Histórias de certeza quotidiana
A morte. As relações. A escolha. O trabalho... Nos desafios da vida, três experiências de quem surpreende a «segurança» de um caminho. A começar pelo juiz brasileiro, Paulo Antônio de Carvalho, que conta o risco da confiança diante dos «muros» que levantaAudiência. O juiz lê ao condenado a sentença: oito anos de prisão. Depois explica-lhe que pode recorrer e esperar um resultado melhor. «Não, não. Estou de acordo. Errei e devo pagar», responde. Mas depois acrescenta: «Desculpe, devo ir para a prisão hoje?». «Sim, funciona assim…», confirma surpreendido o juiz: «Porque é que pergunta?». «Porque não estou pronto para ir hoje». Neste momento, ou nasce uma gargalhada ou nasce uma pergunta. O juiz pergunta-lhe porquê. «Temos dois filhos, e trabalho somente eu. Se não organizo primeiro as coisas em casa, a minha mulher não sabe como fazer». «Então, está a pedir-me tempo?». «Sim». «E de quanto tempo precisa?». «Dez dias». «Concedo-lhe trinta». Abre a agenda e assinala a data em que o condenado deverá comparecer.
Trinta dias depois, aquele homem apresenta-se, pontual, de mala na mão. «As pessoas no trabalho não acreditavam. Mas ao invés aconteceu, porque o mais forte de tudo é a confiança», diz hoje à Passos o juiz protagonista desta história. «Protagonista não, colaborador…» precisa imediatamente. Chama-se Paulo Antônio de Carvalho.
Oriundo de Conceição da Aparecida, no sul do Estado brasileiro de Minas Gerais, é desde há trinta anos o responsável pela circunscrição judiciária de Itaúna, uma cidade de cem mil habitantes, a sessenta quilómetros de Belo Horizonte. As pessoas acham-no um tonto pela decisão tomada diante daquele homem. Sabe que arriscou muito, aquela e outras vezes, principalmente o emprego, mas não perde tempo com discussões, pelo contrário diz que «sem arriscar não se faz nada na vida. De resto, devo somente agradecer a Deus».
A dar-lhe coragem naqueles trinta dias esteve um facto muito simples: «Olhei aquele homem nos olhos», conta: «apostei tudo na confiança nele». Além disso, a história não acaba só com um condenado que se apresenta no prazo de entrega e vai para a prisão pelos próprios pés, mas também com um juiz que não o manda para casa com sirenes. «Causar-lhe-ia um forte embaraço. Algemado, diante dos filhos e da mulher, os vizinhos à janela. Podem-se fazer as coisas de modo mais humano. E depois sabe que diferença existe ao entrar na prisão sem a angústia dos problemas deixados em casa? Se recebesse uma condenação hoje, nem eu estaria a postos».
Antônio Carvalho licenciou-se em direito em 1970, tornou-se juiz seis anos depois, mas não assumiu imediatamente a responsabilidade. Percebeu toda a gravidade da tarefa que lhe estava confiada, e tinha medo, não se sentia suficientemente preparado e maduro: «Nós juízes trabalhamos com a liberdade dos homens. Deus partilhou connosco a sua mesma responsabilidade, aquela de julgar. É precisa muita prudência. É preciso agir com misericórdia, para não trair a confiança que Deus colocou em nós. Eu amadureci com o tempo e a experiência, sobretudo com a religiosidade. E graças a alguns encontros».
Chegou a Itaúna a 30 de Junho de 1984. No início fazia o seu trabalho «como o faz a esmagadora maioria dos juízes», considerando a execução de uma pena uma questão administrativa. «Nem me dava conta que “do outro lado” estava um homem como eu, com a mesma necessidade de atenção». Aprendeu encontrando o método Apac, as prisões sem guardas, protagonistas de uma das exposições mais amadas do último Meeting de Rimini. O método nasce de uma intuição vertiginosa de um advogado de São Paulo, Mário Otoboni, que primeiro fez a sua aposta: um homem é sempre maior que o mal que fez. Qualquer que seja a infração cometida. Com os anos, as prisões Apac passaram a ser 40, só no Estado de Minas Gerais albergam mais de trinta mil pessoas “em recuperação”, são uma fonte de perdão, de factos impensáveis, transformam as famílias, a sociedade em redor, e demonstram um nível de reincidências de 15-20% contra os 80% das prisões tradicionais.
A resposta de José. É uma visão diferente do direito, do detido, da pena. Mas a força mais revolucionária deste método revela-se na experiência de um presidiário, José de Jesus, que marcou Antônio Carvalho para sempre. «Era um homem muito forte e muito inteligente, que graças a estas duas qualidades logrou sempre evadir-se de todas as prisões». Quando o Tribunal de Justiça encomendou um relatório sobre Apac, um jornalista perguntou a José: «Fugiste sempre. Mas agora, estás aqui há dois anos, onde não há guardas, e não foges. Porquê?». «Porque do amor ninguém foge».
“Encarceramo-nos” por nós mesmos. O juiz Carvalho não se persuadiu imediatamente do método Apac. «Levei um par de anos». Foi preciso ter visto vidas mudadas como a do José, os efeitos na sociedade, e antes de mais o trabalho dos voluntários: «Estava impressionado com a dedicação de todas aquelas pessoas, que gastam energias e tempo assim, num mundo como o de hoje». (Onde, se existe alguém inaceitável, é justamente aquele que errou.) Impressiona-o muito o aprofundamento do Padre Carrón na “Página Um” da Passos de Setembro, sobre as tentativas de resposta à insegurança existencial do nosso tempo. «Surpreende-me porque é crucial», explica o juiz: «hoje nós construímos dois tipos de muros: o primeiro para manter longe quem faz o mal, o segundo para nos fecharmos dentro das nossas vidas. “Encarceramo-nos” por nós mesmos, pensando estar seguros. Assim criamos ainda mais problemas, isolando-nos dos outros. E não resolvemos de facto o problema do medo que está dentro de nós, no nosso íntimo, que depende da mudança de coração: de uma transformação da vida, sem a qual não estaremos nunca pacificados».
Se também o mundo passasse todo o tempo «a prender as pessoas, pensado que esse é o caminho justo, a realidade diz que não o é». A realidade diz outra coisa: «Que devemos procurar novas modalidades. Fazer as mesmas coisas de maneira diferente, mais humana». A criminalidade diminui onde a tentativa é a de «diminuir a altura dos muros, olhar o preso como um sujeito de direitos, investir na educação e na recuperação». Não é verdade que o mundo assim é menos seguro. Os resultados de Apac não são “gratuitos”, são assim porque «o método funciona».
Centelha divina. Para Antônio Carvalho é ver in loco a convicção de Gudesteu Biber, antigo presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: «É necessário que um preso seja tratado como um homem, para que possa reagir como homem». Carvalho ousa ainda mais: «É necessário tratá-lo pela centelha divina que tem dentro de si». Por isto é interessante para ele «o desafio de don Giussani e do Padre Carrón: só quando chega ao coração do homem pode operar alguma transformação. Também social».
Olha para a sua carreira e não vê as cerca de dezoito mil condenações que executou, mais as sessenta mil pessoas que lhe passaram pelas mão em audiência. No tempo, aprendeu a ver neles «tantos Lázaros, como podemos ser nós ou as pessoas que encontramos a cada dia. Pessoas “mortas”, necessitadas que Jesús chegue diante do sepulcro e diga: “Vem cá para fora!”» Confidencia que pensa mesmo na provocação do Papa sobre a esmola, quando diz que se damos uma moeda a um homem na beira da estrada, não estamos a fazer nada: não mudamos a sua situação, o mundo segue em frente, igual a como era antes. «Francisco diz que é toda uma outra coisa parar, olhar o outro nos olhos, esticar-lhe a mão, falar-lhe. Porque certamente aquela pessoa está a pedir amor, não apenas uma moeda. Existe outra forma de fazer a mesma coisa, que muda tudo».
O que é que ganha por trabalhar e viver de uma maneira diferente? «De todas as coisas que podemos falar, esta é a mais importante», responde: «Nada disto que se faz tem um valor, se se faz formalmente, se se fazem todas as “coisas justas”, mesmo também os deveres religiosos, como espectadores, sem viver a essência da vida. Eu ganho muitíssimo: envolver-me na relação com o irmão que tenho à minha frente, com os factos que acontecem, provocou em mim uma transformação muito profunda. Cresci, como cristão, como homem. Como juiz. Eu hoje sou melhor do que era antes».
Para falar de si não pode prescindir da experiência de Apac, mais ainda da relação com dois sacerdotes que, na infância e juventude, foram dois pais para ele, que perdeu o seu pai com sete anos: «Transmitiram-me a fé e eu hoje continuo a seguir a estrada que eles me indicaram». E acrescenta: «Deus foi muito bom comigo, dando-me tudo isto. Sim, a “segurança” nasce de saber-se muito amado».