Salvatore Veca. A verdade viva
Morreu aos 77 anos o filósofo conhecido pelas suas reflexões sobre a justiça. A Passos tinha-o entrevistado em 2013 por ocasião do diálogo entre Francisco e Eugenio Scalfari, no qual o Papa afirmou que “a verdade é sempre uma relação”."Para começar", escreveu o Papa Francisco no passado dia 11 de Setembro no Repubblica, «Eu não falaria, mesmo para aqueles que acreditam, em verdade “absoluta”, no sentido de que absoluto é o que é desligado, o que é destituído de qualquer relação. Ora, a verdade, de acordo com a fé cristã, é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação! [...] Isso não quer dizer que a verdade seja variável e subjectiva». Para começar, escreveu ele; e talvez nem mesmo ele pudesse prever onde iria terminar. Que onda de reacções, pensamentos, raciocínios, impulsos missionários e talvez até instrumentalizações teria gerado com aquela seta disparada numa "periferia" fora do pensamento cristão, a Repubblica fundada por Eugenio Scalfari. Um dos desdobramentos dessa onda chegou também à costa de um dos mais importantes filósofos italianos, Salvatore Veca, professor de Filosofia Política em Pavia, que há décadas pensa - a partir de uma posição não religiosa - na verdade e na certeza. Com a Passos, ele aceita confrontar-se com a "pedrada" lançada por Bergoglio.
O que é que pensou quando ouviu o Papa falar da verdade como um relacionamento?
Fiquei muito impressionado com este ênfase: o Papa fala da verdade como algo que não pode estar vivo a não ser em termos de relacionamento. Para ele é uma verdade que se situa no domínio da fé: mas o que chama a atenção é o sublinhado da dimensão da experiência. É muito coerente com o que está na base do modo de empenhamento deste Pontífice no confronto das ideias e do diálogo. As razões pelas quais Bergoglio aceita esta confrontação não são independentes da sua experiência. Há uma superação em relação à defesa de razões vinculadas a uma interpretação institucionalmente autorizada de uma doutrina. Parece-me que todo o método com que Francisco se dirige aos outros implique questionar a sua própria experiência sobre o sentido da vida. O tom da sua carta generosa e sincera torna natural insistir no facto que a verdade é algo que só faz sentido se for "encarnada".
Como é que essa concepção de verdade se coloca relativamente ao percurso da filosofia contemporânea?
É difícil tentar uma resposta breve. A filosofia contemporânea aborda o tema da verdade a partir de proposições e enunciados: estabelece nexos de verdade com o que é dito. "Agora está a chover" é verdade ou não, dependendo de quando dizemos a frase. É fácil experimentar como, na realidade, nos relacionamos com a verdade também em termos de interpretações: a "verdadeira" moeda, que significa "não falsa", por exemplo. Em suma, dependendo do campo com que lidamos, o método para atribuir o valor de verdadeiro varia. O Papa questiona-se ligando o conteúdo da sua mensagem à sua dimensão experiencial, isto é, colocando o problema da verdade de Deus como crucial para a vida do homem. Numa das últimas conversas que tive a honra de ter com Ronald Dworkin (1931-2013; nde.), grande filósofo que morreu há poucos meses, ele antecipou o significado do seu livro publicado postumamente (ainda não em Itália), Religion without God, isto é, Religião sem Deus. Ele defendia que existe um "temperamento religioso" que não requer um encontro com o divino. Esta profunda diferença entre ele e Bergoglio interroga-me muito. Entre outras coisas, sou fã de um outro jesuíta, Matteo Ricci (1552-1610; nde). Reconheço uma grande sintonia no pôr-se em jogo. Na China, num contexto totalmente “outro”, conseguiu encontrar uma forma de falar, explorando também a iconografia, mantendo-se atento e leal a si próprio e, precisamente por isso, ouvindo. No prefácio de Feng Yingjing ao De Amicitia del gesuita, Ricci é chamado "aquele que vem de muito longe", uma expressão semelhante à do "Papa que veio quase do fim do mundo" usada por Francisco na noite da sua eleição...
Mas a verdade como relacionamento pode ser um método válido mesmo fora das certezas da fé? Não cairia no relativismo?
Para mim é válido. Não significa ocultar as diferenças de grau, mas reconhecer que não se pode defender nem "dizer" a verdade sem relação com o outro. Para captar o que importa, o elemento da relação é fundamental, e a própria verdade oferece-se ao reconhecimento de um outro sujeito. Esta dinâmica é estranha ao relativismo: o facto de os homens terem experiências diferentes e viverem acentos diferentes da verdade é um simples reconhecimento da variedade. O relativismo ou niilismo são determinados quando o puro gosto se torna o critério. Mas a existência destas diferenças é o pressuposto que salva um confronto de ser puramente diplomático.
No entanto, as próprias pressuposições desse confronto às vezes são negadas. O teólogo protestante Reinhold Niebuhr escreveu que "não há resposta mais absurda do que aquela a uma pergunta que não se fez". Não acontece que a própria verdade seja considerada desnecessária, pouco atraente e, portanto, inacessível ou inalcançável?
Sem generalizar, sim. Há uma sensação difundida de que a realidade não importa, como se a sua consistência não fosse um valor intrínseco. Isto no homem contemporâneo coexiste com uma fome absoluta de veracidade que eu chamaria de "controlo". Pensemos no quanto nos preocupamos com a verdade de um diagnóstico médico, ou com as características de um carro, ou com as cláusulas de um contrato. É um tema suspenso entre a obsessão pela veracidade e o descrédito da verdade. Oscar Wilde costumava dizer que a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados a fazer outra coisa. E é verdade que as pessoas se perguntam sobre o sentido da vida quando algo acontece. Seria necessário um exercício mais "reflexivo" para activar esta dinâmica.
Hoje Bergoglio é atacado "pela direita", especialmente dentro da Igreja, e protegido "pela esquerda", não apenas na Igreja. Apercebe-se de um salto real em relação a Ratzinger, que teve uma sorte oposta?
Não de descontinuidade doutrinária. Vejo em Bergoglio a preeminência de uma ideia de movimento na Igreja, percebida como uma realidade em contínua reforma, e uma forte e plena implementação e reformulação do Concílio. As interpretações e as muitas críticas que temos visto até agora parecem-me de curta duração, e não me apelam a torcer por elas.
É mais interessante ver o que acontecerá depois disto, que é apenas o início do Pontificado.
O senhor dedicou décadas ao estudo do tema da certeza-incerteza e, portanto, sobre a verdade. Qual é a sua posição em relação ao problema da verdade da reivindicação de Cristo de ser filho de Deus, morto e ressuscitado?
A minha pesquisa é sobre a fronteira móvel entre o certo e o incerto. O cristianismo coloca essa fronteira na vertigem da metanóia, da conversão da qual Saulo / Paulo é o protagonista mais impressionante. Para mim, o problema Cristo tem a ver, em primeiro lugar, com a verdade e a identidade. A pergunta milenária sobre a qual nasce a única religião que prevê a encarnação, "E vocês, quem dizem que eu sou?", é toda jogada sobre a identidade. Jesus não disse: "Eu conheço a verdade", mas "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Estamos diante de um salto que, para ser compreendido, exige que o homem se confie a um relacionamento. Sem este, o significado da verdade sobre Ele muda. Para mim, que não acredito, a origem de Cristo e da sua pergunta permanecem como banda sonora no pano de fundo da vida.