Prefácio à Via Sacra de Paul Claudel

Divulgamos o prefácio a esta obra de Claudel, recentemente publicada pelas Edições do Monte no seu primeiro “caderno Capa Rica”. Uma Meditação-oração-poema, disponível na Secretaria do movimento CL e na paróquia de Santa Joana Princesa.
Pe. Joaquim Pedro Quintela

“Via-Sacra” era o nome que os antigos romanos davam à rua que ligava o Coliseu ao Capitólio, lá onde estava a sede do poder imperial. Atravessava o Fórum e passava perante os mais famosos templos da urbe. Era a rua mais larga e sumptuosa da cidade. Os generais valorosos ostentavam os seus triunfos desfilando através dela e aí eram aclamados, apoteoticamente, recebendo assim a ansiada homenagem dirigida à sua glória pessoal.

“Estreita é a porta e apertado o caminho”, disse certa vez Jesus, “que conduz à vida”. E com isso anunciava uma outra “Via-Sacra”, desta vez rasgada e traçada na geografia do Seu coração e da Sua carne. Desde então, e assim, os cristãos perceberam que a “Via-Sacra” é Jesus. É ser conduzido à Paixão de Jesus. Pelo Espírito de Jesus, no Espírito de Jesus. Donde, e paradoxalmente, a travessia na dor, na violência e na irrisão do Filho de Deus, exposto aos homens como castigado e destruído até à morte, e morte de cruz – como os infames – passar a designar, na Páscoa de Cristo, o caminho da glorificação. Mas agora não já glorificação pelas proezas e imponência pessoal mas pelo sinal da vida entregue em amor. O sacrifício de si como único e decisivo triunfo: do amor, da vida dada até ao fim.

Foi, pois, esse o caminho que os cristãos começaram literalmente a percorrer e recompor em Jerusalém. Tratava-se de um exercício de “imitação de Cristo” e de “composição do lugar” para se identificarem com o Senhor. Promovida esta devoção pelos Franciscanos, a partir do século XIV, rapidamente se generalizou pela cristandade o fazer-se piedosamente a “Via-Sacra”.

Mais próximo de nós, e entre tantos outros santos, foi particularmente devotado a este gesto de piedade o Padre Cruz cuja beatificação se espera para breve. E mais perto ainda, e sobremodo, foi-lhe extremamente dedicado o Papa S. João Paulo II.

Sua a imensa gravitas com que preparou o Jubileu do ano 2000. A celebração dos 2000 anos do Mistério da Incarnação! Naturalmente particular esmero mereceu, nesse mesmo ano, a realização da tradicional “Via-Sacra” no Coliseu, em Roma. Ao grande Papa polaco ficou a dever-se o pequeno gesto que bastaria para apresentar o texto aqui publicado. Com efeito, foi esta meditação-oração-poema de Claudel que foi proposta ao mundo para ser meditada em Roma na “Via-Sacra” do ano 2000.

Nome grande da literatura, grande no testemunho da sua fé, autor iluminado na hora de dizer a Beleza crucificada e redentora, essencial e sublime, Paul Claudel (1868-1955) foi um homem abundante na intensidade da sua vida. Todos os impasses, oposições, derrotas, e também entusiasmos, gratidão e encontros com o amor e o desamor, e com a caridade dos que estão cheios da vida de Jesus, Claudel os viveu. Ateu nos alvores da sua juventude, vencido por uma conversão fulgurante, por ocasião de uma visita estética a Notre-Dame (seria apenas isso?) – “A minha conversão realizou-se a 25 de Dezembro de 1886. […] Eu estava de pé no meio da multidão, junto da segunda coluna, perto da entrada para o coro, à direita do lado da sacristia” –,
demorado e indeciso na hora de abraçar a condição de católico – “A segunda comunhão recebi-a no dia de Natal, a 25 de Dezembro de 1890, em Notre-Dame” –, Claudel tornar-se-á figura cimeira no protagonismo do Anúncio cristão.

De ofício diplomata, sucederam-se na sua vida as vicissitudes próprias de uma vida muito movimentada, seja na dramaticidade das suas travessias pessoais seja no confrontar-se com o tamanho do mundo e dos seus enredos.

E foi assim, aliás, no regresso a França em 1911, depois de uma demorada missão de 13 anos na China, que Claudel escreveu a sua Via-Sacra. Como que para dizer a si mesmo e ao mundo o Credo meditado na Paixão do Verbo, exercício esse a que se propôs aproando ao coração do cristianismo, ao mistério da Cruz redentora. Escrito como uma oração, o seu autor dedicar-lhe-ia pela vida fora grande importância. Católico sem concessão, também sem atavismos e frivolidades, Claudel era um homem de oração: Missa diária, recitação do Ofício todos os dias, Lectio Divina praticada com fidelidade, rezava também devotamente o Terço todos os dias. Por sua vez, à Via-Sacra, dedicava a sua piedosa atenção todas as Sextas-feiras, rezando-a na Igreja de Brangues, perto donde habitava. Seu o desejo de “não perder nada dessa meia hora inestimável ”…

E é esta transparência escrita da sua vida de oração, evidentemente intensa e profunda, que aqui nos é oferecida, na elevação e no testemunho de beleza que esta pequena publicação nos manifesta.
E passo a palavra ao nosso autor. Ei-lo colocando-nos com notável fulgor dentro da sua vida contemplativa (não confundir com vida mística), reconciliando as dores da existência com Nosso Senhor, comungando com Ele no mistério da Santa Cruz:

“Jesus responde a esta pergunta temível, a mais antiga da humanidade a que Job deu forma quase oficial e litúrgica. O Filho de Deus não veio para eliminar o sofrimento, mas para sofrer connosco. Não veio para eliminar a Cruz, mas para nela Se estender. De todos os privilégios específicos da humanidade foi este que escolheu para Si; do lado da morte, ensinou-nos que era o caminho de saída e a possibilidade de transformação. O interrogatório era de tal dimensão que apenas o Verbo podia preenchê-lo ao dar, não uma explicação, mas uma presença, quer dizer, substituir pela Sua presença a própria necessidade de explicação.”

Uma palavra final sobre esta primeira publicação das Edições do Monte no seu primeiro “caderno Capa Rica”. Obviamente que se trata de designações que aludem à vida de Igreja que nos é dado viver na Paróquia de Nossa Senhora do Monte de Caparica. Veremos quanto fôlego teremos no desenvolvimento desta actividade muito complexa, mas não menos urgente, de publicar literatura excelente ou, pelo menos, clara e precisa no dizer da autenticidade da fé. Num tempo em que tantos pouco mais lêem do que os textos, legendas e slogans que cabem nos seus telemóveis, mais relevante se torna não desistir de frequentar este caminho dos livros. Caminho de ar bastante rarefeito, mas que se frequentado com tenacidade contribui para evitar o resvalar da vida pela ravina da banalidade. Porque uma bela leitura é sempre um formidável eco do mistério de visitação.

A edição é ilustrada com fotografias da Via-Sacra da autoria de Claude Gruer na Igreja da Imaculada Conceição de Wimereux (no extremo norte de França, na geografia do Pároco de Aldeia, de Bernanos…). Discípulo do pintor dos Ateliers d’art sacré, Maurice Denis, e, sobretudo, do notável escultor Henri Charlier, dizia do seu trabalho: “tenho necessidade de investir-me por inteiro nos textos a que adiro”. Daí esta formidável Via-Sacra, nascida em meados dos anos 50, fruto da meditação do texto de Claudel. O nosso reconhecimento ao Pe. Hugues Derycke e a Franck Weens que desde o primeiro momento, sem mais, permitiram a publicação das suas fotografias. Fraternal, catolicamente.
A tradução e edição devem-se à Sofia Sá Lima. Os cuidados técnicos às indicações amigas da Margarida Appleton. A revisão do texto a João Pedro Vala e os cuidados da revisão final a António Brás.
A todos a gratidão do Prior.