«Era uma simplicidade de coração, aquela que me fazia sentir e reconhecer Cristo como excecional…»

Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na celebração comemorativa do XVI aniversário da morte de Monsenhor Luigi Giussani

Em pleno Tempo Pascal e tendo presentes o XVI aniversário da morte de Monsenhor Luigi Giussani e o XXXIX do reconhecimento pontifício da Fraternidade de Comunhão e Libertação, ouvimos as passagens bíblicas quer a Igreja nos oferece neste dia.

Primeiro o relato da conversão de São Paulo, neste trecho dos Atos dos Apóstolos: «Naqueles dias, Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, foi ter com o sumo-sacerdote e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de trazer algemados para Jerusalém quantos seguissem a nova religião, tanto homens como mulheres. Na viagem, quando estava já próximo de Damasco, viu-se de repente envolvido numa luz intensa vinda do Céu. Caiu por terra e ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, porque Me persegues?” Ele perguntou: “Quem és Tu, Senhor?” O Senhor respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade e aí te dirão o que deves fazer”».

Saulo, que passará a ser Paulo, tinha o horizonte bem definido, no quadro religioso que era o seu. Nele não cabia o que os primeiros discípulos de Cristo propalavam, nem sobre os culpados da sua morte nem sobre a ressurreição que garantiam com desassombro. Por isso concordara com a morte de Estêvão, primeiro mártir cristão, e também agora prosseguia para Damasco, para acabar de vez com o que considerava um perigoso desvio religioso, que punha em causa a realidade que era a sua e convictamente defendia.

Foi então que, segundo o trecho que ouvimos, «se viu de repente envolvido numa luz intensa vinda do Céu». Surpresa absoluta que lhe ofuscou o que vira antes e lhe reabriu depois os olhos para outra realidade mais vasta, ou seja, para a realidade que esse mesmo acontecimento inesperadamente lhe manifestou. Os anos que se seguiram, até ao seu martírio em Roma, três décadas depois, comprovaram não se tratar duma ilusão momentânea, mas sim dum facto total que se efetivou em tudo o que disse e fez a partir daí.

A evangelização a que Paulo se entregou nasceu da sua abertura ao acontecimento que a originara e a que ele próprio se converteu, alargando assim o campo do real ao facto indesmentível da luz que o inundara e da voz que escutou: «Eu sou Jesus, a quem tu persegues!». Ultrapassando tudo o que o limitara até aí, Paulo não resiste à presença ressuscitada de Jesus, prolongada agora nos primeiros cristãos. E cumpre a ordem de entrar em Damasco e encontrar a Igreja. Essa mesma que queria eliminar e em que acaba por se incluir pelo batismo.

Um acontecimento a que não resiste torna-se chave da realidade no seu todo, como acabará por escrever aos colossenses, relativizando tudo o mais: «Tudo isto não é mais que uma sombra das coisas que hão de vir; a realidade está em Cristo» (Cl 2, 17).

Não diverge desta a lição que ouvimos a seguir, no trecho do quarto Evangelho. É o próprio Jesus que se apresenta como realidade bastante e alimento essencial duma vida que deseje de facto perdurar: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia. A minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele. Assim como o Pai que vive Me enviou e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come viverá por Mim».

No absoluto que Deus é apenas entra quem de Deus provém: Jesus vive a partir do Pai e nós sobrevivemos a partir de Jesus que ao Pai nos levará consigo. Crer é não desistir da realidade total assim mesmo apresentada e oferecida a cada um que a aceite. Comprovam-no dois milénios de Cristo no mundo, repercutido em martírios cruentos ou incruentos, de ontem e de hoje, todos eles a testemunhar sem desmentido que a realidade que nos toca e a tantos especialmente dói, entristece e limita só é suportável naquele horizonte mais largo em que a paixão, morte e ressurreição de Cristo garantem a esperança e nos recobram o ânimo.

Inegavelmente assim, na religião do Verbo encarnado, da divina Palavra humanamente demonstrada, da Páscoa de Cristo feita vida do mundo. A estrada de Damasco em que cada um se rende à evidência de Cristo, comprova-se e convence em cada testemunho cristão. Cada comunidade que o seja deveras é lugar disso mesmo, como foi para Paulo aquela de Damasco em que foi batizado. Deus uno e trino é comunhão do Pai e do Filho no amor do Espírito e por isso só em comunidade se aprende. A comunidade que o Ressuscitado amplia em nós, seu corpo eclesial e verdadeiro. Assim ouviu o próprio Paulo «Eu sou Jesus, a quem tu persegues – perseguindo os meus».

Sem concordismo fácil com o que acima ouvimos, antes em clara coincidência, oiçamos agora Monsenhor Giussani, a resumir a sua própria experiência e a origem do “povo” que gerou. Fê-lo diante de São João Paulo II e dos muitos que participavam no encontro com os movimentos eclesiais e as novas comunidades, na Praça de São Pedro, a 30 de maio de 1998. Dizia assim: «Era uma simplicidade de coração, aquela que me fazia sentir e reconhecer Cristo como excecional, com uma certeza imediata, como acontece pela evidência incontestável e indestrutível de fatores e momentos da realidade que, uma vez que entram no horizonte da nossa pessoa, nos tocam até ao fundo do coração. […] Porque aquele Homem, o hebreu Jesus de Nazaré, morreu por nós e ressuscitou. Aquele Homem ressuscitado é a Realidade da qual depende toda a positividade da experiência de cada homem. Cada experiência terrena, vivida no Espírito de Jesus, Ressuscitado da morte, floresce no Eterno. Este florescimento não desabrochará só no fim dos tempos; ele já teve início no crepúsculo da Páscoa. A Páscoa é o início deste caminho para a Verdade eterna de tudo, caminho, portanto que já está dentro da história do homem. […] para mim, a graça de Jesus, na medida em que pude aderir ao encontro com Ele e comunicá-Lo aos irmãos na Igreja de Deus, tornou-se experiência de uma fé que, na Santa Igreja, isto é, no povo cristão, se revelou como chamamento e vontade de alimentar um novo Israel de Deus» (in Luigi Giussani, Stefano Alberto e Javier Prades, Gerar rasto na história do mundo, Lisboa, Paulus, 2019, p. 8-9).



Reconhecer a presença de Cristo, de mil modos atestada, na atualidade duma palavra que não passa, dum amor que não cansa e duma vida que perdura. Assim mesmo testemunhada, sem lugar para dúvida nem sofisma, por homens e mulheres que, hoje como ontem, aqui como além, concretizam nas mais diversas situações e exprimem nas mais variadas línguas os gestos e palavras que o Espírito de Cristo lhes induz: esta é a realidade que justifica a Igreja e tudo o que nela surja de autêntico, como o Movimento de Monsenhor Giussani igualmente manifesta.
Demos graças a Deus por tudo isto. Sejamos sinais da sua graça, para um horizonte mais amplo e luminoso do mundo que nos toca.

Lisboa, igreja de São Domingos (Santas Justa e Rufina), 23 de abril de 2021
+ Manuel, cardeal-patriarca