Um Deus humilde.

O biblista dominicano Timothy Radcliffe confronta-se com o presente: um “cara a cara” connosco próprios e com os outros, a caridade, a morte de um caro amigo. E a lição mais preciosa: «Sê sempre grato»
Giuseppe Pezzini

«Nestas circunstâncias, rasgam-se as máscaras que usamos». É frade dominicano em Blackfriars Oxford, chama-se Timothy Radcliffe e é um famoso pregador, escritor e teólogo, tendo sido também Mestre-geral da Ordem, Director do Instituto Las Casas de Oxford e Consultor do Pontifício Conselho «Justiça e Paz». Contou-nos a sua experiência neste período de crise, à luz do livro O despertar do humano, de Julián Carrón.

Nos últimos meses, milhares de pessoas partilharam a mesma experiência de “aprisionamento”. Ainda assim, Carrón defende que este aprisionamento pode ser uma ocasião de libertação.
Concordo plenamente. Santa Catarina de Sena viveu três anos de autoisolamento antes de o Senhor a conduzir até à sua missão. Ela descreveu esta experiência como a “cela do reconhecimento de si”, em que foi posta diante da pergunta sobre quem ela era verdadeiramente. Para ela, esta “cela” foi suportável, escreveu, porque não era um espaço narcisista em que olhava para o umbigo, mas uma espécie de ocasião para se redescobrir a si própria como amada por Deus a cada instante. Esta experiência de isolamento pode colocar-nos diante da realidade, diante de quem verdadeiramente somos. E se estamos “trancados” com outras pessoas, podemos também descobrir quem são eles verdadeiramente. Nestas circunstâncias, não se podem manter identidades superficiais: rasgam-se as máscaras que usamos. E então as relações desmoronam-se e tornam-se insuportáveis, ou então, com a graça de Deus, põem-nos face a face com a frágil vulnerabilidade do nosso ser e do dos outros. Então podemos ver a nossa pessoa como Deus a ama, a nossa beleza e dignidade, bem como a dos outros.

Julián Carrón fala do valor de «abraçar as circunstâncias», de «dizer “sim” a cada instante»: mas é só uma ilusão para justificar a resignação?
Pelo contrário. Para ser uma força do bem neste mundo, com a graça de Deus, é preciso viver aqui e agora, no presente - que é o presente de Deus para nós - e no lugar onde me encontro. Rowan Williams fala da ilusão de pensar que “noutro sítio, eu poderia ser mais gentil, mais santo, mais equilibrado, mais impermeável às críticas, mais disciplinado, capaz de cantar em coro, e provavelmente até mais magro”. Os Padres do deserto conheciam bem a tentação de acreditar que, se se estivesse noutro sítio, tudo correria melhor. Mas estavam convencidos que se deve viver aqui e agora, e em mais nenhum lugar. O Padre Moisés dizia: «Senta-te na tua cela e a tua cela ensinar-te-á tudo». Se não aceitarmos a nossa condição, seremos como um pássaro que abandona os ovos no ninho e, assim, impede que choquem. Se eu quero mudar e fazer a diferença também para os outros, tenho que começar por aqui.

Numa condição deste tipo não há oposição entre “fé” e “ação”? Como é possível sermos “ativos” ou até “caridosos” quando se está bloqueado numa prisão?
Ter fé não significa resignar-se uma inoperosidade passiva. Por vezes, o que se pode fazer parece insignificante, mas também é assim com uma semente semeada em terreno fértil, e no entanto produz “trinta, sessenta, cem vezes por um” (Mc 4,8). São Tomás diz que o nosso Deus é pura ação. Mas, muitas vezes, isto exprime-se em atos pequenos, humildes, como falar com uma mulher no poço de Samaria, e lavar os pés dos discípulos. Até a grande cerimónia da nossa morte e ressurreição em Cristo, o Batismo, é um ato humilde, deitar um bocadinho de água. O nosso Deus é humilde. Por vezes, a nossa fé pede para ser heroica como a dos mártires, mas outras vezes guia-nos por pequenas ações que escapam à atenção dos outros. As últimas palavras do romance Middlemarch de George Eliot dizem-no bem: «A multiplicação do bem no mundo depende de atos ignorados pela história; e se, tanto para o leitor como para mim, as coisas não são tão más como seria possível que tivessem sido, devemo-lo em boa medida àqueles que viveram fielmente uma vida anónima, e que repousam em sepulturas esquecidas». Também os nossos atos de caridade durante este isolamento podem ser humildes. Como telefonar a alguém que se sente sozinho, ou segurar uma palavra que tinha debaixo da língua quando um dos meus irmãos - ou a tua mulher, ou o teu marido -, nos diz alguma coisa ofensiva.

Sempre nO Despertar do Humano, são citadas duas jovens mulheres como exemplo dessa posição: Nossa Senhora e Santa Teresa de Lisieux.
Maria foi chamada a esta humildade, a ser a serva do Senhor. Ela trazia a Palavra de Deus e servia-a na pessoa do Menino Jesus. Mas este menino era Filho d’Aquele que ela louvava no Magnificat, Aquele que «derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes». Maria é uma pessoa humilde que disse o seu fiat, o seu “sim”, mas um “sim” ao Deus que vira o mundo de cima para baixo. E Santa Teresa de Lisieux! Gostei muito da forma como o Carrón fala sobre ela, como padroeira das missões. Na França do século XIX, que era muito anticlerical, Teresa teve a coragem de abrir um diálogo com os ateus, cujo “cálice amargo” queria beber, e partilhar a dor, para partilhar com eles o seu Deus escondido. A sua vocação foi verdadeiramente transformativa. Ser humilde não significa pensar ou dizer mal de si. Significa olhar para si mesmo com lucidez, reconhecer a própria contingência, e que a existência é, em si mesma, um dom de Deus. Só se pode mudar o mundo se olharmos para nós de olhos abertos. Para voltar a Santa Catarina, foi exatamente esta liberdade em relação às próprias ilusões sobre si mesma que a tornou protagonista da Itália do século XIV: ao ponto de chamar um Papa a Roma e não hesitar em ralhar com a Cúria romana sem meios termos. Como disse numa famosa citação: «Se tu fosses a pessoa que és chamada a ser, colocarias em fogo toda a Itália». E ela fê-lo!

Giussani diz que «a verdade da fé demonstra-se exactamente a partir da capacidade [...] de valorizar o que parece objeção como caminho de amadurecimento». Isto também vale para a Igreja?
Foi assim desde o início. O Espírito Santo foi derramado sobre os apóstolos no Pentecostes e eles foram enviados aos confins da terra. Mas, na realidade, queriam ficar em Jerusalém e resistir à aventura da fé. Foi a perseguição dos cristãos que acabou por os afastar da zona de conforto e os empurrou até Roma. Foi o trauma da Reforma que revitalizou a Igreja e produziu a Contra-reforma. Ainda não está claro como é que a Igreja vai encontrar nova vida através desta crise atual, mas fá-lo-á seguramente. Eu espero que a Igreja possa sair da “bolha”, para usar a palavra de Carrón, e nos leve ao diálogo com todos os que procuram compreender profundamente a vocação da humanidade de hoje, até as pessoas cuja fé é diferente ou que não têm fé.

Que tipo de companhia pode a Igreja, e uma comunidade cristã em geral, oferecer nestes tempos difíceis?
Este é um momento de grande ansiedade e medo para muitas pessoas. Temos que testemunhar-lhes a paz de Cristo, uma paz que o mundo não pode dar. Homens e mulheres podem alcançar esta paz só se existir alguém com quem é possível partilhar os seus medos. Muitas vezes, a Igreja limita-se a estar com as pessoas, escutá-las e dar-lhes a mão, deixar que abram o coração. Além disso, em tempos de peste, somos postos não só diante da morte de pessoas concretas, mas também de uma perceção apocalíptica do domínio da morte. Pensem no quarto cavaleiro do livro do Apocalipse: «Um cavalo esverdeado. O cavaleiro chamava-se Morte; e o Abismo seguia atrás dele». Vivemos na «sombra da morte», como diz Zacarias no Benedictus. Deveríamos ser capazes de olhar a morte nos olhos, ver a sua dor e a sua angústia, mas não nos deixar intimidar porque sabemos que o seu domínio é finito. O meu amigo mais querido da Ordem morreu recentemente por causa do Coronavírus. Telefonou-me para se despedir de mim. Pouco antes de morrer, disse a um amigo: «Há anos que faço pregações sobre a Ressurreição. Agora chegou o momento de demonstrar que acredito nela».

Como viveu a sua quarentena?
Neste período, eu deveria ter tirado um ano sabático; o meu projeto, além de estudar, era passar algum tempo com a família e os amigos. Mas, como se diz em Inglaterra, se queres fazer Deus rir, fala-lhe dos teus projetos. Depois de um mês de estudo na École Biblique de Jerusalém, voltei para Oxford e, desde então, tenho sido bombardeado com pedidos de artigos, homilias e entrevistas, incluindo a vossa. Mas obrigado por me terem pedido! Estou grato por estas oportunidades de partilhar a minha fé com os outros. O ano sabático pode esperar. Além disso, como disse, perdi o meu melhor amigo da Ordem, que vivia em Oxford. Fomos ordenados no mesmo dia, há 55 anos atrás, e fomos todos os anos de férias juntos. Foi uma perda muito dolorosa. Quando eu a partilhei com outro amigo, um dominicano polaco que trabalha na École Biblique, disse-me uma coisa sábia: «Sê grato». E talvez esta seja a lição mais profunda deste período. Sê sempre grato. Não porque as pessoas que amas morreram, mas sim porque viveram. Se os nossos olhos estiverem abertos, somos inundados de dons, todos os dias.



Timothy Radcliffe (Londres, 1945), dominicano, ensinou Sagrada Escritura em Oxford, foi eleito Provincial de Inglaterra em 1987 e, depois, Mestre-geral da Ordem em 1992. É Consultor do Pontifício Conselho «Justiça e Paz» e autor, entre outros, de Alla radice la libertà. I paradossi del cristianesimo (Emi, 2018).