Um olhar de misericórdia

Há um episódio que, pela sua simplicidade e clareza, ainda hoje me ajuda a ter presente o que é esta Misericórdia que falámos na Escola de Comunidade.

Era eu recém-licenciada, com um prazo de entrega apertado. Passei todo o sábado no escritório. Até que aproximou-se a hora de jantar e eu tive de dizer que tinha um compromisso, ao qual não podia mesmo faltar, e fui.

Tinha nessa noite encontro do nosso grupo de Fraternidade. O jantar estava todo organizado e coordenado pela minha amiga Sara, e eu era uma das pessoas que levava o prato principal. Liguei-lhe quando saí do escritório a pedir desculpas, não só porque já estava atrasada para o jantar, mas ainda por cima não tinha feito o que me pediu.

Foi preciso algum sacrifício para fazer este telefonema, pois para mim era natural que ela se zangasse e mesmo que não o fizesse porque é muito querida, era para mim uma humilhação enorme porque simplesmente falhei. Sou uma incapaz e não há justificação possível porque bastava ter avisado com antecedência e o problema resolvia-se. Errei. Sou uma desgraça. Uma incapaz. Era assim que eu me estava a olhar. E até pus a hipótese de já não ir porque não tinha o que era preciso.

Percebi que ela ficou triste porque fazia mesmo falta a minha parte. Mas respondeu que não fazia mal, que agora já não havia nada a fazer, que haveríamos de arranjar uma solução e que eu me despachasse para eu jantar e não perder o encontro. Disse que eu tinha feito o meu melhor. Agradeci-lhe muito a sua compreensão e que percebia perfeitamente que não quisesse contar comigo numa futura oportunidade. Ela respondeu com toda a sua simplicidade de quem me olha com estima, quer o meu bem e me perdoa verdadeiramente, com Misericórdia e leveza: "Não Ana, na próxima oportunidade é mesmo a ti a quem começo por pedir ajuda. Assim podes redimir-te". E ri-se.

Esta atitude desconcertou-me porque era uma forma totalmente diferente de olhar para o problema. “Isto está mesmo a acontecer?” pensei. Encheu de gratidão por esta amiga existir e desconcertou-me tanto a sua lógica que percebi que era o Seu olhar para mim, um olhar além do da própria Sara. E fiquei verdadeiramente cheia de vontade de fazer melhor numa futura oportunidade. E foi possível recomeçar até da forma como me estava a olhar para mim própria, cheia de sentimento de culpa totalmente inútil.

Hoje em dia não tenho equipa, mas quando tive e cometiam algum erro, lembro-me que o meu natural instinto seria penalizar de alguma forma, nem que fosse para me proteger das consequências desses erros. Em vez disso, mais do que uma vez respondi exatamente como a minha amiga me respondeu, lembrando-me imediatamente de olhar para Deus e dar conta que sou amada por Ele. Até com os meus filhos isto às vezes acontece ainda hoje.

Ana, Lisboa