Padre Giovanni é capelão de um hospital no epicentro da pandemia da Covid-19, em Itália. Foto: DR

Combate ao coronavírus. A vida de um capelão num hospital em Itália.

Leia a entrevista da Rádio Renascença ao P. Giovanni, missionário da fraternidade São Carlos Borromeu, capelão no Hospital polivalente Luigi Sacco de Milão, que relata como é a sua vida no meio da pandemia.
Aura Miguel e José Pedro Frazão

O padre Giovanni é capelão no Hospital polivalente Luigi Sacco de Milão, um dos hospitais da linha da frente na luta contra o Covid-19. Localizada na região da Lombardia - uma das zonas mais afetadas pela difusão do vírus e com maior número de vítimas mortais - esta unidade hospitalar foi reconvertida para receber doentes infectados.
Entrevistado pela Renascença, este sacerdote italiano, missionário da fraternidade São Carlos Borromeu, relata como é a sua vida no meio da pandemia.


São espaços que se consideram contaminados, portanto, espaços fechados totalmente interditos a todo o tipo de visitantes, de familiares, etc. Dentro destes espaços, só se pode circular com autorização, ou com um fato especial, ou com todas as proteções necessárias.

O hospital está neste momento sobrelotado? qual é a situação?

O hospital está cheio, os quartos estão todos ocupados. Aparentemente, a vida continua normal, ou seja, as camas dos quartos estão cheias e os corredores estão limpos, porque servem para as pessoas circularem. Não há uma imagem catastrófica, mas é a imagem de um hospital que está a responder a uma emergência.

Como é o seu dia a dia no hospital?
Chego ao hospital por volta das 7h30. Neste momento, não se pode celebrar missa e, portanto, de manhã, fazemos duas horas de adoração: das 8h às 9h e das 11h30 às 12h30. Assim, as pessoas sabem que ali há um ponto por onde podem passar. Entram - obviamente, estamos todos com máscara - rezam por uns instantes, sabem que estamos disponíveis para confessar e depois saem. Embora não possam ir à igreja, sabem que estamos ali, a rezar por eles. Depois, tenho um calendário de visitas, principalmente aos médicos. Porque os doentes mudam, mas os médicos estão sempre ali. Por isso, é preciso saber como estão, como corre o trabalho, etc. Em seguida, visito alguns doentes.

Consegue circular por todo o hospital?
Neste momento, as visitas são muito complicadas. Eu próprio, para entrar nesses lugares, tenho de respeitar rigorosamente as normas de segurança.

Consegue dialogar com os doentes?

Hoje encontrei catorze pacientes Covid que tinham pedido para me encontrar. A maioria queria receber a Comunhão.

Que sentimentos lhe expressam?
Todos têm medo. Mas, por outro lado, todas as pessoas que encontrei hoje, comoveram-se. Comoveram-se pelo facto de eu estar ali, até uma pessoa que se declarou não praticante, não crente, ao ver que eu tinha ido encontrar um seu companheiro de quarto para lhe dar a comunhão, pediu-me a benção e aceitou rezar connosco uma oração. Tudo isto só pode durar, três a cinco minutos, é o tempo máximo para estar em cada quarto.

Está devidamente protegido do contágio?
Devidamente protegidos, só se estivéssemos nos Himalaias (risos). Não existe essa certeza nestas coisas humanas. Portanto, sim, corremos o risco de contrair o vírus. Não só eu, mas os enfermeiros e os médicos. Tentamos respeitar, rigorosamente, os protocolos, para evitar o contágio. À entrada do hospital, medem-nos a temperatura todos os dias, para aumentar o nível de segurança.

Têm surgido muitas informação de falta de equipamento de proteção dos médicos…
Muitos gostam de sensacionalismo e, na falta de outras notícias, inventam coisas. A realidade é que se trata de um hospital, onde as pessoas estão a trabalhar a 150% ou a 200%. Não têm dias de descanso, têm turnos de 12 horas, por vezes de 14h, em vez de 8h. Sim, pode haver dificuldades com o material. Mas eu próprio, que não sou considerado essencial, quando peço material de proteção para poder entrar, nunca me faltou.

O que explica então alguns pedidos dramáticos que nos chegam de Itália, por parte do pessoal de saúde?
As pessoas têm um ponto de quebra, é inevitável. só que há quem amplifique esse ponto de quebra. Quando vou visitar os médicos que trabalham longas horas, eles choram. Choram de cansaço, choram de impotência, choram porque se apercebem como é grave a situação e como são limitadas as nossas forças. Mas nem todos os hospitais estão assim. Alguns têm problemas mais críticos, a situação é grave, mas não é catastrófica. Não estou banalizar o problema, porque muitos médico e enfermeiros estão contagiados, mas eles não fazem disso a tragédia da sua vida.

Já encontrou com alguns deles?

Fui visitar um médico e uma enfermeira internados, porque se contagiaram lá dentro. A única coisa que me disseram foi: "esperemos que isto passe para podermos voltar ao nosso trabalho".

Observou alguma situação limite de escolha entre salvar ou não uma pessoa por falta de ventilador?
Os nossos meios são sempre limitados, porque a medicina está limitada. As nossas energias são limitadas: aplico este medicamento, ou não aplico? Portanto, estas escolhas de vida partem desta premissa. E quanto às decisões fundamentais a tomar, conheço pessoalmente a médica que passou quatro dias fechada no seu gabinete para definir os protocolos sobre o que fazer. Aqui, neste hospital, para desligar as máquinas, tem de haver o consentimento unânime de todos os médicos reanimadores em serviço nesse piso e nesse dia. São sete médicos, se houver uma só opinião discordante, não se desliga nada.

No seu trabalho junto dos profissionais de saúde, como avalia o seu estado de ânimo?
Começo por esclarecer que não lhes digo "vai correr tudo bem", "não de preocupem", "há-de passar", porque são frases sem sentido, embora muito utilizadas nestes dias. O que lhes pergunto é: "comeste? dormiste? os teus filhos estão bem?". Muitos destes médicos estão separados da família, por razões de segurança. "Falaste com os teus filhos? Viste-os por video-chamada? Eles conseguem dormir? A tua esposa conseguiu ir às compras?" É que, aqui, ir às compras é uma aventura, porque os tempos de espera para entrar nos supermercados podem facilmente chegar a duas horas. Primeiro falo destas coisas e só depois, falo de assuntos mais sérios.

Quer explicar melhor?
Um reflexo positivo deste caos, é começam a surgir as perguntas decisivas da vida. Porque agora não há possibilidade dessas perguntas serem escondidas, ou de serem facilmente esquecidas. Que sentido tem a minha vida? Que valor dou ao meu tempo? Que valor dou à minha agenda? Isto não é retórica.

Incluindo a oração?
Claro que sim. Não tenho nenhum problema em falar abertamente de Deus, porque eles percebem, que não vou lá para fazer propaganda. Quando me perguntam "vai correr tudo bem?", eu respondo: “Não sei". Porque não sei mesmo, nem sequer para mim, se vai correr tudo bem. O que lhes respondo é: "peçamos ao Senhor que tenha compaixão de nós". Depois, sentamo-nos por uns momentos e rezamos juntos uma oração. Só isso.

Faço-lhe, provavelmente, a pergunta mais habitual que se faz a quem vive situações como a sua: onde está Deus neste sofrimento?
Essa é uma pergunta que normalmente faz quem está em casa, quem está bem, que passou o dia na sua casa e está diante da televisão a fazer zapping. Porque os que estão mergulhados na realidade do hospital, transformam essa pergunta em oração. Não basta um comentário de café. O problema não é Deus, o problema é a vida, que é má, é o tempo em que só se vêem coisas más. Dois breves exemplos: Uma enfermeira anti-clerical, conhecida por não gostar dos padres nem da Igreja, encontrou-me há dias e disse-me, sem mais conversa: "não deixe de vir aqui”. Há pessoas que se declaram sem fé, mas dizem-me "há muitos anos que não sei rezar, por isso, reze por mim". E eu respondo: "É fácil, recuperamos já; eu digo a oração e você repete comigo as palavras".

Tem conhecimento de sacerdotes que sofrem ou já morreram na Lombardia?
Na província aqui ao lado conheço treze. Na minha província também são vários. O primeiro paciente Covid que encontrei era um padre que eu conhecia e que, graças ao Céu, recuperou da pneumonia e já está em casa. No início, em Itália não se percebeu a gravidade da coisa e, portanto, não foram levadas a sério as medidas do Governo. Por exemplo, não se podia celebrar missa, mas reuniam-se à mesma e organizaram jantares, todos juntos. Não foi por mal, achavam só que era tudo excessivo e catastrófico. Mas infelizmente era mesmo verdade e a prova é o drama que se passou também nos lares, pois as pessoas não aceitaram cancelar as visitas aos familiares idosos.


Costuma levar aos doentes a Santa unção?

Vou lá, quando me pedem, administro-a aos doentes e abençoo todo o quarto. A última foi ontem, ao pai de um médico que trabalha no hospital.

E os funerais?
Quanto os familiares contactam a capelania, celebro como posso, numa praça vazia, junto ao caixão. Rezo algumas orações e abençoo o féretro antes de o levarem para o cemitério. Aqui, deixou de haver o aparato habitual dos enterros, segundo a tradição cristã. Mas a Igreja continua presente.