Ernest Simoni, 92 anos, feito Cardeaal a 16 de novembro de 2016

«Um jogo de crianças»

O que o sustentou em 28 anos de trabalhos forçados? Fala o Cardeal Ernest Simoni, que viveu a liberdade na prisão. E nestes «tempos duríssimos» vê o momento de «recordar aquilo de que nos tínhamos esquecido: a vida nunca nos será tirada»
Alessandra Stoppa

Quando conta, com modéstia, a sua história, fala de «peripécias». E no entanto, refere-se à captura, na Vigília de Natal de 1963, com tudo aquilo que se seguiu: as torturas e os vinte e oito anos de prisão e trabalhos forçados, dos quais doze foram passados na mina e depois nos esgotos. O cardeal Ernest Simoni hoje é o único sacerdote que sobreviveu ao regime albanês de Enver Hoxha. «Como me perseguiram a mim, vos perseguirão também a vós», diz de imediato, quase para explicar que não há que nos impressionarmos com o que lhe aconteceu. Ainda menos compreende que alguém se impressione com ele, com como ele o viveu. «Eu sou completamente indigno».
O mesmo sentimento que o dominava na Catedral de Tirana, no dia 21 de setembro de 2014, vendo o Papa comover-se até às lágrimas. Francisco tinha ouvido o relato enxuto deste velho padre albanês, que então tinha oitenta e seis anos e ainda servia dezenas de paróquias nas montanhas sobre Escodra. Assim que terminou, foi dar-lhe um abraço, deram as mãos, em silêncio, as frontes apoiadas, com os olhos fechados. Um «mártir», define-o. Um mártir vivo. Dois anos depois, no Consistório de 16 de novembro de 2016, o Papa criou-o cardeal. Pensando naquele dia em São Pedro, Simon tem ainda «tanta vergonha»: «Beijou-me as mãos. Ele a mim. Eu baixava-as, e ele baixava-se, mais baixo…. Depois abraçou-me».

Hoje vive na sua cidade de adoção, Florença. Até ao lockdown de fevereiro nunca parou, pastor incansável, entre as visitas aos católicos albaneses na América e o serviço à Igreja, como confessor, exorcista e levando o seu testemunho. Aquele que diante da prova de hoje e das preocupações sobre o amanhã, ajuda a ver onde nasce a liberdade de um homem, mesmo quando é “forçado” ao nada por uma das ditaduras mais ferozes da história. Por isto fomos ter com ele, enquanto passa os dias «na domiciliária», diz rindo-se e sempre grato pela saúde de ferro, que «é uma graça de Nossa Senhora. Para Ela sou um jovem de noventa e dois anos!».
As respostas a cada pergunta saem-lhe como uma oração: «Deus é amor infinito. Bate à porta do coração da alma de todos os homens. Está em cada casa...». Neste tempo sem Missas de povo e sacramentos, para ele é ainda mais claro: «Jesus disse-nos: “Onde dois rezam, Eu sou o terceiro”. Está em cada família, em cada instante, em cada lugar onde O procuramos».

A emergência em que o mundo caiu fá-lo repetir as palavras do profeta Daniel sobre o «sacrifício contínuo», mas «Jesus está vivo. Não é mitologia. Quantos poderosos são pó, Ele está vivo e agarra os corações». Pensa em quem hoje sofre mais, em quem perdeu os seus entes queridos e recorda: «o que disse a Lázaro que estava morto. Três palavras: “Lázaro, sai daí”. Da morte à vida». Nestes «tempos duríssimos» vê o momento da conversão, de recordar «aquilo de que nos esquecemos: fomos criados para a felicidade, a felicidade eterna, todos os homens…Não existe a morte, foi aniquilada. Nunca nos será tirada a vida. É mudada».

É a esperança certa em que ele respirou toda a vida. Cresceu na aldeia de Troshani, numa família profundamente religiosa, e depois, «depois foi a graça de Deus: a vocação. Conhecer a felicidade.». Enquanto se enfurecia a propaganda ateísta, a tentativa de eliminar a fé, entre perseguições e fuzilamentos de centenas de sacerdotes e laicos, Ernest era um jovem seminarista franciscano. Tinha vinte anos, o convento foi fechado, transformado num lugar de tortura, os padres foram mortos, os noviços expulsos e ele foi enviado como professor para uma aldeia perdida nas montanhas. Em 1955 é chamado para o serviço militar: dois anos que para ele foram «mais terríveis do que o cárcere». Depois conclui clandestinamente os estudos em Teologia e é ordenado sacerdote em 1956.

Sete anos depois, chega o dia 24 de dezembro: tinha acabado de celebrar a missa na aldeia de Barbullush, perto de Escodra, e quatro homens da polícia política levam-no. Simoni não gosta de contar os abusos que viveu daquele momento em diante, nos mais de 11 mil dias de prisão. Mas ilumina-se passando em revista «todas as vezes que Ele me salvou». Devia ser logo enforcado, com três acusações: tinha enganado o povo com a fé, tinha feito exorcismos e tinha celebrado as três missas pelo Presidente Kennedy que Paulo VI tinha pedido a todos os sacerdotes do mundo. Passa meses na cela de isolamento, para onde é mandado como espia um seu amigo, que o provoca, falando mal do regime, para o fazer ceder: «Tinha comido tantas vezes em minha casa…», recorda Simoni, «mas tinha medo. De qualquer modo, respondi-lhe que Cristo ensinou-nos a amar os inimigos e que nós devemos empenharmo-nos para o bem do povo». Ao que parece, as suas palavras intercetadas chegaram ao ditador, que comutou a condenação à morte em trabalhos forçados. Mas a graça, ele já a tinha tocado quando lhe disseram que o teriam enforcado, porque não tinha tido medo «Não me parecia nada… Disse: “Deus é maior do que vós. E Jesus derramou o seu sangue por todos. Por todos” Apetecia-me sorrir. É Deus que ilumina».

Dez anos depois, no dia 22 de maio de 1973, no campo rebentou uma insurreição e foi injustamente acusado de a ter fomentado. Uma nova condenação à morte, que, no entanto, depois é levantada. «E uma outra vez», lembra ainda, «todos nós, prisioneiros, bebemos água oxidada, infetada, e ninguém morreu! A Virgem Santíssima protegeu-nos! Sempre o fez…». Podiam morrer a cada dia, trabalhavam na mina de Spac, quinhentos metros debaixo da terra, entre fumos e vapores, a quarenta graus. Quando voltavam a sair, estavam menos vinte. Está em silêncio, depois disse: «“Estou eu contigo”, disse a São Paulo».

A sua vida ensinou-o «aquela coisa poderosíssima», diz: «Sine me nihil potestis facere». Cita de seguida, com a mesma indestrutível memória com que dizia a Missa em latim na prisão, consagrando entre as mãos as migalhas de pão e o sumo dos bagos de uvas triturados «Trazia-mas a mulher de um professor muçulmano que era prisioneiro comigo». Eram três mil no campo, de cada religião, mas sobretudo católicos, prisioneiros do primeiro Estado do mundo a proclamar-se ateu na Constituição. Ele, silencioso, rezava em voz baixa. «Observavam-me, diziam: “É bom, mas enlouqueceu…”. Eu rezava com todo o coração. Era o meu sustento». Escondido, confessava, batizava e dava a Comunhão. Nunca deixou de ser um pároco, mesmo quando, declarado “inimigo do povo”, o mandaram para os esgotos de Escodra, «os canais das águas negras», onde passou os últimos dez anos, até à libertação e à primeira Missa celebrada de novo na igreja, no dia 4 de novembro de 1990. Como contou diante do Papa: «Com a vinda da liberdade religiosa, o Senhor ajudou-me a servir em tantas aldeias e a reconciliar muitas pessoas em vingança».

Simoni surpreende-se de cada vez que se lhe pergunta como pôde perdoar. «Mas Jesus fez tudo. Eu tive só uma pequena boa vontade, de O acolher. Devo agradecer de joelhos, porque esteve sempre comigo, deu-me força». E depois acrescenta, como se fosse a coisa mais natural: «Disse-nos para amar os nossos inimigos e para rezar por eles». É o que não deixou de fazer desde que foi libertado, confiar à misericórdia os seus perseguidores: «No Paraíso faz-se mais uma festa por um pecador arrependido do que por todos os santos! Jesus vai à procura da ovelha perdida e mete-a sobre os ombros… É todo o seu desejo», diz: «Eu perdoei de todo o coração, como espero que um dia o Senhor me perdoe os meus pecados».

Hoje a sua esperança está inscrita em albanês no brasão cardinalício: «O meu coração triunfará». Escolheu as palavras de Nossa Senhora de Fátima, sob o desenho das correntes quebradas pela Cruz. Tem a certeza de que «Jesus não nos esquece, ajuda-nos», mas também nós «devemos escolher». O que é que devemos escolher? Volta ao Evangelho: «Todos o sabemos. Marta preocupa-se com tantas coisas, queixa-se de Maria. E Jesus diz-lhe: “Marta, a tua irmã escolheu a melhor parte, a parte mais bela, a mais poderosa e doce, aquela que nunca se perde, que nunca se afasta dela”. Devemos voltar a aproximar-nos d’Ele». Depois pede desculpa: «Lamento, não posso falar com carícias…É amar, seguir os mandamentos, a oração diante do Santíssimo, o Rosário, acolher o próximo, os pobres, porque aquilo que lhes fazemos a eles fazemos-lhe a Ele…É fazer tudo com Ele». Depois precisa: «Tornarmo-nos crianças. “Se não vos tornardes como eles…”». Olha para Santa Teresinha de Lisieux, que «nos ensina com coisas simples como chegava até Deus. Porque chegar até Deus é um jogo de crianças. É como abandonar-se nos braços do pai e da mãe».