na entrega do prémio

O trabalho que fazemos não é para ganhar prémios

Uma entrevista a Aura Miguel, por ocasião do prémio jornalismo pela Paz e Desenvolvimento 2020.
Raquel Abecassis

Para mim foi uma confirmação de que o que fascina naquilo que o Papa diz e que a Igreja ensina, é a forma como isso toca o humano, por isso quem leva a sério o humano, a vida como tal, quem tem um horizonte amplo para enfrentar a vida e a realidade, de certo modo, embate com o que a Igreja nos propõe. Portanto sim, de certo modo tem a ver com a minha vida


Este não é o primeiro prémio que recebes, qual é o significado particular que este prémio tem?


A primeira reacção é de surpresa, porque eu acho que tem a ver com o trabalho que fazemos e o trabalho que fazemos não é para ganhar prémios.
Fazer uma reportagem, no que me diz respeito em relação ao Papa, não é para ganhar um prémio. Fiquei surpreendida pelo efeito que eventualmente as notícias - a observação do Papa e das preocupações dele - e o que a Santa Sé tem dito em relação à paz e ao desenvolvimento, que é o tema do prémio, tenham servido de critério.
Tenho para mim que de facto se não fosse o Papa eu não recebia o prémio. Porque o que eu faço é contar o que se passa e quais são as linhas de orientação que nos ajudam a discernir o que é bem e o que é mal, e a perceber como é que se constrói ou se destrói a paz e isso serve para todos. Portanto fiquei surpreendida e ao mesmo contente de perceber que isto é uma preocupação que diz respeito a todos, independentemente dos credos ou das opções políticas.
Que o prémio tenha surgido no contexto de um universo da Dra. Maria Barroso, que é membro dos quatro costados do Partido Socialista e entusiasta pelas batalhas do seu partido, mas que ao mesmo tempo tinha uma visão - talvez também pelo seu percurso pessoal de se ter convertido - tão humana, prova que de facto há um fio condutor entre todos.
Portanto fiquei contente claro, por ver que se fizermos as coisas com desejo de verdade, algum bem isso produzirá mesmo que nós não o saibamos. Neste caso tive o privilégio de saber por causa do prémio.

Isso quer dizer que a designação do prémio "Paz e Desenvolvimento" que, como disseste, tem que ver com a missão do Papa, torna essa missão também um bocado tua?


De certo modo é, porque eu tenho este privilégio de seguir as actividades da Santa Sé, as preocupações do Papa, qualquer que ele seja e como tudo o que é humano interessa à Igreja, nesse sentido, é também a minha tarefa dar conta disso. Proclamar pelos telhados, dizia São Paulo, a boa nova. Esta boa nova, estas notícias boas e as notícias boas que ajudem à construção da paz e do desenvolvimento. Isto não é uma coisa estritamente católica, até nem é exclusivamente cristã, eu acho é que o cristianismo é um mais que aprofunda a razão da plenitude do humano que se revela em várias facetas.
Neste caso concreto a Paz e o Desenvolvimento estão presentes num universo mais amplo, de tudo o que preocupa a Igreja e por isso o Papa: Família, vida humana, educação, conversão.
Para mim foi uma confirmação de que o que fascina naquilo que o Papa diz e que a Igreja ensina, é a forma como isso toca o humano, por isso quem leva a sério o humano, a vida como tal, quem tem um horizonte amplo para enfrentar a vida e a realidade, de certo modo, embate com o que a Igreja nos propõe. Portanto sim, de certo modo tem a ver com a minha vida

E para quem segue o Papa há tantos anos como tu segues, como é que isso não se tornou ainda uma rotina?


Temos esse risco de entrar na rotina, mas isso sempre foi uma coisa que me horrorizou. Tive logo uma experiência negativa quando entrei a bordo do avião Papal. Os colegas mais velhos, que teriam a idade que eu tenho agora, já faziam as coisas sem esperar nada. Eu nem sequer sei se eles tinham fé, mas lembro-me perfeitamente - não estou aqui a julgá-los, estou só a expressar um sentimento -, que na altura pensei: "Eu não quero ser assim quando for grande, se eu seguir a carreira de jornalista vaticanista não quero chegar como eles chegam. Eles já sabiam tudo sobre as viagens do Papa. Realmente é verdade, com mais de 100 viagens papais eu já sei tudo sobre as viagens do Papa: Como é que se prepara a viagem, como é que podemos trabalhar, o que é que vale mais a pena seguir ou não seguir. Mas se isso for assim quase não vale a pena sair de casa. Para mim a verdadeira aventura da vida passa-se nos acontecimentos imprevistos e eles existem. Portanto para os identificar nós temos que manter vivo este desejo que também serve para mim. Se acontece uma coisa que é verdadeira, isso interessa-me. Eu acho que o Papa, também pela vocação inerente, terá mais afinado este barómetro para identificar o que é belo, verdadeiro, o que é justo o que é que vale a pena insistir.
Portanto eu sempre desejei e tento seguir as viagens do Papa assim. Se o Papa sai de casa para um determinado sítio, mesmo que esse sítio não seja de interesse estritamente jornalístico - foi em Malta que eu percebi isso, em 1990-, se ele sai de casa para ir a um determinado sítio que aparentemente não merece títulos de jornais é porque ele lá sabe melhor do que eu porque é que vale a pena. Eu quis aprender, tentei aprender a identificar esse mais de que ele é portador. Não estou a dizer que consiga, mas esbarrei várias vezes com colegas que não estão nem aí. Querem é fazer o seu trabalho rapidamente e gozar a vida. Isto soa um bocado a moralismo, não quero tanto criticar, quero é dizer que não é isso que eu tento fazer e se calhar para isso é preciso manter uma certa inquietação, para não ficarmos engolidos com a tentadora rotina que se instala.

E por causa disso um dia perguntaste ao Papa João Paulo II o que é que devias fazer para ser uma boa jornalista e ele respondeu: É preciso discernir sempre. Aquilo que eu pergunto agora é se continuas a usar esse conselho muitas vezes e que diferença é que ele faz no exercício do jornalismo?

Eu acho que é mesmo o aspecto principal no jornalismo e na vida toda em qualquer profissão. Quer dizer não é só no jornalismo. No jornalismo é mesmo isso, ou pelo menos devia ser. Como dizia São Paulo: "Avaliar todas as coisas e retirar o que é bom". A realidade tem várias facetas, nós temos tempos estritos para comunicar ou para escrever ou o que seja. Temos que escolher, portanto a pessoa aí joga-se no avaliar. Mas tem que se jogar mesmo, porque muitas vezes com esta homologação crescente: Pensamento dominante, critérios da moda, muitas das coisas já estão pensadas e decididas e portanto é muito mais fácil alinhar pela bitola que vende. Quando pensamos pela nossa cabeça, arriscamo-nos a ir contra corrente. Portanto eu continuo a usar esse conselho. Acho que é mesmo uma questão de liberdade, mais do que uma batalha, é uma necessidade. É uma questão de liberdade, porque, para avaliar o que é importante é preciso um passo atrás, é preciso saber o que é que é importante para mim que vou avaliar e se o mais importante é estar focada na verdade e para mim a verdade tem um nome que é Cristo - eu não estou a dizer que é fácil, nem estou a dizer que consigo sempre, mas é o que eu desejo. Se avaliar assim, pode dar mais trabalho, pode-me obrigar a ir ao sítio para ver melhor, pode-me obrigar a ler mais coisas para perceber que se calhar estão a ir por outro caminho, mas é muito mais libertador. Isto também pode trazer mais riscos, porque se eu trabalhar num meio de comunicação social cuja administração ou linha editorial me propõe ou obriga a ir por uma determinada linha, corro o risco de ser despedida. No meu caso isso nunca aconteceu felizmente, mas estou consciente que o trabalho verdadeiro de relatar o que se passa com critérios que não sejam os da mentalidade dominante é muito difícil, mas eu acho que é a única coisa que vale a pena.
Neste sentido também olho para trás e penso que muito provavelmente foi por isso que a Pro Dignitate, que era talvez a ultima instituição que eu acharia que me reconheceria e reconheceu, o que me leva a concluir que isto é mesmo verdade.
Uma vez aconteceu-me, quando João Paulo II morreu, ser interceptada por uma pessoa, por um desconhecido numa esplanada que me disse: Eu ouvi as suas reportagens e eu não sou crente, mas tinha um grande fascínio pelo Papa João Paulo II, mas eu não sou católico, porque é que acha que isso foi assim comigo? Como é que me explica isto? E eu pensei, é porque ele era tão profundamente humano que aquele humano, a centelha do humano que toda a gente identificava, é isso que toda a gente quer.
Bento XVI dizia: Não se impõe, propõe-se. Esta maneira de ser destes Papas que eu tenho seguido, de propor algo que é profundamente atractivo, mas que às vezes parece impossível de concretizar. É mesmo possível de concretizar, mas para isso, muitas vezes é preciso ter a coragem para arriscar e ir contra a corrente.

E agora neste tempo estranho que estamos a viver de Pandemia e em que as pessoas vivem uma realidade impensável, como é que se faz jornalismo ao serviço da paz e do desenvolvimento nestas circunstâncias, em que as pessoas estão particularmente assustadas e medrosas? Isto ao mesmo tempo a que assistimos a uma tendência de negacionismo que gera alguma violência e a todas as dificuldades anexas, como a crise económica e o desemprego?


Não tenho soluções. O que vejo é que se levarmos a sério o desejo do coração, alguma coisa há-de vir. Cancelá-lo é o pior. Fazer de conta que o problema não existe ou que não temos este desejo grande de plenitude, isso é o pior que nos pode acontecer e portanto eu acho que não devemos nunca desistir de procurar aquilo que nos corresponde. Também acho que no jornalismo - o jornalismo tem muitas facetas - há factos que é preciso contar claro. Não é esconder a realidade. Mas há uma maneira de contar a realidade com sobriedade e respeito, sem fazer espectáculo e isso parte da própria pessoa que o faz. As acções revelam muito a pessoa, os actos definem uma pessoa. No jornalismo é a mesma coisa, pode-se fazer um jornalismo sensacionalista com uns objectivos que não são do respeito pelo outro, ou ajudar a encarar a vida com esperança. Por outro lado, se temos o dever de informar, e como a realidade tem muitos factores, lá está, ao seleccionar aqueles factores que conto e os outros que deixo de fora, é aí que se joga o carácter e a maneira de ser de cada um. Acho que esta questão da naturalidade, objectividade, rigor, não existe. Há um esforço de honestidade perante o real, mas depois a pessoa joga-se e quando não se joga, joga-se de algum modo. Se não se joga é porque está já com um critério de não se comprometer para poder ir mais longe na carreira. Quanto mais a pessoa se expõe, mais autêntica é. Eu sempre fiz assim, não seria capaz de fazer de outra maneira, não estou a dizer que isto é a solução para todos.
A pandemia é um problema que nós temos que é complexo, mas quem vive à luz da fé sabe que já podemos identificar experiencias quotidianas que nos dão esperança de vivacidade de resposta a este desejo do meu coração. Portanto à luz da fé há uma presença que me corresponde já. Às vezes não estamos bem a ver onde e às vezes esbarra com situações dolorosas, com desemprego, com doenças, com morte, mas à luz da fé sabemos que a morte não tem a última palavra e portanto é um momento dramático. No sentido bonito que não dá para fazer de conta, mas a vida sem fazer de conta é que é bom. Portanto há uma confiança última no desígnio bom do Mistério que permite estas circunstâncias, mas que nunca nos abandona. Eu pelo menos tenho para mim que não estamos sozinhos nunca. E conseguir identificar centelhas de humanidade, de beleza do humano, de pessoas valentes, pessoas generosíssimas ou de uma criatividade e de uma fecundidade que nasce desta certeza que não estamos sós. Eu acho que isso é que vale a pena fazer passar.

Esta circunstância fez também com que o Papa tivesse que cancelar a sua agenda internacional, achas que isso tem diminuído a missão dele no mundo?

Não de todo, imagine-se. Até Joao Paulo II ninguém viajava. Paulo VI ainda viajou, foi quem inaugurou as viagens papais fora de Itália.
Pedro é Pedro e é nas circunstâncias que o Senhor lhe dá. Misteriosamente as circunstâncias que Deus nos deu neste momento impedem-no de viajar. Há outros momentos de grande fecundidade, como se viu por exemplo naquela celebração a que ele presidiu sozinho na Praça de São Pedro que foi fortíssima. É mesmo talvez um dos pontos altos mais impressionantes deste pontificado. Quando ele de facto reconheceu este momento dramático em que a barca da Igreja, toda a humanidade parece que se está a afundar, mas sabemos que não estamos sozinhos. De algum modo também no mistério da sua vocação de Pedro, brota uma graça especial para ir discernindo os sinais dos tempos.