Robert Campin (1375-1444) (?), Anunciação, 1420-1425, óleo sobre tábua, 76x70 cm Museo del Prado, Madrid (Espanha)

A nossa história e a história

Um olhar disponível e atento ao detalhe desta tábua que representa a A Anunciação, que nos permite perceber de que forma este momento da ação se enquadra noutro mais amplo, correspondente à nossa História.
João Grave

Recomendamos a que, antes de ler o texto observes atentamente esta tábua, ao detalhe. Regista o que observas e, depois, faz zoom sobre esta imagem no seguinte link e lê a nossa reflexão.

Esta tábua foi adquirida por Filipe I ao artista Jacome Trezzo (c. 1515-1589), em 1584, tendo por destino o Mosteiro de São Lorenzo do Escorial. Encontra-se hoje no Museo del Prado, em Madrid.
O título que lhe está atribuído resume todo o complexo significado desta obra: fala-se do início da geração de Cristo (Por influência do discurso judaico, a História da Salvação foi dividida em seis gerações distintas: de Adão a Noé, de Noé a Abraão, de Abraão a Moisés, de Moisés a David, de David a Cristo, de Cristo ao Juízo Final). Para efeito, o pintor recorre à habitual divisão da composição em duas partes distintas, aqui feita por meio de um pilar, a correspondente às do anjo e aquela outra da Virgem orante.

As três figuras essenciais da ação, Deus-Pai, o Anjo e Nossa Senhora, são enquadradas pelas arcarias e rendilhados de um complexo construtivo, similar a uma catedral. Por sua vez, as paredes desta construção são animadas por outras figuras, que facilmente escapam. São elas as esculturas que povoam os muros, ou os rematam, e as figuras presentes nos vitrais do interior da construção.
Estas peças, aparentemente acessórias, vêm enquadrar historicamente o que está para acontecer. Estamos diante de um momento decisivo: o anjo ainda não entrou na casa, tem a boca fechada, mas o gesto da mão que se ergue indica que se prepara para saudar a Virgem que, absorta na contemplação, ainda não se apercebeu da presença desta figura. Este corresponde ao tempo da ação.

Se repararmos, junto ao firmal que prende o pluvial do anjo, vêem-se, de forma incompleta o início da saudação “AU[E]”. É como se estivéssemos nas frações de segundo que separam o pensar e o dizer!
Mas, como dizíamos, estes dois elementos essenciais da narrativa são enquadrados no tempo histórico por outros que se espalham pela arquitetura. Vemos, portanto, a figura do Rei David, aquele de cuja descendência Cristo procede. Mais acima, Moisés com as tábuas da Lei. No vitral mais à direita, na parte superior, a entrega das tábuas da Lei a Moisés, seguido do sacrifício de Isaac, prefiguração da crucificação. Este vitral apresenta ainda a figura ilegível de um doador e alguns elementos figurativos e heráldicos.

Ao tempo da ação presente representada corresponde, portanto, um outro tempo de maior amplitude que é o tempo histórico, ou a memória. No dizer do Pe. Giussani: «(…) o acontecimento presente estabelece uma memória que tem o seu conteúdo último naquele acontecimento passado» (Luigi Giussani, Stefano Alberto, Javier Prades – Gerar rasto na História do mundo. Lisboa: Paulus, 2019, p. 48., ou ainda, «A fé é consciência de uma presença que começou no passado (…).» (Idem, p. 47)
A Anunciação que presenciamos não é, portanto, um Acontecimento solto, mas parte de uma cadeia histórica mais vasta, onde Deus nos manifesta a Sua Presença. Note-se: são os detalhes, facilmente secundarizados, que enquadram esta Anunciação na História do Deus que Se faz presente.

A Anunciação que presenciamos não é, portanto, um Acontecimento solto, mas parte de uma cadeia histórica mais vasta, onde Deus nos manifesta a Sua Presença. Note-se: são os detalhes, facilmente secundarizados, que enquadram esta Anunciação na História do Deus que Se faz presente.
A quarentena em que estamos coloca-nos diante de uma enorme composição: o nosso lar. Por demais conhecido, nos seus defeitos e qualidades, diante desta obra, e sem zoom, não percebemos os pequenos detalhes que a compõe, à semelhança do que aconteceu quando olhámos pela primeira vez esta Anunciação de Robert Campin. Foi um olhar disponível, atento ao detalhe, que nos permitiu perceber de que forma este momento da ação se enquadrava noutro mais amplo, correspondente à nossa História.