Indícios de eternidade

Citado nos Exercícios de CL, ERNESTO SABATO é um dos grandes escritores argentinos. A ciência, o comunismo, a morte do filho. A aventura de um homem que sabia que existe uma resposta para quem procura. E talvez já esteja a acontecer, de um modo silencioso
Cecilia Porfirio

Físico, ensaísta, escritor, pintor; filho, marido, pai. São muitas as facetas que Ernesto Sabato oferece aos seus pesquisadores; inumeráveis, talvez, os adjetivos para se tentar compreender a sua pessoa, a sua obra, enfim, o seu contributo para o mundo. Mas acima de tudo o que se disse e se poderá dizer, é a sua humanidade - e a busca inexaurível do que constitui a sua pessoa - que fica impressa em qualquer leitor atento.
Muito jovem adere ao Partido Comunista, convicto de que poderá contribuir para a eliminação da injustiça, para a melhoria da vida de tantos que sofriam a opressão de um mundo cada vez mais materialista, “tecnolátrico” – como ele disse –, desumano. Anos de endoutrinamento para enfim chegar à inevitável desilusão: a proposta do comunismo não já brilhava como antes.

Volta-se para a física e para a matemática, consegue uma bolsa de estudo para trabalhar no Laboratório Curie (França), transfere-se para lá a fim de estudar, mas acaba a defrontar-se com uma segunda desilusão: testemunha da cisão do átomo de urânio – que depois dará origem à bomba atómica – fica aterrorizado com a capacidade de destruição do homem. Diz Julia Constenla, na sua biografia: “Nem o comunismo nem a ciência conseguirão afastá-lo da incerteza (...). Está sozinho diante do mundo. O único lugar onde pode buscar as respostas às questões que são próprias do homem de todas as épocas é o fundo do próprio coração”.

Ainda que desiludido com as sua anteriores tentativas, Sabato sente que não pode deixar de seguir esse chamamento interior que lhe grita para encontrar uma via rumo à resposta para a vida, não só sua, mas da humanidade toda. Sente a responsabilidade de contribuir para preservar “a sacralidade do homem”, como escreve em Antes do Fim. Mas ao mesmo tempo sabe que está sozinho nessa tarefa que irreversivelmente atribui ao escritor: “Os poderosos hão-de chamá-lo comunista, por reclamar justiça para os oprimidos e os famintos; os comunistas hão-de chamá-lo reaccionário, por exigir liberdade e respeito ao ser humano. Nesse tremendo dualismo viverá desenraizado e ofendido (...)”.

O que fazer, então? Um impulso vital incita-o a continuar a busca, porque precisa de chegar a uma resposta. Outro impulso leva-o a abandonar a busca: se há tanto sofrimento, quer dizer que o Mal venceu o Bem e não há remédio. Todavia, diante deste último pensamento emerge algo irrefutável: o homem ama, ri, chora, luta pelo que deseja; isto é, a humanidade continua a existir. Sabato oscila “entre o desespero e a esperança, que afinal prevalece, porque de contrário a humanidade teria desaparecido quase desde o início, pois são muitos os motivos para duvidar de tudo”.

Morte e vida. Na sua luta para encontrar o que possa resgatar o homem de si mesmo, recuperando assim a humanidade perdida, Sabato teve que enfrentar uma dor que penetra fundo no seu ser e contribui para orientar aquela busca que havia iniciado na juventude: o seu filho Jorge, ao voltar do mar, morre num acidente automobilístico. “Quando ele morreu, tudo ruiu (...) e não consigo conter essa opressão que me sufoca”, diz Sabato. Procurando comunicar essa indizível dor, compara-se àquele que “caminha perdido numa selva obscura e solitária, buscando em vão superar a invencível tristeza”.

Longe de se convencer de que não há nada que possa bater ao ritmo do seu coração, e que – pelo contrário – a vida é praticamente uma armadilha, Sabato começa a perceber que agora tem mais necessidade do que antes de alcançar aquela eternidade pela qual no fundo anseia, a única coisa que pode restaurar a sua alma ferida: “Posso dizer que o tempo da minha vida se rompeu e que depois da morte de Jorge já não sou o mesmo; transformei-me num ser extremamente carente, que não cessa de procurar um indício que me mostre aquela eternidade na qual poderei abraçá-lo de novo”.

A partir dessa consciência da necessidade, começa um reconhecimento, dentro da própria realidade, desses indícios que possam conduzi-lo ao seu destino: “Não há outro modo de alcançar a eternidade senão aprofundando o instante, nem outra maneira de alcançar a universalidade a não ser através da circunstância vivida”. Tudo se torna sinal: a música, uma mesa bem apetrechada, um livro, as flores, os animais, a beleza de um único gesto, todas essas “pistas que os homens vão deixando para trás, como as pedrinhas que Hansel e Gretel deixavam cair, na esperança de serem reencontrados”; tudo sinais desse Absoluto que todo homem busca, inclusive ele próprio. “Na irremediável solidão deste amanhecer escuto Brahms, e sempre através de suas melancólicas trombetas volto a entrever, enovoada mas certa, a soleira do Absoluto”.

A busca de sempre, com uma trajetória mais definida. É o que lhe possibilita encarar de frente a dor pela morte do filho, e tantas outras dores: a doença da sua amada Matilde, a pobreza, a injustiça e a violência no seu país e no mundo. Fixar-se na realidade torna-o mais inteligente, mais sensível. Entender que está a procurar o Absoluto torna-o mais humano. Entende que essa saudade “não pode ser explicada, mas sente-a como a memória de uma harmonia que era a nossa mais autêntica forma de existir”. Começa a perceber que esse “pano de fundo” feito de saudade de eternidade é “invisível, incognoscível, mas com ele mede-se toda a vida”. Deixar-se agarrar pelos indícios do Eterno presentes na realidade leva-o a querer comunicar essa descoberta aos outros, sobretudo aos jovens, aos quais se dirige com ternura: “A vida no mundo deve ser abraçada como uma tarefa estritamente pessoal, e precisamos de estar prontos para defendê-la (...) porque essa é a nossa missão”.

A grandeza que, por fim, Sabato descobre no quotidiano é que lhe permite afirmar com certeza que “a vida é aberta por natureza”, o que significa que a vida é positiva, tem dentro de si um germe de vitória, embora não o vejamos sempre com clareza. “Uma doença pode ser a abertura, a irrupção de algum milagre na vida: uma pessoa que nos ama apesar do nosso fechamento. (...) Amor que nunca se recebe como algo óbvio e que pertence sempre à categoria do milagre”.

Sabato pôde constatar - vivendo no mundo, deixando-se tocar por aquilo que o cerca – que há uma resposta para aquilo que se procura. Verificou que parte da resposta implica arriscar mais, e mais vezes, pelo outro, e que se deve sempre esperar com os braços abertos “que uma nova onda da história nos acompanhe”. Porque “talvez – diz ele – ela já esteja a acontecer, de um modo silencioso e subterrâneo, como as sementes que palpitam sob a terra no inverno”.


QUEM É
Nasce em 1911, em Rojas (Buenos Aires), décimo de onze filhos de dois imigrantes italianos. Depois da carreira de físico, dividido entre a Argentina e Paris, em fuga do Partido Comunista, ao qual havia aderido, em 1945 abandona as ciências para se dedicar à literatura. É Albert Camus quem descobre a sua grandeza. Tendo ficado sozinho após a morte do filho Jorge e da esposa Matilde, casa-se com Elvira, com quem terá Mario. Após a ditadura militar (1976-1983) é nomeado presidente da Comissão nacional sobre os desaparecidos, que produz o dossier Nunca mais.
Sabato morre em 2011, dois meses antes de completar cem anos. “Mal comecei a aprender a viver – escreve ele – e já vou morrer!”. O que alimenta todos os seus escritos é o que chama de “o combate decisivo”, isto é, “recuperar toda a humanidade que perdemos”.
Entre os seus livros, variados ensaios sobre o homem e três romances: O Túnel (1948), a sua obra mestra Sobre Heróis e Tumbas (1961) e O anjo do abismo (1973). A coleção das suas memórias está em Antes do fim (1988).