
Pizzaballa. «Permanecer no amor»
A carta do Cardeal à diocese do Patriarcado Latino de Jerusalém: O cessar das hostilidades é apenas o 1º passo. O acerto de contas não nos pertence (...) Como Igreja, somos chamados a testemunhar a fé na paixão e ressurreição de Jesus.Caríssimos irmãos e irmãs,
Que o Senhor vos conceda a paz!
Já lá vão dois anos desde que a guerra tem absorvido grande parte da nossa atenção e das nossas energias. É tristemente conhecido por todos o que tem acontecido em Gaza: massacres contínuos de civis, fome, deslocações sucessivas, dificuldades de acesso a hospitais e cuidados médicos, falta de condições de higiene, sem esquecer aqueles que se encontram detidos contra a sua vontade.Pela primeira vez, porém, as notícias falam finalmente da possibilidade de se virar uma nova página positiva: da libertação dos reféns israelitas, de alguns prisioneiros palestinianos, e do cessar dos bombardeamentos e da ofensiva militar. É um primeiro passo importante e há muito aguardado. Nada está ainda totalmente claro e definido, continuam a existir muitas perguntas por responder, há ainda muito por esclarecer, e não podemos cair em ilusões. Mas estamos felizes por, pelo menos, haver algo novo e positivo no horizonte.
Aguardamos o momento de nos alegrarmos com as famílias dos reféns, que finalmente poderão abraçar os seus entes queridos. Desejamos o mesmo às famílias palestinianas, que poderão voltar a abraçar aqueles que regressam da prisão. Alegramo-nos especialmente com o fim das hostilidades, que esperamos não seja temporário, e que traga alívio aos habitantes de Gaza. Alegramo-nos também por todos nós, pois o possível fim desta guerra horrível, que parece finalmente estar próximo, poderá marcar um novo começo para todos — não apenas para israelitas e palestinianos, mas também para o mundo inteiro. Contudo, devemos manter os pés bem assentes na terra. Ainda há muito por definir antes que Gaza possa ter um futuro tranquilo. O cessar das hostilidades é apenas o primeiro passo — necessário e indispensável — de um caminho difícil, num contexto que continua a ser problemático.
Ademais, não podemos esquecer que a situação continua deteriorando-se também na Cisjordânia. São diários os problemas de todo tipo que as nossas comunidades são obrigadas a enfrentar, sobretudo nas pequenas vilas, cada vez mais cercadas e sufocadas pelos ataques dos colonos, sem defesa suficiente das autoridades de segurança.
Enfim, os problemas ainda são muitos. O conflito ainda continuará sendo, por muito tempo, parte integral da vida pessoal e comunitária da nossa Igreja. Nas decisões que tomarmos a respeito da nossa vida, inclusive as mais banais, temos de levar sempre em consideração as dinâmicas tortas e dolorosas causadas por esse conflito: se as fronteiras estão abertas, se temos as permissões, se as ruas vão estar sempre abertas, se estaremos protegidos.
Além disso, a falta de clareza quanto às perspectivas futuras, que continuam todas indefinidas, contribui para uma sensação de desorientação e faz crescer o sentimento de desconfiança. Mas é precisamente aqui que, como Igreja, somos chamados a pronunciar uma palavra de esperança e a ter a coragem de construir uma narrativa que abra horizontes, que edifique em vez de destruir — tanto na linguagem que usamos como nas ações e gestos que propusermos.
Não estamos aqui para fazer discursos políticos, nem para oferecer uma leitura estratégica dos acontecimentos. O mundo já está cheio dessas palavras, que raramente mudam a realidade. Pelo contrário, interessa-nos uma visão espiritual que nos ajude a permanecer firmes no Evangelho. De facto, esta guerra interpela as nossas consciências e está na origem de reflexões não apenas políticas, mas também espirituais. A violência extrema que temos testemunhado até agora devastou não só a nossa terra, mas também o espírito humano de muitos, tanto na Terra Santa como no resto do mundo. Raiva, rancor, desconfiança, mas também ódio e desprezo dominam frequentemente os nossos discursos e poluem o nosso coração. As imagens são devastadoras, perturbam-nos e colocam-nos perante aquilo a que São Paulo chamou «o mistério da iniquidade» (2Ts 2,7), que ultrapassa a compreensão da mente humana. Corremos o risco de nos habituarmos ao sofrimento, mas isso não pode acontecer. Cada vida perdida, cada ferida infligida, cada fome suportada é um escândalo aos olhos de Deus.
O poder, a força e a violência tornaram-se o critério principal sobre o qual se baseiam os modelos políticos, culturais, económicos e, talvez, até religiosos do nosso tempo. Muitas vezes ouvimos repetir, nestes últimos meses, que é preciso recorrer à força e que só a força pode impor as escolhas certas a tomar. Que só com a força se pode impor a paz. Infelizmente, não parece que a história nos tenha ensinado muito. De facto, vimos no passado o que a violência e a força produzem. Por outro lado, na Terra Santa e no mundo, temos visto — e vemos cada vez mais — a reacção indignada da sociedade civil contra esta lógica arrogante de poder e de força. As imagens de Gaza feriram profundamente a consciência comum dos direitos e da dignidade que habitam no nosso coração.
Este tempo também pôs à prova a nossa fé. Mesmo para quem acredita, não é evidente viver a fé em tempos tão difíceis como este. Por vezes, sentimos intensamente dentro de nós uma distância entre a dureza dos acontecimentos dramáticos, por um lado, e a vida de fé e de oração, por outro. Como se estivessem afastados um do outro. Além disso, o uso da religião — frequentemente manipulado para justificar estas tragédias — não nos ajuda a aproximar-nos com um espírito reconciliado da dor e do sofrimento das pessoas. O ódio profundo que nos invade, com as suas consequências de morte e dor, constitui um desafio significativo para quem vê na vida do mundo e das pessoas um reflexo da presença de Deus.
Sozinhos, não conseguiremos compreender este mistério. Apenas com as nossas forças não seremos capazes de enfrentar o mistério do mal e resistir-lhe. Por isso, sinto cada vez mais urgente o apelo a manter o olhar fixo em Jesus (cf. Hb 12,2). Só assim conseguiremos trazer ordem ao nosso interior e olhar a realidade com novos olhos.
E, juntamente com Jesus, como comunidade cristã, queremos recolher as muitas lágrimas destes dois anos: as lágrimas de quem perdeu familiares, amigos — mortos ou sequestrados —, de quem perdeu a casa, o trabalho, o país, a vida; vítimas inocentes de um acerto de contas cujo fim ainda não se vislumbra.
O conflito e o acerto de contas foram a narrativa dominante destes anos, com a inevitável e dolorosíssima consequência das tomadas de posição. Como Igreja, o acerto de contas não nos pertence, nem como lógica nem como linguagem.
Jesus, nosso Mestre e Senhor, fez do amor que se oferece e do perdão a sua escolha de vida. As suas feridas não são um apelo à vingança, mas sim à capacidade de sofrer por amor.
Neste tempo dramático, a nossa Igreja é chamada, com renovada força, a testemunhar a sua fé na paixão e ressurreição de Jesus. A nossa decisão de permanecer, quando tudo nos convida a partir, não é um desafio, mas uma permanência no amor. A nossa denúncia não é uma afronta às partes envolvidas, mas um apelo para que tenham a coragem de seguir um caminho diferente do acerto de contas. A nossa morte teve lugar aos pés da cruz, não num campo de batalha.
Não sabemos se esta guerra terá realmente um fim, mas sabemos que o conflito continuará, pois as causas profundas que o alimentam ainda estão por enfrentar. Mesmo que a guerra terminasse agora, tudo isto — e muito mais — continuará a ser uma tragédia humana que exigirá muito tempo e esforço para ser superada. O fim da guerra não marca necessariamente o início da paz. Mas é o primeiro passo indispensável para começar a construí-la. Temos pela frente um longo caminho para reconstruir a confiança entre nós, para dar forma à esperança, para nos desintoxicarmos do ódio destes anos. Mas estamos comprometidos com esse caminho, juntamente com muitos homens e mulheres que ainda acreditam ser possível imaginar um futuro diferente aqui.
O túmulo vazio de Cristo, junto ao qual — como nunca antes nestes dois anos — o nosso coração permaneceu à espera da ressurreição, garante-nos que a dor não será para sempre, que a espera não será em vão, que as lágrimas que regam o deserto farão florescer o jardim da Páscoa.
Como Maria Madalena junto a esse mesmo sepulcro, queremos continuar a procurar, mesmo às apalpadelas. Queremos insistir em procurar caminhos de justiça, de verdade, de reconciliação, de perdão: mais cedo ou mais tarde, no fim desses caminhos, encontraremos a paz do Ressuscitado. E, como ela, queremos motivar outros a correr por esses caminhos, para nos ajudarem na nossa busca. Quando tudo parece querer dividir-nos, afirmamos a nossa confiança na comunidade, no diálogo, no encontro, na solidariedade que amadurece em caridade. Queremos continuar a anunciar a Vida eterna, mais forte do que a morte, com novos gestos de abertura, de confiança, de esperança. Sabemos que o mal e a morte, embora tão fortes e presentes entre nós e ao nosso redor, não podem eliminar esse sentimento de humanidade que sobrevive no coração de cada pessoa. São muitas as pessoas que, na Terra Santa e no mundo, se estão a empenhar para manter vivo esse desejo de bem e comprometem-se a apoiar a Igreja da Terra Santa. Agradecemos-lhes, levando cada uma delas na nossa oração.
«Com tamanha nuvem de testemunhas em redor de nós, deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve. Corramos com perseverança na corrida que nos é proposta, com os olhos fixos em Jesus» (Hb 12,1-2).
Neste mês, dedicado à Santíssima Virgem, queremos rezar por tudo isto. Para que possamos guardar e preservar de todo o mal o nosso coração e o daqueles que desejam o bem, a justiça e a verdade. Para que tenhamos coragem de semear sementes de vida apesar da dor, para que nunca nos rendamos à lógica da exclusão e da rejeição do outro. Rezemos pelas nossas comunidades eclesiais, para que permaneçam unidas e firmes; pelos nossos jovens, pelas nossas famílias, pelos nossos sacerdotes, religiosos e religiosas; por todos os que se esforçam por levar conforto e alívio a quem está em necessidade. Rezemos pelos nossos irmãos e irmãs de Gaza, que, apesar da fúria da guerra que os atinge, continuam a testemunhar com coragem a alegria da vida.
Por fim, unimo-nos ao apelo do Papa Leão XIV, que convocou para sábado, dia 11 de outubro, um dia de jejum e oração pela paz. Convido todas as comunidades paroquiais e religiosas a organizarem livremente, para esse dia, momentos de oração como o terço, a adoração eucarística, liturgias da Palavra e outros momentos semelhantes de partilha.
Aproxima-se a festa da Padroeira da nossa diocese, a Rainha da Palestina e de toda a Terra Santa. Na esperança de que nesse dia nos possamos finalmente encontrar, renovamos à nossa Padroeira a oração de intercessão pela paz.
Votos fraternos de bem a todos!
Jerusalém, 5 de outubro de 2025
Fonte
Patriarcado Latino de Jerusalém