O gigante menino
A mensagem de Davide Prosperi, presidente da Fraternidade de CL, ao movimento de CL pela morte do Papa Emérito Bento XVIFoi da sua plenitude
que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho unigénito,
que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.
Queridos amigos,
o final do Prólogo do Evangelho de São João recorda-nos em que é que consiste o dom de graça que recebemos: foi-nos revelado Deus, o Ser, a origem e o fim de tudo aquilo que é, foi e será, o significado de tudo, das nossas vidas, da nossa alegria, das nossas dificuldades, sofrimentos, do nosso amar, chorar, darmo-nos, desejar, de tudo aquilo que enche a nossa pobre, embora grande, existência. Aquele que nos fez veio para ficar e nunca mais nos deixará sós, a tatear na escuridão.
Fez-se companhia do homem, uma companhia aparentemente frágil, como frágil e humilde parece ser a carne de um menino numa manjedoura; porém sólida, indestrutível como o sólido granito da pedra angular sobre a qual a companhia da Igreja está fundada: Jesus Cristo – o Logos feito carne – como o Papa Bento XVI, fazendo eco ao Evangelista João, gostava de Lhe chamar.
Um menino. Mas neste menino torna-se presente toda a Sabedoria de Deus, o olhar de Deus sobre o mundo, sobre o homem e sobre a história. «Veio ao mundo a luz verdadeira, aquela que ilumina todo o homem». Uma luz que não se impõe, oprimindo a liberdade dos homens, mas que se propõe com humildade, e simultaneamente coragem, ao crivo do coração e da razão de todos os homens.
Recordando Bento XVI, gigante da fé num tempo em que a fé parece perder terreno, pelo menos neste nosso mundo ocidental, é precisamente esta unidade de suave humildade e corajoso anúncio da «Luz verdadeira» aquilo que, antes de qualquer outra coisa, nos toca e comove. Na voz tão calma e ao mesmo tempo fascinante, humilde e ao mesmo tempo de autoridade deste homem, é como se tivéssemos verdadeiramente visto encarnar-se novamente o paradoxo do fascínio do Cristianismo; o paradoxo do fascínio de um anúncio que aclara e ilumina com a força simples da Sua razoabilidade, que atrai pela sua capacidade de corresponder à exigência de verdade, beleza, amor que o coração de cada homem alberga. Nele, impressionava sobretudo a lúcida consciência da sempre crescente fratura entre fé e vida, que caracteriza as sociedades secularizadas do ocidente contemporâneo.
Desde os anos do Concílio Vaticano II e depois durante a crise de 68, captou, com uma profética perspicácia, os sinais daquela mudança de época – para usar a fórmula do Papa Francisco – que nos anos vindouros se iria tornar cada vez mais patente: ou seja, a passagem de um mundo em que a fé da Igreja continuava a ser um ponto de referência obrigatório para a maioria,
para um mundo em que Cristo se tornou um estranho para a maioria, e a Igreja é vista como uma coisa inútil, se não mesmo um obstáculo, para enfrentar as urgências da vida.
Já enquanto sacerdote teólogo, Ratzinger tinha compreendido que o verdadeiro desafio cultural que a modernidade, cada vez mais cientista e positivista, lança à Igreja se coloca ao nível da relação entre fé e razão. Pode ainda afirmar-se, com razão, que a fé é razoável, num mundo e num tempo em que tudo diz o contrário? Com a sua incansável reflexão teológica, Ratzinger reivindicou corajosamente o contributo que a fé pode dar a um uso adequado da razão: «Uma das funções da fé, e não entre as mais irrelevantes, é a de oferecer um saneamento à razão como razão, não violentá-la nem ser-lhe estranha, mas de reconduzi-la de novo a si mesma. O instrumento histórico da fé pode libertar de novo a razão como tal, de modo que esta última – posta no bom caminho da fé – possa ver por si mesma. […] A razão não se salvará sem a fé, mas a fé sem razão não se torna humana». E eis como o Papa Ratzinger descrevia a profunda razoabilidade da fé: «Por que motivo a fé ainda
tem possibilidade de sucesso? Diria: porque ela encontra correspondência na natureza do homem.
[…] No homem, há um desejo inextinguível de infinito. Nenhuma das respostas que se procuraram é suficiente; só Deus que se tornou finito, para romper a nossa finitude e conduzi-la à dimensão da sua infinitude, é capaz de vir ao encontro das exigências do nosso ser» (J. Ratzinger, “A fé e a teologia nos nossos dias: conferência aos presidentes das Comissões Episcopais da América Latina para a doutrina da fé”, 1 de novembro de 1996. Disponível em: http://sacramente.blogspot.com/2014/08/a-fe-e-teologia-nos-nossos-dias-cardeal.html)
Num mundo em que, desaparecendo Deus, cada vez se vai esvaziando também mais a inteligência e o gosto das realidades deste mundo, Joseph Ratzinger serviu a Igreja mostrando a todos como «a inteligência da fé se torna inteligência da realidade» (Bento XVI, Discurso aos participantes da Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para os Leigos, 21 de maio de 2010).
Para o Papa Ratzinger, o Deus de Jesus Cristo não é um Deus inimigo da vida, mas sim um Deus que, ao abrir os olhos do homem sobre a verdade de Deus, de si, e das coisas do mundo, permite apreciar a vida cem vezes mais: «Porventura não temos todos nós, de um modo ou de outro, medo», disse ele na memorável homilia da Santa Missa pelo início do seu ministério de Papa, de que «se deixarmos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrirmos completamente a Ele – [...] Ele possa tirar-nos algo da nossa vida? Não temos porventura medo de renunciar a algo de grandioso, único, que torna a vida tão bela? Não arriscamos depois de nos encontrarmos na angústia e privados da liberdade? […] Não! Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada, absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida.
Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentamos o que é belo e o que liberta. […] Não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira» (24 de abril de 2005).
Quanta esperança despertou em quem o ouvia com simplicidade de coração! Todo o seu magistério foi marcado pela profunda convicção de que a resposta adequada às questões do homemcontemporâneo, a Palavra que resume e contém todas as palavras, é a carne do homem Jesus de Nazaré. É no fazer-se carne do Logos que se encontra o verdadeiro rosto de Deus, e é no olhar deste homem que vemos refletida a verdade de nós, do outro, de todas as coisas: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo» (Deus caritas est, 1). Joseph Ratzinger utilizara palavras semelhantes para descrever o contributo de don Giussani à vida da Igreja contemporânea: «O ponto fundamental para Giussani é que o cristianismo não é uma doutrina, mas é um acontecimento, um encontro com uma pessoa, e desse acontecimento, desse encontro, nasce um amor, nasce uma amizade, nasce uma cultura, uma reação e uma ação nos diversos contextos» (J. Ratzinger, «Um novo início abre as portas ao futuro», entrevista concedida a R. Fontolan, Passos-Litterae communionis, n. 56, dez. 2004).
Cristo torna-se presente ao homem de hoje graças ao encontro com a experiência de uma humanidade diferente, ou seja, com a «criatura nova» (São Paulo) gerada pelo Batismo, no seio da realidade viva da Igreja. Este é o elemento que impressionou o então cardeal Joseph Ratzinger, ao conhecer don Giussani e o movimento no início dos anos setenta: «Encontramos em Itália don Giussani e os seus. E […] vi que, no momento da grande revolução marxista, havia outros – neste caso, principalmente jovens universitários – que tinham entendido a revolução cristã, que não respondiam à revolução marxista […] com um conservadorismo, mas com a revolução fresca e muito mais radical da fé cristã» (Pontificium Consilium pro Laicis, I movimenti ecclesiali nella sollecitudine pastorale dei vescovi, Cidade do Vaticano: LEV, 2000, pp. 224-225).
E ainda: «Encontrei ali jovens cheios de fé, fervorosos, que nada tinham a ver com um catolicismo esclerosado e cansado, e nem com uma ideia contestadora – que considera tudo o que havia antes do Concílio como uma coisa totalmente superada; mas uma fé fresca, profunda, aberta, e com a alegria de ser crente, de ter encontrado Jesus Cristo e a Sua Igreja. E aí entendi que há um novo início, que existe realmente uma fé renovada que abre as portas para o futuro» (J. Ratzinger, «Um novo início abre as portas ao futuro», op. cit.). Falando aos missionários da Fraternidade de São Carlos, poucos dias antes da sua renúncia, Bento XVI disse sobre don Giussani: «Conheci a sua fé, a sua alegria, a força e a riqueza das suas ideias, a criatividade da sua fé. Nasceu uma verdadeira amizade» (Bento XVI, Audiência com os participantes da Assembleia Geral da Fraternidade Sacerdotal de São Carlos Borromeu, 6 de fevereiro de 2013).
Muitas são, a este propósito, as histórias divertidas que são lembradas sobre a amizade entre os dois – amizade que teve um influxo decisivo sobre o pensamento e sobre a proposta educativa de don Giussani. Este último tinha o hábito de se confrontar com o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, card. Ratzinger, para se certificar da ortodoxia de algumas fórmulas audaciosas que usava no seu discurso. Uma vez, durante um destes encontros, os dois trocaram inadvertidamente de óculos. Don Giussani não se apercebeu logo, mas quando lhe chamaram a atenção para o facto, a sua resposta foi mais ou menos esta: “Vê-se que vemos as coisas da mesma maneira!”. Don Giussani tinha ficado profundamente marcado por uma afirmação de Ratzinger, que nos fez aprender de cor: «A fé é uma obediência de coração à forma de ensinamento à qual fomos entregues» (J. Ratzinger, «Da intervenção de apresentação do Novo Catecismo da Igreja Católica», L’Osservatore Romano, 20 de janeiro de 1993). Via expressa nela uma indicação fundamental para o nosso caminho: viver uma obediência ao carisma que o Espírito Santo deu a don Giussani, ou seja, àquela modalidade de viver a fé, cheia de atração e e de razoabilidade, em que embatemos e que mudou a nossa vida; mas ao mesmo tempo, também a objetividade da fé da Igreja, que através do carisma de don Giussani chegou até nós.
Permanecerão para sempre guardadas na nossa memória as palavras do cardeal Ratzinger na homilia do funeral de don Giussani, no qual ele próprio pediu para participar pela amizade que o ligava a ele: «“Os discípulos, ao verem Jesus, alegraram-se”. Estas palavras do Evangelho que acabámos de ler indicam-nos o centro da personalidade e da vida do nosso don Giussani. Don Giussani cresceu numa casa – como ele próprio disse – pobre de pão, mas rica em música. Assim, desde o início, foi tocado, aliás, ferido, pelo desejo de beleza; e não se contentava com uma beleza
qualquer, com uma beleza banal: procurava a própria beleza, a beleza infinita; e deste modo encontrou Cristo, a verdadeira beleza em Cristo, o caminho da vida, a verdadeira alegria. […] manteve sempre fixo o olhar da sua vida e do seu coração em Cristo. E compreendeu assim que o cristianismo não é um sistema intelectual, um conjunto de dogmas, um moralismo, mas um
encontro, uma história de amor, um acontecimento. […] Don Giussani não queria realmente guardar a vida para si, mas deu a vida, e assim encontrou a vida não só para si mesmo como também para muitos outros. […] Tornou-se realmente pai de muitos, e, tendo guiado as pessoas, não para si, mas para Cristo, ganhou os corações, ajudou a melhorar o mundo, a abrir as portas do mundo para o céu» (A. Savorana, Luigi Giussani: A sua vida, Tenacitas, Coimbra 2017, pp. 1218-1219).
Permito-me concluir esta mensagem com uma recordação pessoal minha. O Papa Bento XVI, com efeito, desempenhou um papel fundamental no meu percurso de fé, em especial nos momentos mais decisivos da minha vida adulta. A sua eleição para a cátedra de Pedro impressionou-me muito. Foi assim que o vi, desde o primeiro momento e depois cada vez mais durante toda a evolução do Seu Pontificado: um gigante menino. Gigante, pela sua estatura intelectual e espiritual, pela profundidade do seu pensamento; menino, porque verdadeiramente, na candura do seu olhar, no seu modo de falar, tão simples e direto, transparecia um coração de menino. Quando o “víamos falar”, talvez diante da TV, sentíamo-nos seguros. Mais: sentíamos que
se reacendia em nós a dedicação a Cristo, Ideal totalizante da vida, pois ele tinha o dom de saber voltar a colocar-nos sempre diante da beleza de Cristo. Recordo em especial a homilia no início do Seu ministério de Papa, que já citei acima. Recordo o calor que me invadiu precisamente quando, no final da homilia, comentando o famosíssimo «Não tenhais medo, abri as portas a Cristo!» do Seu predecessor, disse: «Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo». Decidi, naquele dia, que o que quer que me acontecesse na vida, seguiria aquele homem, confiaria nele. E, de facto, assim tentei sempre fazer. Tive, além disso, em várias ocasiões, a sorte de estar com ele pessoalmente. Uma inteligência que se sobrepunha a qualquer outra, aliada a uma ironia extraordinária: transmitia paz, certeza, esperança. Como se lê sobre Jesus nos Evangelhos, também ele tinha o dom de desvendar, com palavras simples, os mistérios mais profundos e inacessíveis. Assim, os seus livros sobre Jesus de Nazaré, embora ricos de reflexões profundíssimas, podem ser lidos e compreendidos por todos. A verdade é para os simples, não é propriedade dos mais dotados. Ajudou-me a tomar decisões fundamentais para a minha vida, e certamente sem a sua ajuda esta teria tomado, em alguns aspetos, uma direção diferente.
Hoje estamos tristes e magoados. A presença silenciosa, mas tranquilizadora, do Papa emérito vai fazer-nos falta. Por outro lado, precisamente o tipo de companhia que nos fez nestes últimos anos diz-nos alguma coisa sobre a forma como ele continuará a estar eficazmente presente entre nós: com a força da Sua intercessão e com a luz do seu ensinamento, confiado para sempre à Igreja. Peçamos a Deus que essa luz possa continuar a iluminar a Igreja de hoje, mesmo depois da
sua partida.
Querido Papa Bento, sustenta lá de cima o nosso caminho, o caminho da Igreja, do nosso querido Papa Francisco e o caminho de cada um de nós. Acompanha também o caminho da nossa Fraternidade em direção àquela santidade que tu nos testemunhaste, dando a vida pelo teu amado Mestre, servindo-O sempre como «humilde trabalhador na vinha do Senhor» (19 de abril de 2005).