Centro de detenção de San Vittore, Milão 2019 (@Margherita Lazzati / Courtesy Galleria l’Affiche)

Mais amados do que aquilo que erramos

A 12 de dezembro de 2024, o padre Mauro-Giuseppe Lepori, Abade Geral da Ordem Cisterciense, encontrou-se com um grupo de reclusos na prisão de Sulmona, depois duma troca de cartas com alguns deles. Excertos da sua intervenção
Mauro-Giuseppe Lepori

Quando me foi proposto este tema, “Somos mais amados do que aquilo que erramos”, a perspetiva de ter de o aprofundar convosco tornou-o mais intenso e obrigou-me a refletir mais profundamente sobre ele. Não porque os que vivem na prisão tenham necessariamente errado mais do que os que estão fora dela – porque só Deus ajuizará a gravidade das nossas faltas, tendo em conta todos os fatores – mas porque a troca de cartas que tive com alguns de vocês me fez perceber o quanto a prisão coloca as pessoas diante dos seus erros com maior consciência, intensidade e, certamente, dor, especialmente se os seus erros fazem sofrer outras pessoas, sobretudo os seus entes queridos.

No entanto, tenho plena consciência de que, na minha vida, cometi erros e falhas que, ainda que aos olhos do mundo e da justiça humana não sejam de todo graves, na minha consciência e diante de Deus sinto-os pesados, sobretudo quando, com uma única palavra, ou mesmo com um único pensamento ou sentimento do coração, faltei à caridade e magoei profundamente os outros.

Jesus diz-nos: «Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar “imbecil” será réu diante do conselho; e quem lhe chamar “louco” será réu da Geena do fogo. (…) Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5,22.28). Há pensamentos, sentimentos e palavras que matam, sem matar ninguém, ou abusam, sem tocar em ninguém.


Deus ama até ao fundo

Mas porque é que, se Jesus Cristo veio revelar-nos o amor infinito e misericordioso de Deus, o amor terno do Pai, porque é que nos diz estas coisas, como que para nos tornar escrupulosos e nos dar um tormento de consciência? Se o faz, fá-lo certamente para nos amar até ao fim, porque Deus só sabe amar até ao fim. Aquele que é Amor (cf. 1 Jo 4, 16) não pode amar até um certo ponto, mas ama até ao fim, isto é, para sempre, sem medida.

O relato da Paixão no Evangelho de João começa com o lava-pés (cf. Jo 13, 1-11). Pedro tem medo, tem vergonha de deixar que Jesus lhe lave os pés, finge escandalizar-se com o rebaixamento do Mestre, mas na realidade tem dificuldade em reconhecer que há algo em si que não quer pôr nas mãos de Jesus, algo que acha que não deve deixar que o Senhor purifique. Algo de baixo, algo de indigno, algo de não nobre, algo de terreno nele, na sua vida, na sua maneira de “caminhar”, isto é, de viver.

«Se Eu não te lavar, não terás parte comigo» (Jo 13,8). Reparem que Jesus não lhe disse: “Se me negares três vezes, não terás parte comigo!”, ou “Se fugires quando eu for preso, não terás parte comigo!”. Não! Só o facto de não ter deixado que lhe lavasse os pés foi tão grave para Jesus, que ameaçou Pedro de se separar dele para sempre. Pedro teria perdido, por este motivo fútil, toda a amizade de Jesus!

O que é que isto quer dizer para nós? Quer dizer que a salvação, o perdão, a redenção de Cristo não nos são dados a outro preço que não seja o de Lhe darmos o que há em nós de mais mesquinho, de mais miseravelmente mesquinho. Para nos salvar completamente e de tudo, para nos perdoar completamente, para nos perdoar tudo, mesmo as faltas mais graves, mais irreparáveis, para reconhecer diante de Jesus que tudo em nós tem necessidade de perdão e de graça, basta dar-Lhe a nossa pequena e pobre miséria quotidiana, aquela sujidade, aquele pó, com que os nossos pés se sujam ao caminhar todos os dias. Para Cristo, para que Ele nos purifique totalmente, basta o reconhecimento da nossa miséria mais baixa, mais pobre, talvez mais infantil e imatura. Porque, quando lhe damos essa miséria baixa, damos-lhe também, afinal, o orgulho com que nos olhamos a nós mesmos.


É Ele que vem

Mas atenção! Esta nossa miséria mesquinha e pobre, aquela que talvez seja apenas constituída por pensamentos, sentimentos e palavras que ninguém nota além de nós, não temos de procurar como e de que forma a apresentar ao Senhor: é Ele que a vem tomar! Aliás: é Ele que no-la vem pedir! Naquela noite da Última Ceia, Jesus foi de discípulo em discípulo pedir que lhe lavassem os pés, baixou-se Ele, desceu Ele aos pés dos discípulos, de todos nós pecadores. Toda a vida de Cristo é a descida do Deus Altíssimo para lavar os pés de todos os homens. É por isso que Jesus diz a Pedro que não terá parte com Ele se não se deixar lavar os pés, porque também naquela noite, naquele momento, com aquele gesto, Jesus vinha de Deus e voltava para Deus (cf. Jo 13,3), descendo até à miséria de Pedro, para a redimir e o levar consigo para o Pai.

Mas o gesto do lava-pés é simbólico da natureza de cada encontro com Cristo, daqueles descritos no Evangelho e de cada encontro de Jesus com cada um de nós. É por isso que o Evangelho se compraz em narrar os encontros com os pecadores e as pecadoras mais endurecidos, precisamente para pôr em evidência o que deve acontecer com cada um de nós. É olhando para estes encontros que acolhemos o anúncio fundamental do Evangelho, precisamente que somos amados infinitamente mais do que erramos, do que pecamos. Podemos dar três exemplos: a Samaritana (Jo 4,5-42), Zaqueu (Lc 19,1-10) e Dimas, o chamado “bom” ladrão (Lc 23,39-43).

Em cada um destes casos, vê-se claramente como Jesus desce até onde cada um caiu, está longe, toca o fundo da miséria da sua vida. O exemplo do bom ladrão, a quem a tradição chama Dimas, é como que o resumo, a síntese de todos os outros. Ninguém caiu mais baixo na condição humana pecadora do que este ladrão, no momento em que é crucificado pelos seus crimes. Mas eis que, caído ali, no fundo da sua miséria, se vê na presença do Filho de Deus que desceu para procurar toda a humanidade pecadora e que derrama o seu sangue e morre para nos salvar a todos. O ladrão encontra-se na presença do amor de Deus até ao fim. Ele nada fez para viver este encontro, para ser colocado tão próximo do Salvador. Apenas pecou, apenas errou, roubou, cometeu todos os erros que a Samaritana e Zaqueu cometeram, prejudicando certamente a sua família e a sociedade, que, de facto, o faz pagar condenando-o à crucificação.

O encontro com Jesus, como para cada um de nós, mas com uma consciência que penso que poucos conseguem ter, é-lhe oferecido em total gratuidade. E ele está ali, deixa-se olhar, amar, perdoar, abraçar gratuitamente pelo Salvador, oferecendo-lhe a condição de condenado em que se encontra, o seu sofrimento, os seus remorsos. Deixa-se “lavar os pés” de toda a sua miséria. E Jesus salva-o, imediatamente, antes de todos, antes mesmo da sua Mãe e de São João, que estão ao pé da Cruz. Jesus concede-lhe logo “ter parte com Ele”, com tudo o que Ele é, com tudo o que é Seu, para partilhar com Ele o Pai, o Céu, a Vida eterna!

A comparação com o outro ladrão crucificado ao lado de Jesus ajuda-nos a compreender melhor, por contraste, a boa escolha de Dimas. O outro ladrão teve a mesma experiência que Dimas, também ele chegou ali sem imaginar que o Salvador o acolheria precisamente no fim da sua vida. Mas ele não aceita a salvação que Jesus lhe propõe, que Jesus é, morrendo na cruz. Porque o mau ladrão não pede a Jesus a redenção da sua vida, não pede uma vida nova: pede-lhe que o faça descer da cruz para voltar à vida de antes, para voltar a cobiçar as riquezas como antes, a explorar as pessoas como antes. E então Jesus não pode ajudá-lo, porque Jesus não veio ao fundo da nossa condição humana de pecadores, para que permaneçamos lá, para que continuemos a procurar a plenitude da vida onde ela não existe. Jesus veio para nos levar a viver com ele, a viver na sua amizade, porque isso é o Paraíso, antes e depois da nossa morte.


Acontece também para nós, hoje

Ora, o que é que estes encontros têm a ver com a nossa vida, com os nossos erros, com as consequências que carregamos em nós dos erros cometidos? Têm a ver por uma única razão: porque Aquele que a Samaritana, Zaqueu e Dimas encontraram; Aquele que os elevou das profundezas da miséria para o Paraíso da sua amizade não é apenas uma figura histórica de há dois mil anos, de quem não há memória, nem documentos históricos. Aquele que estes pecadores encontraram é o Filho de Deus que, depois da Ressurreição e antes de subir ao céu, prometeu: «Eu estarei sempre convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt 28,20).

Aqueles encontros, aquela redenção da vida, aquela purificação do passado, aquela consolação do presente e aquela esperança no futuro acontecem agora, hoje, a cada um de nós. Cada dia da nossa vida, incluindo este 12 de dezembro de 2024, faz parte de “todos os dias” em que Jesus prometeu estar connosco até ao fim do mundo! É incrível pensar nisso! Mesmo cada dia na prisão, das vossas longas penas, é um desses dias em que Cristo nos prometeu, nos garantiu, estar connosco até ao fim! Jesus está presente, está aqui, de muitas maneiras e formas, mas verdadeiramente presente. Presente no dom do seu Espírito aos nossos corações, através dos seus discípulos que vêm ao nosso encontro, através de certas circunstâncias ou palavras que nos surpreendem e iluminam a nossa vida, Jesus Cristo chega sempre ao fundo da nossa vida para nos levar consigo na amizade com ele, no abraço do Pai e na consolação do Espírito Santo Paráclito.


Este texto foi adaptado pelo autor para a Tracce. O texto na sua íntegra pode ser consultado no site da Ordem Cisterciense, https://www.ocist.org/ocist/index.php/pt/, na secção Abate Generale/conferenze