As cinzas ou o fogo

Pensamos que possuímos as coisas para sempre, mas elas são-nos dadas. E se esquecemos a origem tudo se torna árido... A história de um casal dos Camarões.
Alessandra Stoppa

«Quem não quereria ter amigos assim?» É a pergunta de Julián Carrón na Jornada de Início de Ano do CL, depois de ter citado a carta da Mireille Yoga, que conta a experiência vivida com o seu marido (Ver “Página Um”). Carrón prossegue usando as palavras do Papa Francisco: “Dá-te com as pessoas que mantêm o coração como os das crianças. Na sua humildade está a semente de um mundo novo”.
Mireille e Victorien são casados há dezoito anos. Vivem em Yaoundé, nos Camarões. A sua história é a de um amor mais forte do que tudo. “Fez-nos até viver contra a corrente”, conta ela. Não tiveram filhos naturais e na cultura deles uma mulher estéril é uma vergonha, ou mesmo uma maldição: sentia sempre os olhares e os comentários das pessoas sobre eles. E pedia um milagre, que não vinha. Ano após ano o desejo de dar um filho a Victorien tinha-se tornado uma obsessão. Até ao dia em que ele lhe disse: “Não chores mais. Para mim tu vales mais do que dez filhos. Casava contigo outra vez agora mesmo”.
Estas palavras, impronunciáveis para um homem do ambiente deles, eram o fruto da experiência que viviam. Ela diz: “Era o fogo que vinha de Cristo”. Daquele encontro que tinha feito com o movimento de CL, alguns anos antes de se casar. Um encontro simples – como seguir a curiosidade por duas raparigas do coro da paróquia – e total, a ponto de fazê-la dizer a Victorien que lhe pedia para se tornar sua mulher: “Ficas a saber que esta mulher é “feita” da fé. É por isso que queres casar comigo. Não me impeças nunca de seguir a estrada que me encontrou. Porque é a minha vida com Jesus”. Ele segue-a. “Assim vimos o nosso amor crescer”.

Sem motor. O encontro com um cristianismo vivo – que é também a única razão porque ela, segunda de oito filhos, é a única dos irmãos a não ter deixado os Camarões – renova-se com o “sim” ao padre Maurizio Bezzi, missionário do Pime, que lhe propõe trabalhar no Centro Edimar, uma realidade educativa para os rapazes da rua. A vida alarga-se, a casa deles abre-se aos nanga boko, “aqueles que dormem fora”, entre a rua e a prisão, roubando ou fumando cânhamo, com Sida ou com a vida à mercê dos espíritos, e acompanham-nos um a um, porque em cada um “pousa o olhar de amor que nunca receberam”. Hoje têm também duas filhas: Jérémie, quatro anos, em cuidados adoptivos, a mais velha, Andrée, de sete, adoptada em 2012.
Mas a um certo ponto, daquele “fogo”, que os empurrou para uma vida de casal pela qual se sentiam unidos ao mundo, “restavam só os braços, que se arriscavam a tornar cinza”. Apercebe-se disso por um facto muito simples. Um homem que se apaixona por ela. “Uma pessoa que conhecia havia bastantes anos convidou-me para jantar. Eu estava contente por sair um pouco do ambiente de casa”. Disse ao Victorien que chegaria tarde e pedi-lhe para tomar conta das crianças. “Aquela noite foi muito bonita. Estava com alguém que me enchia de atenções, que se precipitava para me abrir a porta do carro, reparava se o meu copo estava vazio, olhava para mim até aos mínimos pormenores e me fazia falar de tudo e de nada com uma atenção particular. Senti-me leve”.
Algum tempo depois, convida-a de novo: “Aceitei porque a sua companhia me fazia bem”. Mas desta vez, ele diz-lhe que já há algum tempo está apaixonado por ela. “A sua declaração fez-me tremer as pernas. Quando voltei para casa estava contente que alguém me desejasse. Que alguém me dissesse coisas que já não sentia. Quando tinha sido a ultima vez que o meu marido e eu tínhamos tido um momento assim? Que me tivesse dito que me amava, ou que eu lhe tivesse dito a ele? Tinha passado tempo demais.
Entre eles tinha-se instalado uma distância profunda, subtil, fazendo as coisas que havia para fazer e a acabar o dia com os telemóveis na mão antes de se deixarem vencer pelo sono. “Quando me dei conta disto, senti faltar-me a terra debaixo dos pés” diz Mirelle. “Ocupamo-nos com dedicação à família, à casa, acolhemos os rapazes da rua, ajudamo-nos reciprocamente…Mas estamos desligados, distantes”.

Depois do encontro com aquele homem, ela é de repente verdadeira. Pára, olha-se e sente-se como uma máquina que gira sobre si mesma, já sem o impulso do motor para avançar. E percebe o que sucedeu: “Pensamos possuir as coisas para toda a vida. Em vez disso são-nos dadas. Até nos esquecermos da origem, nessa altura tudo se torna árido”. Encontrando-se assim, empobrecida, dá-se conta do verdadeiro problema entre si e o seu marido: “Cristo já não era o ponto de partida do nosso quotidiano”. Há que tempos que não rezávamos juntos, “ou que não gozávamos as coisas, agradecendo a Deus que no-las dá”. Foi “uma descoberta dolorosa”, mas ela não opõe resistência, pelo contrário “fiquei contente de fazer esta experiência. Porque o Senhor usou um encontro casual para me restituir a mim mesma. Veio de novo tomar conta de mim e do Victorien”.
Pouco depois, no dia do seu aniversário de casamento, insiste para sair para jantar com o marido. Ele está desconfortável com um jantar de gala, mas aceita, chegando à mesa com a cabeça cheia de pensamentos e a mulher que o olha nos olhos, paciente, esperando-o: “Queria encontrá-lo, disse ela. Conta-lhe aquilo que lhe aconteceu e abrem-se um com o outro, escutam-se. Acolhem-se. “Tu tens razão”, diz-lhe Victorien: “O nosso amor cresceu como uma árvore. Os pássaros vêm pousar, as pessoas encontram sombra…Mas se paramos de alimentar-nos na fonte, secaremos”.
Naquele instante o coração de Mireille enche-se de gratidão. “O Senhor deu-nos de volta a intensidade da nossa vida de casal. Rezámos o Angelus, comemos qualquer coisa e como duas crianças voltamos timidamente para casa, com a certeza de termos sido amados e queridos por um Outro. Aquele que começou a nossa história connosco, antes de nós, veio mais uma vez ajudar-nos”.

O grito de Deus. É a disponibilidade à forma como Deus quer arrombar as nossas portas. Aos “sintomas” que emergem em nós, como dizia o Carrón: “Os sintomas são como o grito de Deus, cheio de ternura pelos nossos confrontos, mexe com as nossas entranhas. Como se dissesse: “Não te apercebes da necessidade que tens de Mim?”.
Depois daquele jantar de aniversário, “o quotidiano não deixou de ser duro”, conta Victorien, que há poucos dias teve um problema no trabalho e disse à sua mulher: “Se não estamos “juntos” eu faço as coisas mal”. Ela responde-lhe: “Sim. Mas não existe esse estar juntos sem Cristo”.
Cristo como “ponto de partida” do quotidiano. “É muito concreto”, diz ela: “Eu de manhã rezava com as crianças porque ele tinha muitas coisas para fazer. Líamos sempre o Evangelho do dia para saber “o que nos diz Jesus hoje”, mas agora fazia-o sozinha, como ir à missa todos os dias. Já não havia unidade. Porque a unidade é em Cristo, no início das coisas. No início do dia”.
“Em mim cresceu o desejo da “minha” relação com Deus”, diz Victorien: “Que venha ao de cima o meu coração, a minha liberdade”. Neste ajudar-se a tomar e a retomar consciência, “tornámo-nos mais amigos”, dizem: “Temos a certeza de que a nossa vida é levada a um Outro e isto dá-nos simplicidade e dá-nos mais amor pela liberdade do outro. Estamos aqui…como dois filhos perdoados pelo pai. Os problemas do matrimónio tornaram-se ocasiões para ser mais verdadeiros, para recomeçar”.
Com os olhos escancarados, Mireille descobriu quão longe estava o seu coração, de Cristo, até diante da amizade de Don Remigio, que acompanha de Itália a comunidade dos Camarões. Foi visitá-los, esteve um pouco com eles, simplesmente: “Por mais que seja nobre tudo aquilo que vocês fazem, quero saber como é que estão”. Ver a sua afeição quebrou todos os muros que ela tinha posto, até com os amigos do movimento com quem a relação se tinha perdido. “dizia a mim própria que não devia procurá-los, que se quisessem saberiam onde encontrar-nos…uma quantidade de objeções”. Mas Don Remigio perguntava por um e por outro, preocupava-se. Ela cortava a conversa, como se não merecessem atenção. Ele não ligava e continuava a interessar-se por eles.

Um simples «obrigada». “Via no seu olhar comoo era importante que cada um fosse feliz. Foi um choque para mim. E desejei ter aquele mesmo olhar de ternura. No meu íntimo, pus-me a rezar e a pedir perdão. Por todas as vezes que impedi Cristo de utilizar o meu coração e o meu olhar para se manifestar ao meu redor.”
Dali voltei a procurar os amigos que já não via há uns tempos. “Cheia desta amizade, que abalou a tranquilidade em que me tinha fechado”. Cito apenas uma mensagem que recebi como resposta de um deles, um simples “obrigado”. “Um obrigado cheio de coisas não ditas”.