Hussam Abu Sini no início de ano do CL na Lombardia (Foto: Fraternidade CL/Pino Franchino)

«A Novidade da Minha Vida»

O testemunho, por videoconferência de Haifa, Israel, de Hussam Abu Sini, responsável pela comunidade do movimento na Terra Santa, na Jornada de Início de Ano de CL Lombardia
Hussam Abu Sini - 07.10.2024

Boa tarde a todos, eu chamo-me Hussam. Para aqueles que não me conhecem, sou católico, árabe, israelita, de origem palestiniana. É complicado... Sou oncologista, nasci e cresci em Nazaré e vivo em Haifa, uma cidade à beira-mar no norte de Israel, com a minha mulher Chiara, que é italiana, e os nossos dois filhos pequenos.

Conheci o movimento em 2008, quando estudava medicina em Turim. Conheci um grupo de pessoas durante as eleições universitárias. Era um período muito delicado da minha vida, em que tinha decidido abandonar a universidade porque me sentia só. Mas, precisamente nessa altura, conheci aquelas pessoas, em particular um rapaz, que depois se tornou o meu melhor amigo e padrinho de casamento, que me deu O Sentido Religioso em árabe. Quando voltei para casa, li esse livro. No início não foi fácil, li-o umas duas vezes, mas apercebi-me de que as questões de que falava eram as que eu estava a viver e disse para comigo: «Se aquele rapaz me deu este livro, é por uma razão: porque me quer lá». Por isso regressei a Turim, terminei Medicina e é graças a esse encontro que hoje sou médico e estou aqui a falar convosco.



Ao conhecer aquelas pessoas, percebi que havia outra forma de lidar com as coisas, havia um amor que era gratuito para comigo e só me era pedido que o retribuísse. Assim, em 2016, terminei a universidade e decidi voltar para casa, para a Terra Santa, com a ideia de levar a beleza e a plenitude que tinha encontrado em Itália aos cristãos daqui, às pessoas que vivem aqui, para que pudessem ver o que eu tinha visto. Tinha também aquela posição “ideológica” que quase toda a gente aqui tem: nós, cristãos, nós, árabes, estamos aqui desde sempre e temos de ficar aqui. No percurso que agora vos conto, irão perceber que esta ideia – que é ideológica – cai por terra imediatamente, à primeira tempestade, em primeiro lugar para mim. Aquilo que eu percebi, em todas as coisas que vou relatar, é uma frase que Monsenhor Paolo Martinelli, Vigário Apostólico da Arábia Meridional, nos disse na Assembleia do Médio Oriente e depois na Assembleia Internacional de Responsáveis: «Estar em missão significa ser enviado por alguém, a alguém, com alguém». Já o tinha percebido no encontro de Turim, mas percebi-o ainda melhor depois, estando aqui, porque a primeira coisa que fiz, quando regressei, foi procurar a comunidade do movimento. Por isso comecei por estar com eles, mas depois, aos poucos, afastei-me um pouco para me dedicar ao trabalho. Mas não estava tão contente como em Itália, por causa daquela plenitude e beleza de que vos falei. Um dia, os amigos da comunidade convidaram-me para jantar e eu queria ir, porque me faziam falta. Mas quando ia a caminho, durante todo o percurso, dizia para comigo: «Agora vão começar a dizer-me: “Onde andaste? Por que é que nunca mais vieste, nunca mais apareceste? Dizias que era a primeira coisa que procuravas...”». O jantar era em Belém e, quando cheguei, não queria entrar, queria voltar para casa; antes de subir as escadas, dizia: «Não, não, agora vão zangar-se...». Entrei e estava lá um amigo nosso, o Ettore, um Memor Domini que esteve aqui vinte anos, e que, assim que me viu, me abraçou e me disse: «Sentimos a tua falta!». Aquele abraço foi muito significativo para mim. Dizia para comigo mesmo: «Onde é que se encontra um abraço assim?». Ainda hoje trago aquele abraço comigo. De facto, quando em 2018 me pediram para assumir a responsabilidade da comunidade na Terra Santa, disse logo que sim, porque era a forma de retribuir aquele amor que recebo continuamente.

Contei-vos estes dois factos para vos fazer perceber o que eu dizia no início, retomando Monsenhor Martinelli: «Enviado por alguém, para alguém, com alguém». Este ano – o ano da guerra – foi muito importante para mim. Pessoalmente, dei muitos passos, e toda a comunidade deu também muitos passos.

A 7 de outubro de 2023, estávamos a gozar as nossas férias. Pela primeira vez, fizemo-lo no início do ano e não no fim, precisamente para coincidir com a Jornada de Início de Ano. Explico-vos a complexidade da nossa comunidade, que é mista: sou eu, a minha mulher e os meus filhos, e eu sou árabe-israelita; há outra rapariga árabe-israelita; um rapaz italiano que está a fazer o doutoramento em Haifa; alguns Memores Domini que vivem em Jerusalém; quatro mulheres palestinianas de Belém e duas outras raparigas católicas de língua hebraica. As nossas férias eram de 6 a 8 de outubro, numa pequena aldeia chamada Abu Ghosh, vinte minutos a norte de Jerusalém. Começamos no dia 6, com a introdução, jogos, bom tempo, bom ambiente.... Acordámos no dia 7 com todos os vídeos e notícias sobre o que tinha acontecido nos kibutzes perto de Gaza. Houve de imediato momentos de agitação, de ansiedade. Juntamente connosco estavam quatro pessoas que tinham vindo de Itália para nos acompanhar, incluindo o nosso visitor, e no início decidimos continuar as férias, porque de qualquer modo não podíamos sair dali: ouvíamos os foguetes, os bombardeamentos, e começámos a rezar as Laudes juntos. Esse foi o primeiro ponto importante para mim: ali percebi que a unidade era dada pelas circunstâncias, sim, mas estávamos unidos porque estávamos todos a olhar para o mesmo lado. Chamou-me a atenção uma frase que o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, nosso Patriarca, escreveu a toda a diocese: «Onde há desordem, só Deus pode pôr ordem». Aquele dia poderia ter sido o mais desordenado da nossa história, mas desenrolou-se numa ordem incrível. Só Deus podia pôr ordem e todos nos apercebemos disso, estávamos todos a olhar para o mesmo lado. Enquanto fazíamos a Jornada de Início de Ano, que antecipámos para a manhã seguinte, caiu um foguete a trezentos metros de nós (e havia crianças connosco!). Foi bonito ver como fomos todos para o bunker, com uma ordem nunca vista, como uma família: o árabe perguntava pelo judeu, o judeu perguntava pelo árabe. Descobrimo-nos realmente como irmãos que estavam a fazer umas férias juntos. À tarde, para aliviar um pouco a tensão, fizemos jogos, até que chegou a notícia de que os postos de controlo entre Jerusalém e Belém podiam ser encerrados por tempo indeterminado. Para quem não sabe, existe um muro entre Israel e a Palestina e os palestinianos precisam de uma autorização especial para passar nos postos de controlo. Se estes fossem encerrados indefinidamente, eles ficariam presos em Israel sem poderem regressar para junto das suas famílias. Por isso, rezámos a Missa rapidamente e depois partimos. Uma amiga nossa de Belém, ao sair, com lágrimas nos olhos, disse-me: «Tenho de voltar para casa, a minha família está lá, mas não quero perder a intensidade que estamos a viver aqui». Abracei-a e respondi-lhe: «Olha, isto não acaba aqui. Começa aqui!». E um dos nossos amigos, que tinha vindo de Itália, disse: «We are one», somos uma só coisa. Este foi o nosso lema durante todo o ano e depois digo-vos porquê.

Regressámos a casa e, nessa altura, ainda não sabíamos para onde íamos e continuámos a avançar sem saber. Dez dias depois do início da guerra, o Cardeal Pizzaballa apelou a um dia de jejum e oração. E isto impressionou-me muito: a presença de Pizzaballa nestes meses foi para mim e para a nossa comunidade fundamental, crucial, porque foi o único a apelar à paz entre dois povos que clamavam por vingança. Numa carta a toda a Diocese, escreveu: «Cristo venceu o mundo amando-o», e isso deve dar-nos a coragem de dizer quem somos. Eu, graças ao que vos contei antes – desde o primeiro encontro até ao meu regresso e ao abraço do Ettore, até àquelas férias – percebi que Cristo me venceu amando-me, oferecendo-me o Seu amor, e só me pediu para o retribuir. Isso deve dar-me a coragem de ir e dizer quem sou.

Naquele dia de jejum e de oração, a minha mulher e eu fomos à Missa, era uma terça-feira à noite, e fiquei muito impressionado com o facto de a igreja estar cheia, pois na nossa terra as pessoas normalmente só vão ao domingo: ali descobrimo-nos parte de um povo, um povo que está a gritar pela paz. E por isso – inicialmente a pedido da minha mulher, depois ajuizando-o juntos – decidimos antecipar o Batismo da nossa filha Marta, que tinha então quatro meses. Primeiro: porque, ajuizando com amigos, tínhamos medo, não sabíamos como as coisas iriam correr. Segundo: porque queríamos que a nossa filha fizesse parte daquele povo. E terceiro: para a confiar Àquele que nos deu esperança numa altura em que havia falta de esperança para o país. O Batismo foi muito bonito: celebrámo-lo aqui em Haifa, numa pequena capela de católicos de língua hebraica (o pároco é italiano e, ao longo dos anos, tornámo-nos amigos) e o rito foi conduzido em três línguas diferentes: italiano, árabe e hebraico. Digo sempre aos meus amigos: «Encontrem-me um sítio, nesta situação, onde estas três línguas se encontrem!». Foi de facto uma grande festa confiar a nossa filha Àquele que nos dava esperança naquele momento. Digo também – enquanto pai – que a forma mais bela de amor que se pode dar a um filho é confiá-lo, porque se o amor não for aquilo, há qualquer coisa de errado. Ali percebi cada vez melhor que é um amor o que caracteriza a minha vida e me acompanha no trabalho que faço.

Sou oncologista num hospital aqui, em Haifa. É um hospital misto, onde há judeus, árabes, cristãos e muçulmanos. Por isso, o clima é bastante tenso. Foi importante uma conversa com a minha secretária, que é árabe muçulmana, a quem tinha contado o meu encontro com o movimento através de um amigo que me tinha dado O Sentido Religioso. A certa altura, ela diz-me: «Mas como é que consegues falar com toda a gente e dizer o que pensas sem te chateares? Talvez até percebendo o outro?». Digo-lhe: «Olha, o fundador do nosso movimento, de quem te falei, disse-nos que só é possível amar o diferente se formos amados. E eu recebo esse amor a toda a hora». Ao que ela me pergunta: «Percebeste isso lendo os livros desse fundador?». «Não é só isso, não. Percebi-o estando com os meus amigos». E ela: «Mas existem amigos assim?». Aí percebi que o mundo tem sede da nossa amizade, daquilo que nós vivemos. Comecei a perceber cada vez melhor que nós estamos aqui não porque estamos cá primeiro, mas para uma tarefa, para anunciar ao mundo aquela amizade da qual ele tem verdadeiramente sede.

Conto outro episódio, que aconteceu com um doente meu, judeu, que morreu a 28 de abril. Este homem, a quem me afeiçoei muito, tinha um cancro do pulmão metastático. Tentei tudo com ele (quimioterapia, radioterapia, imunoterapia, cirurgia à coluna), mas tudo corria mal, a doença progredia e eu sentia-me um pouco falhado em relação a ele. Na sua última semana de vida, a mulher telefona-me: «Olhe, já não estamos a aguentar, está sempre na cama, é uma situação impossível de gerir. O que é que fazemos?» Eu digo-lhe: «Traga-o para o hospital, eu interno-o. Sabemos para onde ele vai, que morra com dignidade». Por isso, levo-o logo para a enfermaria, vou vê-lo e ele diz-me: «Obrigado por tudo o que fez por mim». Eu, com os meus botões, revolto-me: «Mas está a correr tudo mal!». No dia seguinte, às sete da manhã, vou ter com ele logo de manhã e descubro que ele mandou a mulher comprar presentes para os meus filhos. Digo-lhe: «Mas sabe para onde vais; porque é que fez isso?». E ele: «Sei muito bem para onde vou, mas graças a si olhei para a doença de outra forma». Aquilo foi outra chamada de atenção para mim: não estou ali para curar (quero curá-los a todos!), mas estou ali para comunicar outra coisa. E aquele homem morreu feliz.

Naquela manhã, saio do quarto com os dois presentes para os meus filhos, com aquela chamada de atenção que me tinha “rasgado” em dois, e vejo um enfermeiro de quem sou amigo há cinco anos. Ele, sempre que discutimos, sobretudo por causa da guerra, diz-me: «Tens uma mulher italiana, a Itália é o país mais bonito do mundo, foge! O que é que estás a fazer aqui? Porque é que ficas? Podes ir-te embora...». Naquele dia, ele vê-me, eu falo-lhe do doente e ele diz-me: «Há cinco anos que me tentas explicar porque queres ficar aqui. Hoje percebi. Tu tens de ficar aqui». Na verdade, se nós ficamos, é para uma tarefa, uma tarefa muito grande.

Conto apenas uma conversa que tive com três mulheres palestinianas sobre uma série de problemas que tinham surgido: o telefonema, às dez da noite, começou em tons de zanga («Queremos que as coisas sejam assim!») e, a certa altura, eu próprio me zanguei: «Porque é que estou aqui às dez e meia a falar convosco? Porque gosto de vocês! Vocês são fundamentais no caminho que fazemos, porque são o primeiro apelo para mim. Tal como os outros também são fundamentais». E elas perguntam-me: «Mas como é que fazemos para viver assim?». «Pertencendo a um lugar». E elas: «Mas como é que se faz para pertencer cada vez mais?». «Há uma maneira: a inscrição na Fraternidade». E elas, as três ao mesmo tempo: «Queremos inscrever-nos na Fraternidade!». Impressionou-me muito, porque num determinado momento tu decides retribuir aquele amor: em vez de fazeres como faz o mundo, decides retribuir aquele amor ali.

Vou ler apenas um excerto de uma Tischreden, em que don Giussani diz: «Quem acredita em Jesus é tomado pela força do mistério de Cristo, é introduzido na Sua personalidade e torna-se assim um só corpo, no sentido literal da palavra, e este corpo dilata-se, está destinado a dilatar-se, a ser fecundo. A relação entre Cristo e a companhia em que Ele se encontra torna esta companhia fecunda: esta companhia está destinada a tomar conta do mundo, a possuir o mundo». E depois continua: «Não é um sentimento o que nos une, não é um fenómeno social que se exprime, mas é o Mistério do Ser que se diz de uma maneira nova [...]. E esta companhia de Cristo está destinada a ser fecunda, ou seja, a entrar no mundo todo. À medida que se dilata, torna-se mais evidente que esta constitui, no seio da sociedade humana, um povo: é um povo diferente; um povo que percebe, concebe, julga, ama, decide e realiza de um modo diferente» (Una presenza che cambia, BUR, Milão 2004, p. 368).

De facto, gostaria de terminar exatamente como comecei: «Enviado por alguém, para alguém, com alguém» é o que caracteriza a minha vida. Esta é a novidade da minha vida, que me faz ser mais homem, mais pai dos meus filhos, mais marido da minha mulher, mais oncologista dos meus doentes e mais amigo dos meus amigos. Obrigado.