O crucifixo da Igreja de San Marcello al Corso, Roma, querido em São Pedro pelo Papa Francisco durante a epidemia

Se o Céu se curvar sobre o homem

A solidão do homem e a proximidade de Deus. Uma viagem às obras nascidas da fé em tempos de prova. Desde o crucifixo contra a peste à deposição de Nicolau dell’Arca, e Duccio e Giotto... até ao poder do abraço das Pietà
Giuseppe Frangi

Por ocasião daquele seu gesto simples e imponente diante da Praça de São Pedro vazia, o Papa Francisco quis a companhia de duas imagens, que o seguiram em todo o caminho da Semana Santa: o ícone de Maria Salus populi romani, habitualmente venerada na Basílica de Santa Maria Maior, e o Crucifixo da Igreja de São Marcelo. Precisamente aquele mesmo crucifixo que Francisco tinha ido venerar caminhando sozinho pela rua del Corso, alguns dias antes. Uma escultura de madeira policromada de um autor desconhecido datado do final de 1300, da qual os romanos sempre foram devotos: em 1522, por ocasião de uma epidemia de peste, levaram-no em procissão a todas os bairros da cidade que o reclamavam, entre 4 e 20 de agosto desse ano: entretanto, a epidemia abrandara acentuadamente. Mas, mais do que o poder taumatúrgico, o valor destas imagens reside em tornar visível a proximidade, ou melhor, a companhia de Deus aos homens, em momentos tão difíceis de enfrentar. Não é por acaso que é Jesus Crucificado quem percorre as cidades, tal como aconteceu também com São Carlos com a terrível peste de 1576 que assolou Milão: hoje está no Duomo, no corredor esquerdo, em frente ao túmulo do Cardeal Martini, que por sua vez o quis levar em procissão pela cidade a 20 de abril de 1984 contra as novas pestes, a violência e a solidão.

E é de novo a solidão, vivida dramaticamente por tantos que morreram isolados nos cuidados intensivos por causa do Coronavírus. A mesma que Jesus na cruz teve de enfrentar quando, como disse o Papa numa das homilias em Santa Marta no tempo de Quaresma, experimentou a derrota: “Ele não finge morrer, não finge não sofrer, sozinho, abandonado...”. Numa das zonas mais atingidas pela epidemia, em Albino, no Vale Seriano, encontram-se duas obras que testemunham a radicalidade desta solidão humana de Jesus: são obra de Giambattista Moroni, um dos maiores retratistas do século XVI, que nasceu precisamente em Albino.
A primeira é um Crucifixo, desta vez pintado: um quadro vertical conservado na igreja paroquial. Jesus na cruz está sozinho, destacando-se da paisagem que todos os da zona podiam reconhecer como muito familiar. Jesus está assim “perto” de quem O olha e, ao mesmo tempo, isolado na sua dor. É uma imagem que, na sua humildade e compostura absolutamente reais, parece curvar-se para partilhar a condição humana daqueles que também se viram sós a sofrer e muitas vezes a morrer em hospitais: e muitos deles eram precisamente conterrâneos de Moroni. Há, no entanto, um toque nesta obra que quebra o assédio da dor: é o pano que se move por causa do vento, e que o artista, nesta obra dominada por cinzentos, quis marcar com uma cor laranja forte: quase como uma palpitação que faz entrever o imprevisto da Ressurreição. Só está também o “Cristo carregado com a cruz” no Santuário de Nossa Senhora do Pranto, também em Albino. Moroni pintou-o em tamanho real e de perfil, como se O tivesse seguido, indo ao Seu lado com uma câmara de vídeo, na subida ao Calvário. Caminha debaixo do peso do lenho e faz-nos perceber que está a caminhar connosco, na dificuldade e no sofrimento. A sua solidão vem em auxílio da nossa. A pintura lombarda tinha gerado outra imagem impressionante da solidão de Jesus na Paixão: é a pintura de Moretto, conservada no Galeria Tosio Martinengo de Brescia, onde Cristo se senta exausto nos degraus do Pretório, com a coroa de espinhos e a cruz que o espera. Parece humanamente esgotado com a sucessão de acontecimentos. Apenas um anjo, também ele desfeito pela dor, permanece com Ele.

Nos dias dramáticos do Coronavírus, faltou-nos a experiência do abraço. Não só e não somente o que se tornou impossível no dia-a-dia da quarentena, mas o abraço último aos que partiam. Mais uma vez a arte documentou a tortura desta distância, como no caso de tantas Deposições, desde logo a obra-prima de Nicolau da Arca em Bolonha: todas as figuras estão em volta do corpo de Cristo, experimentando uma separação que torna a dor excruciante. Veem, mas não O podem segurar nos braços. Fica apenas o grito que irrompe destas figuras e cujo eco ressoa hoje na experiência de tantas pessoas. O mesmo episódio, porém, é por vezes brilhantemente resolvido com imagens que podem ser de conforto: Duccio em “La Maestà” e Giotto na capela dos Scrovegni (e não são os únicos), pintando a cena da Deposição, oferecem-nos dois detalhes que deixam uma marca no coração. Vemos Maria que se debruça sobre o corpo inanimado do Filho e O abraça. “Ela toma-O nas suas mãos como o tinha tomado há mais de 30 anos em Belém”, como disse o Papa nas meditações de Quaresma em Santa Marta. A mãe inclina-se sobre Ele, anulando todas as distâncias com uma tal intensidade humana que inclui nesse gesto todos os abraços que foram impossíveis: é um abraço que se dilata e assume em si todos os que foram dolorosamente privados de abraços. Aliás, esta ligação física entre a mãe e o filho tinha dado origem a um dos motivos iconográficos maisextraordinários e amados, o da Pietà. Nasceu em âmbito alemão como Vesperbild, imagens para a meditação da tarde, e depois chegou a Itália dando origem a obras-primas que todos temos diante dos nossos olhos, de Bellini a Miguel Ângelo. O abraço subiu de escalão e tornou-se um ter no colo o corpo do Filho: ícone de uma dor sem medida, que é transfigurada em “piedade”, ou seja, alarga-se para compreender a dor do mundo (compreender: isto é, ter consigo, mas também perceber, dar-lhe um sentido).

Também os santos saíram à rua contra epidemias e pestilências. Em 1514, em Orzinuovi, um dos centros da Bassa de Brescia mais martirizados pelo Coronavírus, os cidadãos tinham encomendado um pendão processional a Vincenzo Foppa, o patriarca da pintura lombarda de onde proveio Caravaggio. No verso viam-se os dois santos que nos protegem da peste, Rocco e Sebastião: o rosto deste último é inesquecível, pela sua correspondência antropológica com as pessoas que lhe pediram proteção. Não se trata de um “santinho” nem de um mago, mas de um escudo concreto contra o mal, graças também à multiplicação exponencial das suas imagens, dos quadros, dos frescos e dos simples pendões como o de Orzinuovi. O extraordinário fresco de Benozzo Gozzoli em S. Gimignano demonstra a que ponto S. Sebastião foi realmente visto como escudo no sentido mais concreto do termo. A cena é complexa e surpreendente. Vê-se o santo, em dimensões gigantescas, num pedestal em cuja base está o povo dos fiéis, que levanta o olhar, cheio de gratidão, na sua direção. S. Sebastião tem um manto que alguns anjos seguram aberto, para proteger a multidão das flechas que trazem o mal. De facto, as flechas esbarram contra a barreira fornecida por Sebastião, o santo “escudo”. Mas de onde chovem as flechas? Aqui está a desconcertante surpresa desta obra: no topo vemos uma cena em que é o próprio Deus, com os seus anjos, que lança este castigo aos homens. Porém, aos seus pés, ajoelhados, encontram-se Jesus e Maria, que fazem de mediadores e Lhe imploram que desista. Jesus mostra a chaga no peito indicando que foi Ele que assumiu os pecados; Maria, por seu turno, descobre o peito, sugerindo, através da sua dimensão maternal, a dimensão paternal de Deus.

Um outro santo, ligado à peste dramática que em 1576 atingiu Milão, acreditava também firmemente que, para sair de uma epidemia, uma comunidade tinha de fazer as contas com o seu próprio pecado. Foi o caso de S. Carlos Borromeu. O seu Memorial aos Milaneses é uma extraordinária chamada de atenção à cidade que ele tanto amava. Do ponto de vista das imagens, a Catedral de Milão enche-se de quadros enormes, por ocasião da sua festa, a 4 de Novembro, que contam a sua história e os seus milagres. Entre estes pode ver-se a extraordinária tela pintada por Cerano com a visita aos doentes de peste e lepra no Lazzaretto: trata-se da documentação, simultaneamente cronista e épica, de um grande gesto de caridade pública por parte de um bispo santo que nunca deixou o seu povo sozinho.