Elisa Fuksas (foto: Marco Cella)

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Nascida e criada longe da Igreja, Elisa Fuksas, realizadora, escritora e filha do famoso arquiteto Massimiliano, conta o que a levou à fé e ao Batismo. Mas, acima de tudo, o que teve início a partir daí. “Simplesmente viver”.
Luca Fiore

Chega para a nossa entrevista num café, no centro de Roma. Ao sentar-se, tira a máscara que combina com o casaco e as calças pretas. Sorri com os olhos, mas as suas primeiras palavras são sobre a pandemia: “Ah, este Covid! Não tem medo?”.
Jovem, bonita e com um apelido sonante, Elisa Fuksas é filha do famoso arquiteto italiano Massimiliano. Atualmente está ocupada com o lançamento do seu último livro, Ama e faz o que quiseres (ainda sem edição em português), e do documentário apresentado no Festival de Cinema de Veneza, iSola. Estas obras contam a história dos últimos três anos da sua vida. No livro, explica como, tendo nascido em Roma, numa família abastada, liberal, de esquerda e serenamente agnóstica, começa, de repente, (mas não tanto) o percurso para receber o Batismo. O documentário é composto pelos filmes que fez com o telemóvel durante o confinamento, na véspera do qual foi diagnosticada com um cancro na tiroide. O mundo parou e ela ficou sozinha em casa com o seu diagnóstico e o medo do contágio. E outra notícia: a doença, mais uma vez um cancro, de uma grande amiga que mora em Milão.
Com o telemóvel, Elisa filma a sua vida, a das pessoas que lhe são queridas, a sua cadela Stella. A existência quotidiana na imensidão da pandemia. Como pano de fundo, deixa subentendido, está a experiência da fé. Uma história de amor que mudou a maneira como olha para si mesma e para o mundo. No entanto, tudo começou com uma traição.
Enquanto vivia com Giacomo, conhece Luca, um homem mais velho, com dois filhos, que a pede em casamento. Ela respondeu: “Já fizeste isso e não resultou”. Ele disse: “Estou a falar a sério. Caso contigo pela igreja”. E, quase do nada, um pensamento vem-lhe à cabeça: “Mas eu nem sou batizada...”.
A entrevista com Elisa parte deste momento tão misterioso (e aparentemente irrelevante).

Quem eras naquele momento? De onde nasceu aquele pensamento?
Bem, só vejo melhor agora. Posso dizer que vinha de um período em que comecei a fazer algumas perguntas a mim própria. Tinha acabado de terminar um documentário, Albe – A life beyond the Earth – no qual falo de sete pessoas de Roma que acreditam ter comunicações diárias com alienígenas. São pessoas simples, socialmente marginalizadas, para quem a capacidade de ter essas visões constitui uma espécie de redenção. Sentem-se guardiãs de um grande segredo: não estamos sozinhos no universo. Hoje posso dizer que também isso é uma forma de religiosidade. A necessidade de algo mais. E senti o seu fascínio. Durante esse trabalho, conheci um padre da Sardenha, um pouco bizarro. Enquanto o ouvia, comecei a chorar. Estava com medo. Perguntou-me de quê. “De morrer” - respondi-lhe. Ele respondeu-me: “Recebe o Batismo e já não terás medo”. Isto aconteceu bastante antes de o Luca me pedir em casamento.

Um pensamento que se tornou um desejo.
Comecei, então, a pesquisar no Google: “significado do baptismo”, “como tornar-se católico?”, “o que fazer para ser batizado?”, “batizar-se em adulto”. Eu não sabia nada sobre isto. Descobri que os Evangelhos fazem parte da Bíblia, que o Cântico dos Cânticos também era um texto sagrado. Incrível! Uma ignorância do outro mundo! Até o algoritmo do Facebook percebeu que alguma coisa tinha mudado: deixou de oferecer-me publicidade de contraceptivos e começou a apresentar-me anúncios de viagens para Jerusalém e livros do Papa e sobre o Papa.

Uma cena de iSola


No livro, falas de alguns encontros com o Cardeal Giuseppe Betori, o arcebispo de Florença.
Ele é amigo dos meus pais. É uma das vantagens de ser “filha de”. E agora também é meu amigo.

E confiou-te ao Padre Elia Carrai, jovem sacerdote com quem nasceu uma amizade importante.

Sim, a primeira coisa que notei nele foram os sapatos e os óculos da moda. Pensei: “Um padre não pode ter estes gostos”. Cheia de preconceitos.

Com ele fizeste um caminho.

Sim, encontrámo-nos e escrevemo-nos. Falámos e pensámos juntos. Ele recomendou alguns livros. Contei-lhe o que me estava a acontecer naquela altura, que é o que conto no livro: o meu ex-namorado que acampa em minha casa, a relação com o Luca e com os seus filhos, a doença e a morte da minha avó. Até as minhas tentativas desajeitadas para ajudar a distribuir refeição aos pobres, ou quando descobri as adorações noturnas nas igrejas de Roma. A certa altura, o Padre Elia escreveu-me: “Não se trata apenas de tomar decisões, mas que a tua liberdade esteja cada vez mais disponível para descobrir e aderir ao desígnio de bem que existe para a tua vida”. Foi o que tentei fazer.

Num diálogo com o Cardeal, dizes que a tua obsessão é “reparar realmente no outro”. O que é que isso tem a ver com a descoberta da fé?

O meu problema, mas acho que é uma coisa bastante comum, é que utilizo os outros como telas nas quais projeto as minhas histórias. Não me aproximo de ti porque a tua diversidade me interessa, mas porque posso invadir-te com meu ego e, olhando para ti, posso apaixonar-me por mim mesma. Descobrir que existe um Outro que nos chama a amar realmente parecia-me uma tentação irresistível. A certa altura, pensei: quero ver se também sou capaz.

Nasceste e foste criada num contexto distante da Igreja.

Sim, tive que me despojar de muitas coisas. Tinha dentro de mim muitos fechamentos e camadas sobrepostas.

Quais?
Cada um tem a sua própria história. Eu tenho a minha. E, além de ser eu própria, sou também “filha de” uma pessoa que fez muitas coisas. Acabamos sempre por ser associados e julgados com base na existência de outra pessoa. As pessoas pensam que já sabem quem somos. O Batismo, para mim, foi começar uma vida desde o início, o que não significa trair a minha origem, mas reivindicar uma identidade diferente. Foi estranho ter encontrado um espaço de liberdade na Igreja, que é o último lugar onde a teria procurado.

Porquê?
Se penso no conformismo dos meus amigos e do mundo de onde venho, quando discuto com o Padre Elia parece que estou a falar com um jovem punk. Invejo-o um pouco. Ele tem uma liberdade que eu não tenho e não sei se algum dia serei capaz de a viver.

De que liberdade falas?
No início, com a curiosidade habitual de quem nada sabe, perguntava-me: será que ele alguma vez se apaixonou? E como é com o celibato? Perguntas um pouco infantis que lhe fiz mesmo assim. E ele contou-me uma história com um sabor quase medieval: uma experiência de uma força que nunca me passaria pela cabeça. Houve uma rapariga em quem ele nunca tocou... E disse-me que se tivesse ido mais longe, teria reduzido tudo a uma posse. Um amor que, só de ouvir, te faz apaixonar por ele. Fiquei comovida.

Porque é que tens inveja disso?
Brinco um pouco e digo que o verdadeiro amor livre é o que a Igreja propõe. Cresci a pensar num tipo de relação no qual é a premissa que não é livre. Duas pessoas estão juntas e, no fundo, não querem nada uma da outra. Não aceitam a partilha. Bem, não sei se se tem um filho para partilhar... Mas é tão extremo viver, estar aqui agora, ter a capacidade de pensar, escrever, amar... E eu quero viver em plenitude. Até ao fim. Então, se te amo, tomo tudo de ti. As tuas doenças, os teus medos, os teus filhos... Tomo-te. É um terreno delicado e não quero julgar ninguém. Mas eu, pelo que vi na minha vida, posso dizer o seguinte: isto parece-me mais livre do que aquilo que a burguesia nos oferece.

Como é que as pessoas reagem quando dizes que te tornaste cristã?
Nunca pensei que pudesse surpreender, chocar, magoar, ofender. Até decepcionar. Foi estranho. Às vezes, até engraçado, porque alguns amigos perguntaram-me se eu estava em crise, se tinha descoberto algo que me acontecera em criança, se eu tinha estado “na comunidade”…

E tu?
Eu digo: “Não. Aconteceu”. Há escândalo e inveja. A seguir, a reação é: “Ah, és feliz porque acreditas...”. Como se fosse uma coisa simples ou, menos ainda, resolutiva. Porque, afinal, de certa forma, agora vivo pior. Não porque perdi alguma coisa, tenho mais ferramentas para entender o mundo, mas a questão é que, para mim, agora, tudo deve ter significado. A minha vida está muito mais atribulada. Não procuro respostas, porque as perguntas mudam constantemente, mas procuro o significado. E o mundo, a nossa sociedade, coloca-nos à prova no que diz respeito ao significado das coisas.

Mas se é mais difícil, qual é a conveniência?
É conveniente. Porque, na confusão, há uma perspectiva. E isso dá-te um poder extra. Vivo melhor porque me sinto na vida, sinto-me nas coisas. Deus leva-te a viver mais a fundo. Preciso de estar ligada ao Mistério, cada dia, e de voltar a ele, sempre que quero e que posso. No outro dia, numa apresentação do meu livro, uma senhora perguntou-me: “Como pensa continuar neste caminho? Já pensou em ser freira?”. E eu disse: “Não!”. Eu nunca poderia renunciar à Stella, a minha cadela (risos). Mas acho engraçado que aquela senhora me tenha feito essa pergunta. Porque, na minha opinião, continuar é simplesmente viver. Embora…

Embora?

Os meus amigos não acreditam. Não tenho ninguém com quem conversar ou viver certos momentos. Muitas vezes pergunto-me: quando poderei estar com alguém? Partilhar? Mas, com este livro, recebo mensagens de pessoas que nunca teria imaginado: padres, fiéis, doentes. Um mundo. Um mundo que não é o meu. Se uma rapariga te escreve, contando que, lendo o que escreveste, reviveu um caminho muito parecido com o teu, percebes a intensidade do que contaste. Não porque fui eu que fiz, mas porque é poderoso como facto. É uma história que nos liga, numa realidade que tende a afastar-nos. Eu pensava que teria de ir procurar os meus companheiros na fé, mas parece-me que, afinal, o movimento é ao contrário: os outros aproximam-se. Este milagre espanta-me. É uma aventura que não sei onde vai levar-me. Quando penso que percebi, há uma inteligência que me move e que me põe de novo em jogo.

No livro, contas que leste O sentido religioso. Escreveste que ficaste impressionada com o modo como don Giussani explica o espanto.

Encontrei uma capacidade de dizer coisas que estão para além do humano, de um modo humano. Don Giussani explica essa aproximação a Jesus, mostrando-O como uma pessoa por quem te apaixonas. E isso também me fez inveja. Giussani propõe um amor que se renova continuamente, graças à maravilha. No entanto, todos nós experimentamos o contrário: as coisas nascem, vivem e, no fim, morrem. É a entropia. Mas ao invés, o amor, para Jesus, supera as leis da natureza. Procuro isso nas relações. Quero apaixonar-me assim. Não quero menos. É difícil. É um trabalho enorme.

No filme, onde contas o teu confinamento, explicas que para ti foi uma verificação da fé. O que queres dizer?
Foi um teste que me propus. Afinal, quando tudo corre bem, é fácil acreditar. Tem-se a própria vida e depois acrescenta-se um nível extra que é o da religião. Não, não pode ser assim. Eu perguntava-me: a tua fé resiste a uma dificuldade destas?

Como é que percebeste que passaste no teste?

Em vez de odiar, reclamar, em vez de me perguntar “porquê eu?”, pensei: “ok, se é assim, significa que tenho de conhecer qualquer coisa, tenho de descobrir outra dimensão de mim, para passar, ou não”.

O que descobriste?
O sofrimento e a morte sempre me aterrorizaram. A morte, naquele período, não era uma ideia abstrata. Tive que lidar com isso. No entanto, estes são também aspetos centrais do cristianismo. Não acho que tenha sido uma coincidência ter escolhido uma religião baseada na ressurreição da Páscoa.

Tanto o livro como o filme terminam dizendo: “Continuo a ter medo de morrer. Continuo a ter medo de viver. Mas agora, talvez, um pouco menos”. O que significa esse “um pouco menos”?

Na noite de Páscoa de 2019, recebi o Batismo, no qual, como é dito, o homem velho que existe em nós morre. Exatamente 365 dias depois tive de ser operada ao cancro. Pensei: “O ano passado foi uma morte simbólica. E este ano? Vou morrer realmente?”. Quando entrei no meu quarto de hospital vi o crucifixo pendurado. Pela primeira vez, não o vi como uma peça decorativa, um símbolo ou um sinal de superstição, mas como dois eixos cartesianos que, cruzando-se, criavam um espaço novo. E esta ordem diferente, com a qual tinha começado a ver as coisas, percebi que me tinha mudado. Tinha vontade de ir ao encontro do que estava para acontecer com um entusiasmo um pouco louco. É a conveniência de que falávamos. De alguma maneira, seja como for, esta familiaridade com a vida coloca-nos numa condição diferente. Neste “um pouco menos” está aquela quantidade marginal, aquele grão de arroz, aquele bocadinho que me faz dizer: enfim, feitas as contas, fiz bem.