «Eu lancei-me naquela nova vida. Estava noivo e queria casar-me. Todos os dias, depois de trabalhar na base aérea, ia para a universidade e, às vezes, para a paróquia, onde fazíamos caritativa com alunos do liceu». Para Pepe, parecia que tudo finalmente estava em equilíbrio. Mas havia um aguilhão que lhe sugeria que o jogo ainda estava em aberto. «Sentia crescer uma paixão por ensinar, sentia uma satisfação que não me deixava em paz em relação à minha carreira».

Assim chega o segundo chamamento, o da vocação. «A minha vida estava cheia de relações e encontros. Eu olhava para as pessoas sempre com sede. A minha pergunta sobre como dar a vida, em vez de se acalmar, inchava cada vez mais». Um dia, em agosto de 1993, conheceu o Enrique, dos Memores Domini (leigos que vivem a dedicação da vida a Cristo): ouviu-o dar um testemunho. Mas acima de tudo, olhou para ele. «Vi um homem que vivia apoiado não nas suas próprias forças, mas que tinha sido “tomado”, magnetizado por uma atração que tornava possível aquela vida especial. Comecei a verificar se seria esse o caminho também para mim».

Mas o horizonte era ainda mais vasto do que imaginava. O seu irmão Ricardo adoeceu, e isso mais uma vez atrapalhou os seus planos. «Era o meu irmão mais velho, era brilhante, animado. Para ele, a vida tinha de ser uma aventura extrema. Fazíamos longas viagens de mota. Quando eu lhe confidenciei a minha vocação, ele não aceitou bem. Dizia: “Eles fizeram-te uma lavagem cerebral”. Mas, no período terminal da doença, acontece uma coisa com o Ricardo que abana profundamente Pepe. «Com o tempo, os cuidados da minha mãe e a presença dos meus amigos em casa amoleceram-no. Um dia, pediu-me que chamasse um dos “meus amigos padres”. Não sei o que disseram, mas desde o momento em que se confessou, o meu irmão nunca mais parou de sorrir. Era outro. Morreu quatro dias depois nos meus braços, confiando-se a Jesus.» A ideia da missão entrou na vida de Pepe naquele instante: «Eu queria contar a todos o que tinha visto acontecer com o meu irmão».

Em 2002, Pepe, que tinha começado o caminho dos Memores Domini, deixou a Força Aérea para ensinar. Aceitou uma missão em Porto Rico, porque a diocese tinha pedido pessoas do Movimento e, quatro anos depois, mudou-se para Miami, onde, em 2012, se tornou diretor do Colégio St. Brendan. «Nestes quase vinte anos de missão, guardei sempre no coração o que don Giussani me disse depois da Profissão nos Memores, em 2004: “Jesus chegou até ti. Tu és como que o elo de uma cadeia muito longa. Vamos lá, vai!” Comecei a perceber que poderia viver a missão por pertencer a esta história que, através dos homens, me ligava a Jesus».

Quando o cancro chegou, a força daquelas palavras tornou-se ainda mais radical: «Durante dois anos, tentei aguentar: era diretor a tempo integral e encaixava a quimioterapia, as ressonâncias e os exames de sangue. Tentei manter a notícia confidencial, porque não queria que a minha mãe, em Espanha, soubesse. Mas, na realidade, era eu que não queria desistir». Até que a gestão disso se tornou insustentável. «Tive de me render ao aspeto mais misterioso da doença: é uma circunstância à qual não podes dizer não. Ela está lá e tu não podes escapar. Fui novamente chamado a viver uma vocação dentro da vocação». O primeiro passo foi deixar Miami e voltar para Madrid, onde teria melhores condições para lidar com o avanço da doença. «Foi difícil entrar naquele avião. Tinha de deixar morrer a ideia de que ficaria em missão até ao fim, sentado lá na minha mesa de diretor. Mas percebi que, se não aceitasse viver a doença, poderia continuar a fazer tudo em nome da fé, com o risco de a perder. Agora a missão já não é os Estados Unidos, sou eu».

A vida de Pepe em Madrid mudou de ritmo: dos 200 quilómetros por hora em Miami, chegou a zero de velocidade. As dores muitas vezes o obrigaram a ficar numa poltrona o dia todo. Em casa, os outros sete homens dos Memores com quem ele vive, alternando-se, assistem-no nas suas necessidades. De manhã há a missa, depois o pequeno-almoço juntos, se ele estiver bem levam-no até à piscina. Alguns amigos vêm visitá-lo à tarde. Depois, à noite, encontram-se para as Vésperas. «Às vezes eu nem me dou conta das dores, não porque elas não estejam lá, mas porque há algo maior, porque estou numa vida que me faz ver outra coisa». Como quando, um mês depois do seu regresso a Espanha, recebeu a caixa, que tinha sido colocada na escola após a sua partida, com mais de quinhentas cartas dos seus alunos e colegas. Levou um mês para as ler todas. Bem a tempo de o correio entregar mais duas. «Eles contam-me as suas vidas. Colocam nas minhas mãos as coisas mais preciosas que têm. Como se de alguma maneira a minha doença os tivesse colocado diante de Deus. Nem sempre podemos vencer o cancro. Mas esta é a minha vitória: notar estes frutos que amadurecem mais do que se eu tivesse ficado lá, a poucos metros deles». Eles são outro elo daquela cadeia muito longa.