
Levou o homem a sério, levou Cristo a sério
O contributo sobre don Giussani do Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a VidaVinte anos após a sua morte, pediram-me uma reflexão acerca do contributo que don Luigi Giussani deu à Igreja e ao mundo.
Sem aventurar-me em análises históricas aprofundadas, concentro tudo o que me vem à cabeça – pensando na sua pessoa e na sua obra – num único pensamento, que formularia assim: «Levou o homem a sério – levou Cristo a sério».
Don Giussani teve um dom, desde jovem, uma notável sensibilidade humana, existencial e, diria eu, até filosófica, para reconhecer a profundidade da alma humana. Soube captar a grandeza das aspirações do coração humano, presentes em todos, e trouxe-as à luz, fez delas objeto de reflexão, falou delas com admiração, com espanto e respeito. Muitos jovens, ao ouvi-lo, tomaram consciência de si, conheceram melhor o seu mundo interior, a grandeza do seu coração. Talvez nunca tivessem intuído a dignidade do seu espírito, as alturas às quais eles próprios, inconscientemente, aspiravam. Reviram-se na descrição do homem, de cada homem, de onde don Giussani partia para fazer o caminho de busca do sentido da vida. Penso que muitos jovens, nos primeiros encontros com ele, devem ter tido um sobressalto de alegria, misturado com surpresa, e devem ter pensado dentro de si: “Aquilo que este padre diz é verdade! É exatamente o que eu sinto. É a realidade que eu estou a viver. Este sou eu! Às vezes intuí isto, mas nunca o soube expressar assim!” Neste sentido, digo que don Giussani “levou o homem a sério”: misturou-se com a realidade humana mais profunda, aquela que nunca muda, que não está ligada a uma época histórica, a uma cultura, a um lugar geográfico.
Don Giussani soube falar ao homem enquanto tal, ao homem que tem perguntas irreprimíveis de sentido, que tem em si o desejo de viver plenamente cada aspeto da vida: o amor, a amizade, as relações, o trabalho, o empenho na sociedade, etc. O homem que, em última análise, está aberto a uma dimensão transcendente da vida e que se sente inquieto enquanto não consegue encontrar uma “resposta global” para as suas perguntas, aquela coisa que dá sentido a tudo, que se apresenta tão “repleta” de ser, de bem, de verdade que pode satisfazer qualquer desejo, que pode ser fundamento para qualquer aspeto da realidade e que pode dar espessura a qualquer experiência humana, incluindo, precisamente, os aspetos mais ordinários e “leigos” da existência: os afetos, a amizade, o estudo, a ciência, o trabalho…
A este “levar o homem a sério”, don Giussani juntou o “levar Cristo a sério”. Don Giussani apresentava-se aos seus primeiros alunos como um “padre de batina”, e como alguém que falava aberta e francamente da sua fé em Jesus Cristo. Desta forma, nunca escondeu a sua identidade, a sua missão, as suas convicções. A descoberta de Jesus como centro da história e do cosmos, como fulcro de tudo o que existe e como plenitude de sentido para o homem, foi uma verdadeira “iluminação” nos seus anos de juventude. Nunca deixou de comunicar e anunciar esta sua “descoberta” pessoal a todos os que encontrava. Don Giussani, com grande ênfase, colocou a tónica na iniciativa gratuita e surpreendente de Deus, que veio ao nosso encontro, que se fez “encontrável” e “experimentável” nos aspetos concretos da vida humana do seu Filho, na vivência histórica de Jesus de Nazaré, que permanece para sempre um “facto histórico”. Daqui a forte insistência no cristianismo não como sentimento, como intuição filosófica de verdades sublimes ou como rígida exigência ética, mas como “acontecimento” perenemente presente na história. Deus, a sua realidade, a sua existência, o seu amor, vieram ao nosso encontro na “carne humana” do Verbo feito homem, que permanece até hoje, e para sempre, concreta, “encarnada”, graças à Igreja, que é o “corpo” de Cristo, o seu prolongamento visível na história. Don Giussani nunca teve medo de falar de Cristo, mesmo em ambientes desfavoráveis a discursos religiosos. E nunca teve medo de dizer que encontramos Cristo na Igreja, e não em experiências solitárias de suposta “espiritualidade”. Encontramo-l’O na Igreja, entendida nos seus aspetos concretos, feita de homens e mulheres que creem e vivem juntos a sua fé, feita de pastores, feita de “Tradição” – a interpretação global da realidade que nos fornece o credo cristão – e feita de “tradições” – as modalidades históricas, litúrgicas e devocionais através das quais a fé se exprime – que don Giussani sabiamente valorizou e repropôs aos seus jovens. Tudo o resto, diria eu, veio por si. Uma vez que as pessoas descobriam em Cristo a plenitude da existência humana e o acolhiam, quase naturalmente, por “superabundância” e por “coerência interior”, expressavam a nova presença de Cristo em si mesmos, em tudo o que faziam: no mundo do trabalho, nos ambientes profissionais, nos ambientes escolares, nos gestos caritativos que floresceram ao longo dos anos.
Don Giussani, portanto, soube juntar “as perguntas do homem” e “a resposta de Deus” mostrando a razoabilidade do anúncio cristão enquanto plena realização do humano. O seu carisma de educador sabia despertar as grandes perguntas do coração, trazendo à luz as aspirações do homem, e sabia mostrar como Cristo é a resposta definitiva a todas essas perguntas. E isso fascinou milhares de pessoas no decorrer da sua vida.
Refletindo bem sobre isso, podemos ver neste aspeto do carisma de don Giussani uma iniciativa providencial do Espírito Santo, que antecipava nele aquilo que inspiraria também no Concílio Vaticano II. Os padres conciliares, com efeito, propuseram-se a falar de novo, com verdade e franqueza, ao homem contemporâneo e a propor a perene validade de Cristo. Pensemos nas conhecidas afirmações da Gaudium et spes, que elenca as interrogações fundamentais presentes em nós: «Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisas pode dela receber? Que há para além desta vida terrena?» (GS 10). Diante destas perguntas, os padres conciliares afirmam: «A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo (…) oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação (…) Quer, portanto, o Concílio, à luz de Cristo (…) dirigir-se a todos, para iluminar o mistério do homem» (ibid.). Foi exatamente isso o que don Giussani fez durante toda a sua vida, e que continua a ser o grande contributo que ele deu à Igreja.
A extraordinária obra educativa e de evangelização deste padre apaixonado, fiel servidor da Igreja, que eu quis sintetizar na expressão “levar o homem a sério – levar Cristo a sério”, continua a ser ainda um “indicador de direção” também para a atualidade da Igreja. De facto, a Igreja, por um lado, corre o risco de “não levar o homem a sério” quando o banaliza, quando o reduz às suas necessidades mais superficiais e acaba assim por propor, nas suas atividades, experiências vácuas e passageiras de emotividade religiosa, ou quando se limita a aproximar-se do mundo ao promover apenas bem-estar psicológico e material para a coletividade. Por outro lado, coisa ainda mais séria, a Igreja corre sempre o risco de “não levar Cristo a sério”, porque cala a respeito dele, porque não o põe em primeiro plano, reduzindo o seu anúncio a “valores” ou a “deveres civis” ou a “normas morais” extrínsecas, chegando às vezes a quase dar a impressão de “envergonhar-se” de Cristo, na falsa convicção de não dever “impor” as suas ideias, de não querer parecer “dogmática” e “arrogante” nas suas propostas.
Don Giussani ensina-nos, ainda hoje, a não termos estes falsos receios, a não escondermos a nossa candeia, que é Cristo, debaixo do alqueire, mas a colocá-la bem à vista sobre o candelabro da Igreja. O seu carisma e o seu incansável apostolado não são apenas um dom para a Igreja, são também o contributo que don Giussani deu ao mundo, porque o mundo inteiro está à espera da Verdade, da reconciliação, da esperança, que só podem vir de Cristo.
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