Uma vida diante da beleza

Três universitários testemunharam o que viram num dia de visita ao Vale de Acór.

No dia 16 de Dezembro passado, um grupo de Universitários de Comunhão e Libertação fez uma visita à Associação Vale de Acór. O Vale de Acór é um lugar que recebe e acompanha pessoas numa situação de dependência ajudando-os num "caminho para voltar a ser pessoa".

"Ao chegarmos, fomos recebidos pelo Padre Pedro Quintela, que nos mostrou a casa e o jardim. Todos os sítios por onde passámos tinham um certo pormenor, quer histórico, devido à riqueza histórica que a casa tem, quer pessoal, tendo em conta a comunidade que ali habita ou já habitou. Todas as divisões contavam uma história e uma rotina, como a sala de reuniões onde os responsáveis acompanham o percurso das pessoas, ou como a sala da televisão, rodeada por azulejos azuis originais da casa com pinturas de embarcações. Os jardins estavam bem arranjados, havia um presépio de madeira feito por um dos senhores que lá vive e um galinheiro, que, segundo o Padre Pedro, produzia os melhores ovos por ser o galinheiro com melhor vista sobre o Tejo.

Depois da visita, encontrámo-nos com as pessoas. Alguns contaram-nos a rotina da casa e como todas aquelas pessoas estavam organizadas por grupos diferentes de acompanhamento. Naquele lugar tinham a oportunidade de olhar para a sua história livremente, com um acompanhamento diferente. Conseguiam perceber o que lhes tinha realmente acontecido; algo alarmante que lhes mudara a vida e a própria cabeça drasticamente. De certo modo identifico-me com este ponto: acho que não é por não me ter acontecido nada desta dimensão que não seja importante olhar para trás e tentar perceber a fundo o que me aconteceu e o porquê das coisas. Quantas vezes eu me minto a mim própria e tento arranjar justificações para as minhas faltas. Para além de desejar mudar, o que realmente se torna difícil de concretizar é a própria mudança. Nestas pessoas é necessária uma profunda consciência do que lhes aconteceu e um arrependimento que nasce desta nova consciência.

Uma senhora, ao falar-nos sobre a casa dizia: “Sair daqui é que depois se torna realmente difícil. Aqui estamos protegidos.” Perante toda esta mudança que é a entrada para a universidade pensei que também eu tenho de sair para o mundo com tudo o que sou, com as minhas manias e falhas. Na minha própria rotina, acho que muitas coisas são realmente difíceis, mas perante todas aquelas pessoas vejo que os problemas e desafios são dez vezes mais complicados.

Ainda nos declamaram a Filosofia do Projecto Homem, um pequeno texto que transmitia uma mensagem humana fortíssima: “Enquanto uma pessoa não se confronta consigo própria, nos olhos e corações de outras pessoas, foge. (…) Com medo de se dar a conhecer, não pode conhecer-se si próprio nem aos outros. Ficará só. (…) Aqui, juntos, cada um de nós pode enfim manifestar-se abertamente. Não como o gigante dos seus sonhos. Não como o anão dos seus medos. Mas como um homem, parte de um todo, com o seu contributo a dar”. Ao ouvir aquelas pessoas a dirigir-nos aquelas frases apercebi-me da seriedade e do desejo de alcançar algo maior, algo mais livre e mais humano.

Era notório que naquela casa havia um cuidado em manter as coisas bonitas: todos contribuíam, criavam e arranjavam aquilo que podiam. Assim, prepararam-nos um lanche e mostraram-se entusiasmados por nos ver e disponíveis para nos contarem como costumavam passar os seus dias. Por último, o coro preparou algumas músicas para lhes cantarmos. Foi uma forma radiante de lhes oferecer algo bonito. Muitos sabiam as músicas e também nos acompanhavam. Foi mesmo bonito ver como todos cantavam e se alegravam por estarmos lá. Apesar de tudo o que lhes aconteceu, todos partilhávamos o mesmo desejo de salvação e de liberdade."

Inês

"Para descrever a primeira impressão que o Vale de Acór gerou em mim não encontro melhor expressão do que a palavra «espanto». Foi imediatamente evidente que aquele lugar superou todas as imagens que dele eu já tinha feito. De um momento para o outro, assim que passei o portão da quinta, estava diante de um lugar belo, quer pela espetacular vista sobre o rio e sobre Lisboa, quer pela própria casa, que no seu estilo próprio (relativamente antiquado, sem dúvida não moderno) me chamou logo a atenção.

“Só o espanto conhece”, recordava-nos don Giussani a frase de São Gregório de Nissa. De facto, deparar-me desde o primeiro instante com tal beleza fez-me pensar em dois pontos: primeiro, que a beleza escancara o coração para a verdade, ou seja, põe-me numa posição atenta, curiosa, sobre a realidade, desejosa de a conhecer – que foi o que me aconteceu, precisamente, durante aquela tarde; segundo, que para aqueles homens e mulheres que ali vivem é um ponto de partida excecional, no sentido em que podem desde o início começar a intuir que aquele lugar tem qualquer coisa grande a propor à sua liberdade: uma vida diante da beleza.

Este primeiro embate com o Vale de Acór ecoou em mim como uma nota de fundo durante toda a visita. Cada sala em que entrávamos, cada quadro para onde o padre Pedro remetia o nosso olhar, cada pormenor que ele destacava, tinha sido pensado com todo o cuidado. Não para exaltar a genialidade do homem na imaginação e na conceção de cada detalhe e de cada espaço, mas para que cada circunstância naquela casa se tornasse ocasião de fazer memória da promessa que foi feita à nossa vida, de a tornar presente em cada instante.

Neste sentido, o que me fascinou mais foi o encontro com as pessoas que ali vivem. São como que o ponto de chegada de todo aquele percurso, porque, no fundo, são aquela promessa feita concreta, feita carne. Assim que entrámos na sala do lanche, onde eles já nos esperavam, percebi que vibrava neles uma comoção com a nossa presença. Para mim isto não era nada óbvio: ainda não tínhamos sequer pronunciado uma palavra, feito qualquer gesto, e já eles estavam cheios de gratidão! Estar diante daquela simplicidade era completamente desarmante. Eram como crianças diante do real: primeiro aderem, depois logo fazem as perguntas que tiverem a fazer. Fiquei a pensar que tinha muito a aprender com eles.

Os momentos que se seguiram foram uma confirmação de tudo isto: o lanche e os cânticos que a seguir cantámos juntos foram belíssimos porque brotavam de uma simplicidade e de um interesse verdadeiros diante do que estava a acontecer, pelo outro que estava ao meu lado.

Acho que é impossível não pensar que a graça deste dia se tenha manifestado neste tempo de Advento em que esperamos o Natal. Quando o dia acabou, e durante estes dias que já se passaram, tem-me vindo constantemente à cabeça a pergunta: como é que um encontro destes é possível? Parece quase estranho, ou desadequado, ou até embaraçoso; desde quando é que um grupo de pessoas em reabilitação tem o gosto de se juntar a um grupo de universitários (um tanto particulares, poder-se-ia acrescentar) para cantarem músicas de Natal? Depois dei-me conta: precisamente porque se deu na história esse acontecimento excecional que já no dia no Vale de Acór celebrávamos: “Oh oh, glory hallelujah! Glory hallelujah to the newborn King!”."

Frederico

"A tarde começou com uma visita guiada pelo Pe. Pedro à quinta impressionante que dá lugar ao Vale de Acór, durante a qual nos encontrámos com um memorial onde os nomes das várias pessoas que por lá passaram nos concederam uma familiaridade e uma proximidade a este problema tão real. São nomes próprios e apelidos que representam as famílias que sofreram e amaram estas pessoas cujos nomes acabaram por merecer uma cruz voltada para Oriente.

No entanto, a visita, no seu sentido mais profundo, deu-se no momento, preparado por ambos os lados, de encontro entre o grupo do CLU e o grupo de pessoas em reabilitação. Foi um momento esperado do qual não sabíamos o que esperar, mas o que nos foi dado foi um olhar diferente sobre as vidas daquelas pessoas e as nossas próprias. De um lado da sala, um grupo de jovens universitários católicos; do outro lado, um grupo de pessoas que sofrem com dependências. De ambos os lados, pessoas que se encontram numa procura intensa por sentido, por si mesmas, por alguma coisa. Como disse o Pe. Pedro no início deste encontro, a juventude não se trata de uma procura pela ruptura ou pela desobediência, trata-se antes de uma fase da vida em que procuramos a verdade que vai orientar o nosso caminho, o sentido. A disposição em círculo em que nos encontrávamos naquela sala deu vida à união entre as procuras de todas as pessoas nela presentes. Todos temos sede, mas alguns têm tanta sede que até o pântano lhes parece uma fonte.

“Ó luz abre meus olhos, apaga a noite que me assalta com seus medos, o Senhor está perto: nada temas. O reino brilha, mesmo onde há sede.” Ó luz, do Lab’Oratório, foi uma das músicas que o coro do CLU preparou para oferecer um pequeno concerto de Natal ao Vale de Acór. A música que, em ensaios, já achávamos bela, ganhou toda a profundidade ali, naquele momento. Já não estávamos em círculo, estávamos, agora, frente a frente, a ver algumas caras sorridentes, outras em tensão e algumas que começaram em tensão mas se tornaram sorridentes. Não há dúvida de que foi um momento bonito onde a esperança reinou, pelo menos nos nossos olhos. Resta-nos rezar para que, nos momentos mais difíceis, que para muitos deles ainda estão por vir, estes momentos de alegria não se esgotem por entre o desespero.

Partimos para o Vale de Acór para levar um pouco da nossa água àqueles que dela podem precisar, porque tê-la é querer dela transbordar. O contraste entre o ar frio e o céu soalheiro daquela tarde de Dezembro foi como uma metáfora para o próprio ambiente que se viveu desde o início da visita. Num lugar onde se pode sentir o peso e a frieza de uma realidade que não desejamos a ninguém, descobriu-se o céu e aquilo que se revelou foi a luz para a qual cada um de nós deseja caminhar."

Clara