Meeting Lisboa 2023 – 2.º Dia
Síntese/testemunho do segundo dia do Meeting Lisboa 2023.E eu, quem sou? Esta é a pergunta última que Bernhard Scholz, Presidente do Meeting de Rimini, se coloca a si próprio diante do problema do trabalho, como nos contou durante o encontro da manhã de domingo, dia 12 de novembro, com o título “Trabalhar no século XXI: para quê?”. Para que o trabalho não se torne a certa altura uma alienação da realidade, eu preciso de me fazer a pergunta sobre o significado daquilo que faço. Aliás, esta pergunta emergirá sempre. Scholz fazia um exemplo: para pagar os seus estudos, durante meses teve um trabalho que consistia em mudar lâmpadas o dia inteiro; era um trabalho cansativo e de que não gostava muito (também a nós tantas vezes nos acontece isto). Onde posso reencontrar a força para permanecer, para não desistir da ideia de estudar? Impõe-se perguntar-me de novo: qual o sentido, porque faço isto?
Nuno Pinto Magalhães, o outro orador neste encontro, apontou uma pista: o gosto, a paixão pelo trabalho descobre-se “metendo a mão na massa”. Empenhando-me naquilo que faço descubro, como continuava Scholz, que a resposta à pergunta “Porque trabalho?” não a encontro dentro do trabalho. O cristianismo aponta uma estrada: não depende daquilo que eu faço, mas do significado daquilo que eu faço.
A exposição que deu origem a este encontro – “Grãos de pó coroados de glória: o trabalho no século XXI” – ilustrava este ponto muito bem. Ao “eu performativo” que nos propõe o mundo de hoje, um eu que se mede a si próprio no sentido daquilo que é capaz de realizar, o cristianismo responde oferecendo uma hipótese radicalmente diferente. Se eu me reconheço amado infinitamente, incondicionalmente, torno-me mais criativo, mais eficaz, mais inteligente sobre a realidade. Por isso, mais facilmente posso surpreender dentro do trabalho aquele significado que já intuía na minha vida através do amor de que sou alvo.
Esta mesma procura por um significado é um dos traços principais de outra exposição desta edição do Meeting, “Querendo, quero o infinito”. A história de encontro que alguns de nós fizemos com Fernando Pessoa (eu incluído) parte do reconhecimento de que, como ele, também eu sou antes de mais exigência de uma resposta para o grito do meu coração. Há uma tensão estrutural em mim para descobrir em cada instante e em cada pequena coisa “a eterna novidade do mundo”. Se eu for verdadeiro comigo mesmo, dou-me conta de que também “eu desejo impossivelmente o possível, / porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, / ou até se não puder ser…”. Nenhuma circunstância (mesmo “se não puder ser”) é capaz de me fazer esquecer o desejo imenso que eu sou.
Uma das intuições que mais me comove em toda a poesia de Pessoa é aquela de que esta estrada para descobrir quem sou não se faz sozinha. É preciso alguém, um amigo, para que eu permaneça. É impressionante que Pessoa escreva, depois da dúvida quase constante de que tal caminho exista, o seguinte poema:
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
(“O pastor amoroso”, Alberto Caeiro)
Pessoa escreve estes versos depois de se apaixonar por Ofélia Queiroz, com quem depois mantém um relacionamento. De facto, quando alguém se percebe amado vislumbra na vida sinais de esperança. O amor que ele procurou a vida toda é algo concreto: encontra-se através de pessoas, de carne e osso, que caminham comigo lado a lado.
A prova viva de que há qualquer coisa de irredutível no coração humano é a história de um rapaz contada noutra das exposições: “Andrea Mandelli: ofereço-te a minha mola”. O Andrea percebeu um ponto dramático sobre a vida: abraçar as circunstâncias é abraçar Cristo. Por isso, este rapaz viveu a doença que provocou a sua morte aos 19 anos de uma forma completamente nova, porque tinha a consciência clara de que a sua vocação passava por ali.
Nada da sua humanidade se perdeu, antes pelo contrário: impressiona pensar que, no meio da dor por que passava, quando estava no hospital queria sempre saber dos seus amigos. Tinha uma amizade de tal forma profunda com eles que dizia: “aquilo de que sinto mais falta por estar nesta situação é a presença física de Cristo que vocês são”. Do mesmo modo, a doença foi ocasião de se dar conta de que toda a realidade é interessante, porque toda ela é ocasião de me conhecer melhor a mim mesmo, ou seja, de me aperceber que em tudo há uma relação com o significado da vida. O estudo, que para o Andrea sempre tinha sido um ponto difícil, tornou-se central nos tempos do hospital e foi vivido com um empenho totalmente novo.
As palavras conhecidas do Andrea “Atenção. Perigo de vida e de morte. Sempre” ajudam-nos a entrar no último encontro do Meeting deste ano, “Homens, apesar de tudo”, sobre a Associação Russa Memorial. Há, de facto, o perigo de viver, até nas circunstâncias mais adversas, uma vida verdadeira, que procura qualquer coisa. Como se dizia no encontro, as histórias do arquivo do Memorial são a história da procura da semente de bem que o homem representa sempre. Sempre! Porque, apesar de tudo, o homem permanece. A exposição mostra que este milagre acontece, nos tantos exemplos que apresenta: algo subverte a lógica mecânica do mal. Os testemunhos das pessoas interrompem essa lógica.
Dizia Marta dell’Asta: “a esperança não está no facto de que o homem nunca se vai enganar, mas no facto de que recomeça sempre. As razões para ter esperança estão nas pessoas”. Penso que o Meeting é propriamente a expressão última destes pontos. A disponibilidade de todos os voluntários, que nunca deixa de impressionar, é um grande sinal de esperança. Há um lugar onde alguém ainda se move, ainda dá de si para ajudar a construir qualquer coisa que não é uma obra das suas mãos. Fazendo também eu esta experiência de ser voluntário no Meeting, dou-me conta de que cresço, na medida em que surpreendo em mim um olhar mais consciente dos vários fatores que constituem a realidade. Embatendo em tudo o que estes dias têm para oferecer, dou-me conta de que o homem se move por um significado. A coisa mais bonita para mim é perceber que nada seria possível sem a comunhão que se vive entre os voluntários, que me torno mais eu próprio arriscando viver dentro desta relação.