Mireille Yoga, do Centro Social de Yaoundé, Camarões

“Eu sou ouro em bruto”

“Vem e vê”. Estas palavras abriram-lhe um caminho sem fim. E ela continua a segui-lo, no meio dos sem esperança. Mireille conta-nos de onde vem a novidade de vida do Centro Social. “Todos os dias há coisas que nos fazem dizer: Deus fez-se carne”
Davide Perillo

Chegou sozinha, de manhã cedo, de cara fechada, uma cara de miúda que mostra menos que os seus dezassete anos. As pontadas de dor faziam-na parar a cada três passos. Tinha a roupa molhada entre as pernas. As águas já tinham rompido quando Raina bateu à porta do Centro. Assim que a viu, Mireille correu ao seu encontro. Precisava de um médico, um hospital. “Perguntei-lhe: ‘Porque é que vieste aqui? De que estás à procura?’ E ela: ‘Preciso de alguém que confie em mim. Preciso de uma mãe’.” Mireille ainda se comove quando conta, e respira profundamente. “Uau.” E depois: “É uma resposta que eu não podia imaginar. Eu pensava que ela queria ajuda para dar à luz. Mas não era isso: queria alguém que a abraçasse”. Ela pensa por um instante, como se a ficha só caísse agora: “Isto fez-me perceber porque é que venho ao Centro. Não é para resolver uma necessidade, mas para ver quem responde ao seu grito. E quem o faz não sou eu: é o Mistério”. É disto que Mireille Yoga vive: grito e Mistério, a ferida do homem e a presença real, carnal, de Cristo. Quarenta e seis anos, o olhar luminoso de quem olha as coisas e vê o seu fundo, um sorriso aceso como as cores das roupas usadas pelas mulheres da sua Iaundé, Camarões, metrópole de um milhão e 600 mil habitantes e milhares de pobres que moram nas ruas. Muitos, muitíssimos deles são crianças ou adolescentes, abandonados por famílias que não conseguem ou não querem criá-los – ou simplesmente nem existem – numa pobreza mais feroz que a Covid (que por estas bandas, graças a Deus, ataca menos do que noutras). Muitos roubam, fumam canabis, drogam-se. Mas centenas deles, literalmente, batem todos os dias à porta do Centro Social, dirigido por Mireille. Aberto em 2002 pelo Padre Maurizio Bezzi, missionário italiano do Pime, não oferece refeições ou camas, mas uma proposta educativa, feita de escola e de formação profissional, mas também de auxílio às famílias e cuidados médicos, desporto e assistência a quem vai parar à prisão. Há salas de aula e cadeiras, um pequeno campo de futebol de terra batida e uma biblioteca, laboratórios com equipamentos de cozinha e, mais longe, os campos onde se cultiva trigo e se cria gado. Miúdos e sorrisos, por toda a parte. Aprendem a ler e escrever, às vezes também uma profissão, mas principalmente – se quiserem – a viver. Afinal, o Centro existe para isto: educar e gerar.
São palavras que têm um peso especial, sempre. Mas ainda mais na vida de Mireille, marcada por uma ferida: não teve filhos. Uma dor íntima que, para uma mulher africana, envolve também um estigma social e uma enorme pressão para que o marido a repudie, abandone “essa árvore que não dá fruto”. O seu marido, Victorien, não o fez, pelo contrário. Uma vez disse-lhe: “Para mim vales mais do que dez filhos”. E ela conta-o muitas vezes, admirando-se sempre com o milagre de mudança que a fé pode inserir num mundo que aponta para outra coisa.

“Aprendi-o ao encontrar a proposta que o Maurizio e o Pe. Marco, o missionário que o acompanhava, trouxeram para os Camarões”, conta. “Vi pela primeira vez pessoas falarem de Cristo como de um amor presente, e serem amigas por isso. Eu achava que era uma coisa distante. Perceber que está perto de mim foi uma surpresa, abriu no meu coração um grande desejo de o conhecer.” Quando o Pe. Maurizio a convidou para o seguir na aventura do Centro (“sai, Mireille, não fiques fechada nas tuas lágrimas: sai à rua e vê quantos miúdos precisam de uma mãe”), ela, simplesmente, seguiu: “Não fui para as ruas trabalhar, queria viver uma maternidade. Eu procurava um filho, e não percebia: como pode alguém ter um filho e abandoná-lo? Mas o Mistério leva-me muitas vezes por caminhos que não percebo. A única coisa que consigo fazer é segui-lo”. Tudo está aqui, nesta decisão, tomada contínua e repetidamente, seguindo os factos que a realidade apresenta. E aceitando que existem para ti, para abrir o teu olhar. E foi assim desde o início, quando, numa das primeiras noites que passou na rua, um rapaz a arrastou para um canto e lhe apertou uma faca contra a barriga: “O que é tu queres aqui? Não gosto das mulheres. Foi uma mulher como tu que me fez nascer. Poderias ter sido tu, eu não a conheço...” “Eu tive medo”, conta Mireille, “mas vi nos seus olhos a dor de não ter uma mãe. E a sua dor fez-me perceber a minha, ajudou-me a olhar para ele. Eu disse-lhe: ‘O que tu procuras é a mesma coisa que eu procuro. Podemos procurar juntos’”. Mas é um início que para ela se repete a cada encontro, a cada rosto e a cada nome. Dá o exemplo de Bali, 19 anos, que um dia a acompanhou até casa e, quando viu que ela se sentava no colo do marido para o cumprimentar, esperou que ela se levantasse e lançou-se também ele ao colo de Victorien: “Queria sentir como se está nos braços de um pai”. Ou o exemplo de Bilandi, 12 anos, que quando chegou ao Centro não falava sequer francês, e há algum tempo se apresentou para fazer o exame final da escola. Um funcionário pediu-lhe dois mil francos (3 euros) para lhe dar as respostas, mas ele disse não: “No Centro eu aprendi que consigo fazer as coisas. Quero usar a minha cabeça”.

“Como não ver a ternura do Mistério nestas coisas?”, diz Mireille. Esta palavra volta várias vezes quando conta a sua história. E não tem nada de sentimental: “Os miúdos da rua são como eu, como nós: precisam da ternura de Deus para aprender a olhar para si com ternura. São desgraçados... Mas até hoje não vi um único sequer endurecido ao ponto de não ficar tocado diante de um olhar em que percebe ser amado. E há dezoito anos que trabalho aqui”. Para dizer a verdade, há alguns dias achou que tinha encontrado um: era um rapaz “tão marcado pela dor, que eu pensei que não havia nada a fazer: drogado de manhã à noite, violento com toda a gente... Quando o via chegar, dizia a mim mesma: ele outra vez? Que é que eu vou fazer?” A resposta chegou com O brilho dos olhos, o livro de Julián Carrón usado na Escola de Comunidade de CL: “Eu li aquela passagem em que fala da ‘arte de sentir o homem todo’ e fiquei em silêncio. Quando vi de novo aquele rapaz, o meu olhar estava diferente. Pela primeira vez olhei-o nos olhos não como um drogado ou um ladrão, mas como um homem. Queria saber quem era, e disse-lhe: ‘Vem, senta-te’. Ficou surpreendido: antes eu só lhe dizia ‘vai’... Sentou-se. E perguntei-lhe: ‘Quem é que tu és? Quem é o teu pai? A tua mãe?’ Ele olhou para mim e foi tomado por uma ternura...Começou a contar. Por um momento, falou da verdade de si. E esse momento para mim foi um presente”. Ficou muito tempo ali, com a cabeça apoiada na mesa. “E eu ali quase tive vergonha por causa da nossa história”, diz Mireille. “Temos nas mãos a possibilidade de aprender o que é o homem, a nossa humanidade, quem nós somos... E não somos capazes de viver disso a cada instante.”

É este amor que se torna
“credível”, como diz a última palavra daquele livro. Não em sentido intelectual: pode tocar no íntimo de qualquer um, resgatar qualquer situação. “Todos os dias há coisas que nos fazem dizer: o Verbo fez-se carne. E se não chegamos a dizê-lo, não somos verdadeiros.” Coisas quotidianas, detalhes, talvez pequenos na forma, mas enormes pelo que trazem dentro de si. Os três miúdos que no ano passado se apresentaram para o exame final da escola, e passaram. Os 67 que voltaram para as famílias de origem, uma espécie de milagre duplo. O que se tornou estudante de música. Os quatro que conseguiram estudar Direito, Economia e Agronomia. Ou aquele que há alguns dias, impávido, disse a um dos educadores: “Senhor Bidias, decidi pedir ao Presidente da República que intervenha para nos deixar abrir uma escola aqui no Centro”. Parece nada, mas tem tudo dentro. Tem dentro um homem que diz “eu”. Aliás, “eu sou ouro em bruto”, como disse outro miúdo durante um encontro.

Mireille olha hoje para tudo isto, e surpreende-se. “Não é óbvio”, e nunca foi, ainda mais nestes últimos tempos. Há dois anos, o Pe. Maurizio voltou para Itália por motivos de saúde, e confiou-lhe a condução da obra. “Quando quem gerou uma obra se vai embora, não é garantido que permaneçamos unidos. Para mim foi realmente um milagre.” Há um pequeno vídeo que circula no Facebook, filmado numa sala de aula, com uns quarenta alunos divididos em grupos e seis ou sete educadores do Centro Social que falam para a câmara em italiano, para cumprimentar os amigos de Itália. Um deles diz explicitamente: “Seguimos apenas os passos de um grande homem”, mas outro alarga ainda mais essa ligação: “Não vos conhecemos, mas a força da vossa amizade com o Pe. Maurizio e a Mireille vê-se aqui. Obrigado”.
Mas o que quer dizer ser filha, para ti? “Seguir. Eu segui por muito tempo sem perceber. Mas as coisas que eu seguia diziam-me: vem.” É como quando encontrou o CL: “Eu não tinha expectativas, uma agenda... Não tinha nada. Só tinha na minha frente duas miúdas amigas uma da outra, e contentes por isso. Quando quis perceber por que eram assim, disseram-me: ‘Vem e vê’. Estas palavras abriram-me uma estrada sem fim”. Vem e vê. Enquanto as diz, acompanha-as com um gesto das mãos, como uma obstetra que agarra um bebé para o puxar para si e para o mundo. “Aquele chamamento é a força que te faz sair de ti. Vence a minha resistência, é maior. E então sigo.”

É impressionante ver como este método está presente nela. Não só no início, mas sempre. “Eu tive a graça de participar em muitos momentos: o Meeting de Rimini, alguns encontros... Mas há muitos anos ouvi uma frase do Pe. Carrón: ‘Todas as circunstâncias são para a nossa vocação’. Com o tempo, estas palavras fizeram-me amar e procurar, muito. O que quer dizer ‘todas as circunstâncias’? Todas mesmo? Passei a olhar para a realidade assim. Até as dificuldades.” Porquê? “Ele dizia que o Mistério está na realidade. Então eu, que sou mendicante desse Mistério e procuro vê-lo e conhecê-lo cada dia... Se Deus está na realidade, tenho de abraçar a realidade. Tenho de procurar aí, para O ver.” Foi isso que, segundo ela, “começou a largar o medo. Eu posso olhar para uma coisa má não porque se tornou boa, mas porque dentro dela está o Mistério. Para o ver, preciso de abrir os olhos. Foi assim que comecei a olhar também para as coisas realmente duras”. Como naquele dia de fim de outubro em que em Kumba, no sudoeste dos Camarões, houve um massacre numa escola: sete crianças mortas, 13 feridas. “Havia um vídeo com as crianças a gritar, via-se o sangue... Eu nunca teria aguentado, antes. Mas agora fez-me perguntar: onde estás, Cristo, agora? E isso permitiu-me olhar para os meus filhos com lágrimas nos olhos, e amá-los ainda mais. A eles e ao meu país: de quem somos, que povo somos? Como podemos crescer?”

É a mesma pergunta que tem sobre o trabalho diário, que nos últimos tempos tem mudado. “Em todos estes anos, o ponto para mim não era administrar uma obra: era viver. Acolher os jovens, amá-los. Responder logo ao meu coração. Hoje crescemos: é urgente organizar melhor o Centro, administrar...É outro trabalho. Tive de deixar um espaço ainda maior para a surpresa. Gosto muito de viver a surpresa. No imprevisto está sempre o Mistério, que me diz: ‘Sou eu’.” Também foi assim quando chegou a proposta da Avsi de inserir o Centro Social entre os projetos das Tendas de Natal, a recolha de fundos anual da Ong: vai ajudar uma centena de jovens a aprender um ofício. “Mas eu quero principalmente que ajude a nossa humanidade, que mostre a todos a educação de que vivemos, o método de don Giussani.” Quando lhe disseram que os tinham escolhido para as Tendas, ela ficou em silêncio: “Pensei: como é possível que pessoas tão atingidas pelo Covid, em Itália, tenham esta paixão ao olhar para cá, para os Camarões? Porque querem ajudar-nos? Eu tive uma sensação de vertigem... Mas percebo que é esta amizade, que chega até mim, o que me dá força para olhar para os meus miúdos”. Tem os olhos marejados e ao mesmo tempo sorri, enquanto retoma o fôlego. “Dou-me conta um bocadinho do que a Virgem sentiu, sabes? Quando uma coisa é muito grande, dá vertigem. Não podes pensar: ‘Ok, entendi’. A única coisa é dizer: seja feito segundo a vossa vontade. Queria só permanecer neste silêncio, como Nossa Senhora, para olhar. É muito forte. Muito.”

Olhar e seguir.
“Sentir o coração queimar por uma amizade que tem apenas Cristo como razão”, diz mais à frente. Para gerar, não precisa de outra coisa. “O Verbo fez-se carne, isso é tudo. Nós só queremos ser esta presença, deixando que a nossa humanidade se abra de par em par à Sua presença. E eu estou cheia de gratidão por este lugar que nos ajuda a não perder nada. É assim que vamos pelas ruas: para que nenhuma humanidade fique ali, abandonada. O modo não sabemos, mas não se perde nada.”

Há alguns dias, Claude apresentou-se no Centro, um rapaz de cerca de vinte anos que já tinha estado várias vezes na prisão por roubo. “Ele disse-me: ‘Mireille, a minha namorada deu à luz. Eu sabia que estava só no quinto mês. “Onde está a criança?’ E ele: ‘Aqui, na minha bolsa. Morreu’.” Silêncio. “Ele tinha uma bolsa a tiracolo. Eu levantei-me, fechei a porta e peguei na bolsa. Abri-a, devagar. Peguei ao colo aquele corpo tão pequeno. Sentei-me e olhei bem: o rosto, as mãozinhas... Depois olhei para o calendário: ‘Hoje é este santo – agora nem me lembro qual era –, vamos dar-lhe o seu nome’. Fiz um sinal da cruz na sua testa e convidei o pai a rezar comigo”. O rapaz ficou ali, a olhar. “Depois dei-lhe algum dinheiro e disse-lhe: ‘Agora vai enterrar o teu filho’.” Algumas horas depois, Claude voltou ao Centro. “Mireille, vou deixar de roubar e de me drogar. Acabei, juro por Deus. Eu vi como tu olhaste para aquele bebé, sangue do meu sangue. Tu trataste-o como eu nunca olhei para qualquer coisa minha.” Enquanto falava, conta, “eu pensava de novo naquele momento: não sabia sequer se estava lúcido. E, no entanto, estava a olhar, e viu qualquer coisa. E eu também vi qualquer coisa nele”. O quê? “Um coração que quer viver.”