William Congdon, "Natividade" (1965)

O «inferno» é não conseguir sair e não ter onde regressar

«Quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno». A entrevista ao Pe. Pedro Quintela, presidente da Associação Vale de Acór, a partir do Manifesto de Natal 2024 de Comunhão e Libertação
Frederico Meira

O que é concretamente este «inferno» em que se encontram as pessoas que têm problemas com as drogas ou com o álcool, como tinham as pessoas que agora acompanha no Vale de Acór?
O inferno é não conseguir sair, é não poder sair. Também não poder regressar, não ter onde regressar. Os outros podem infernizar-nos a vida. Na travessia da vida, os outros são, tantas vezes, infernais. Sartre afirmou qualquer coisa que é vizinha da experiência comum das pessoas. Mas generalizou, absolutizou e censurou a sã generosidade do real. Cru ateu, não deu pelo mistério da Visitação. Às vezes os mesmos outros, outrora ‘inferno’, noutros momentos de existência, ou outros, mesmo outros, são também a porta do Céu. Os outros salvam-nos. Mais ou menos conscientemente, são a Mão de Outro. Nas drogas, no álcool, o inferno – e o diabo – parece-se demorada e demasiadamente comigo mesmo. Com todo o tamanho de mim. E depois, numa espiral aberrante, com o tu, ele, vós, eles... Desaparece, todavia, o nós. Dizer eu tem um eco insuportável e devastador.

O que é que o levou a si, especificamente, a aventurar-se nesta missão no Vale de Acór?
Fui trazido. Pelo mesmo Deus que já dissera a Abrão: ‘Vai!’ A história não é escrita por Deus, embora, seguramente, Deus providencie o que pretende que aconteça na história.

Qual é a esperança real para estas pessoas?
É a salvação. A esperança é sempre “coral”: o eu disposto – novamente, finalmente? – à escuta do Tu. Quando o eu diz seriamente tu, chega o nós. A esperança é coral. É, realmente, comunidade: desejada, com sofrimento procurada. Se encontrada, também e sempre, sofrida.

Foto: Pedro Marques Pereira

E o que sustenta a sua esperança e a dos que trabalham consigo?
Sermos proporcionais à densidade do real. Portanto, filhos, irmãos, servos. Não donos, funcionários, especialistas. Bem o diz a palavra: Corpo. Recebermos, suplicarmos, mexemo-nos como Corpo de Cristo.

Como é que se mostra a uma pessoa nestas circunstâncias que está de facto no meio do inferno?
Isso é o dado inaugural que nos fez cruzarmo-nos: o inferno como a insuportável “zona residencial onde habito”. Outra coisa, porém, reconhecer com verdade “como aqui vim parar?”

Como é que se mostra a alguém que está no meio do inferno de forma tão acentuada algo que não é inferno? Que trabalho é feito no Vale de Acór a este respeito e como tentativa de que a pessoa não queira apenas apagar o seu passado «infernal» mas possa, pelo contrário, descobrir uma riqueza nele?
Escreveu Lúcio Cardoso: “Pecado original como tragédia. Existência de um estado anterior sem falhas, sem corrupção. Não estamos no nosso lugar”. O originário, o fundamento do real, é bom. Ver como Deus a realidade inaugural é ver o bem: “e Deus viu que era bom”. Temos numerosas competências na nossa equipa: especialidades médicas, desde a psiquiatria à cuidadosa enfermagem. Recorremos às boas práticas da psicologia e de outros saberes e competências. Mas o essencial é oferecermos uma experiência, refundadora de normalidade, chamada comunidade. Mesmo num inferno, onde esteja por lá muita gente, não haverá nunca uma comunidade. Esta é sempre “edificadora”. O Inferno é poder destruir, uma vez mais e ainda mais.

Para acabar, podia descrever brevemente a realidade do Bairro que costuma visitar e identificar o(s) ponto(s) de luz que ali tem visto nascer nos últimos anos?
Esse Bairro fica na periferia. Portanto, um lugar onde as pessoas com um poder de compra razoável detestariam viver. E esse é um primeiro paradoxo: porque quem habita as periferias, muitas vezes, gosta de viver onde está. São pessoas que não querem sair donde vivem.
É um Bairro de barracas. O que traz consigo um outro paradoxo: é um local de intensas relações de vizinhança. Em contraste, portanto, com os prédios dos Bairros sociais, e de tantos outros lugares, onde as pessoas moram sem se relacionarem. Mas são lugares muito abandonados! Deixados entregues a si mesmos. E aos seus numerosos problemas. Quase todos reenviáveis ao facto de serem lugares abandonados...
É impressionante, porém, a operatividade do que hoje se chamam “Ativistas”, militantes que potenciam os dinamismos dos Bairros sociais em favor dos seus propósitos ideológicos... Também aqui o relevante é a manifestação do Espírito na carne. A carne é uma Capela que ali foi construída com imenso cuidado e entusiamo. Fez-se uma Casa onde o Senhor visita os seus filhos e que, muito o desejámos, fosse digna d’Ele! E também “dignificadora” dos seus pobres filhos. Acresce, ao tamanho real desta Casa, o Corpo de Cristo que ali vai crescendo. Crescendo como comunidade. Jesus em nós. Nós reunidos em comunhão em Cristo Jesus. Alguns baptismos, muito menos casamentos, a catequese e os campos de férias no verão, a cachupa habitual nas festas, uma peregrinação a Roma(!) com cerca de 30 pessoas, são sinais do Senhor a trazer-nos o Seu reino...