Construir pontes

O texto integral do diálogo entre Javier Prades e Juan José Goméz Cadenas
Um é sacerdote e teólogo. O outro cientista agnóstico. Tornaram-se amigos e nesta entrevista explicam porque é que o encontro entre os seus mundos não só é possível como é urgente
Ángel L. Fernández Recuero - jotdown.es - Maio 2016

Javier Prades é licenciado em Direito e Doutor em Teologia. Presentemente é Reitor da Universidade Eclesiástica San Dámaso de Madrid. Juan José Gómez Cadenas estudou Física na Universidade de Valência e depois em Stanford. Está actualmente à frente do projecto internacional Next, que tem como objectivo compreender a natureza intrínseca do neutrino e da matéria negra. Encontrámo-nos com eles para, se possível, descobrir pontos de contacto entre a ciência e a religião. Avaliem vocês.

Em 2012 Richard Dawkins e Rowan Williams (então Arcebispo de Cantuária e Chefe da Igreja de Inglaterra e da Comunhão Anglicana) protagonizaram um debate sobre ciência e religião que foi seguido por muitíssimas pessoas. Como é que os diálogos deste género podem contribuir para o desenvolvimento da sociedade?
Prades.
A primeira coisa a fazer é ajudar a remover as dificuldades que se arreigaram por causa duma história difícil, por vezes caracterizada por graves conflitos. Deve-se ter em conta o facto de, por vezes ,uma certa divulgação social continuar a ser dominada pela ideia de que a ciência e a religião – ou a ciência e a teologia – são duas esferas separadas, no fundo incompatíveis ou até opostas, e que portanto a vitória de uma implica a derrota da outra. Creio que actualmente existe uma margem para reatar a questão em termos diferentes, e este género de debates ajuda trazê-a junto do público.
Cadenas. Dawkins é ateu militante e defensor acérrimo do método científico. Os livros dele tiveram uma influência enorme. Rowan Williams é um teólogo eminente e a sua estatura humana e social é impressionante. Vale a pena rever aquele debate e reparar como estes dois intelectuais, apesar das suas profundas diferenças, se esforçam por encontrar áreas comuns, e mesmo quando divergem nos enriquecem com a sua inteligência e erudição. É um debate que permite saborear o puro exercício da razão, algo de extraordinário numa época, como esta em que nos coube viver, em que se dá por adquirido que não é necessário raciocinar. O debate político dos últimos tempos, cheio de clichés, slogans e falsidades, é um exemplo eficaz desta triste situação.

Vocês nasceram ambos em 1960 e a vossa vida é dedicada ao ensino e à investigação. O que têm em comum um Doutor em Teologia e um Doutor em Física?
Prades.
Tendo nascido no mesmo ano e no mesmo país, temos partilhado uma história comum que é a da Espanha do desenvolvimento económico, das mudanças culturais e sociais que nem sonhávamos, da transição política… Provavelmente interpretámos estes eventos de forma análoga. E também, em relação às inquietações e à sensibilidade, partilhamos – e demo-nos disso conta com surpresa e simpatia – a mesma paixão pela realidade e o amor pela razão. Estas duas categorias são, em meu entender, os principais pilares da ponte que queremos construir.
Cadenas. Na minha opinião há outro elemento: na minha idade acho bastante aborrecido limitar-me a falar com gente que pensa como eu. Anima-me ter conhecido o Javier – por puro acaso – e descobrir as nossas afinidades pessoais, intelectuais e geracionais. Anima-me que uma conversa com ele comece na cosmologia ou nos neutrinos, passe pelas nossas recordações da Transição, aflore a questão da inteligência artificial, se interrogue sobre o sentido do mal e se divirta com Kant, e tudo isto sem desdenhar umas cervejas. Penso que esta atracção entre polos opostos também agrada ao Javier. Recentemente apresentou um livro de teologia e os três relatores que o ladeavam durante a apresentação eram: um cientista declaradamente agnóstico – eu –, um conhecido filósofo intelectual convertido ao judaísmo e uma célebre filósofa e feminista com diversas tomadas de posição anticlericais no seu curriculum. Quando perguntei ao Javier por que tinha convidado amigos tão perigosos, respondeu que preferia falar com gente que não pertence à Igreja porque com os teólogos tinha outras oportunidades de diálogo. A minha leitura disto é exactamente a que lhe estou a dizer agora. A busca do outro, do outro que é ao mesmo tempo o teu oposto e o teu semblable (semelhante), como dizem os franceses. Parece-me que é um dos deveres do intelectual.

Existem verdades indemonstráveis na ciência e na religião?
Prades.
Seria talvez mais interessante começar a tomar em consideração a outra face da moeda, as verdades demonstráveis. Quer dizer, o espectáculo surpreendente que se deve ao facto de sermos capazes de compreender a fundo muitos aspectos da realidade. Eu não iria à procura do ponto de encontro entre ciência e religião começando por aquilo que é meramente indeterminado. É fundamental reconhecer à ciência, mas também à filosofia e à teologia, a confiança na capacidade da razão humana de nos revelar coisas verdadeiras. Verdades que se podem encontrar em diversos âmbitos. A razão pode descobrir muitíssimas coisas: vemos isso nestes tempos observando as ondas gravitacionais. São empresas do conhecimento, que se baseiam na nossa capacidade de reconhecer a verdade. Creio que um diálogo construtivo entre ciência e religião pode partir desta capacidade da parte da razão de identificar a verdade.
Cadenas. Estou de acordo. O uso da razão como instrumento na busca da verdade não é uma metodologia exclusiva do método científico, na realidade parece-me que é herdada da filosofia. A teologia de Javier baseia-se na mesma metodologia e fornece um terreno comum.

Francisco Vázquez, ex-embaixador espanhol no Vaticano, dizia que a única maneira de interessar-se por Deus é por meio da razão humana. Então, que papel tem a verdade revelada?
Prades.
Posso estar de acordo com essa observação porque, se não se respeita a razão, não se honra a Deus. Quanto à revelação (refiro-me ao cristianismo), tem um papel singular, ao qual poderemos voltar mais adiante. Mas queria insistir numa questão preliminar. No nosso mundo ocidental a relação entre o conhecer e o crer passou a ser problemática. Parece inevitável aquilo que eu definiria como uma estranheza recíproca: o facto de uma coisa ser conforme à razão não tem nada a ver com a fé revelada; E se uma coisa pertence à revelação, é alheia à razão. Esta divisão tem raízes antigas e criou dificuldades enormes. É uma das questões que devemos reconstruir com um diálogo paciente para recuperar um modo de conceber a razão que possa abranger âmbitos diversos, e que permita compreender, por exemplo, que a religião não é algo puramente arbitrário ou sentimental, ainda que o seu modo de conhecer seja diferente do das ciências ou da filosofia, justamente pela singularidade do seu tema.
Cadenas. Neste sentido acho muito interessante olhar para trás e dar-se conta de que há não muito tempo esta dicotomia não existia. Para Isaac Newton, que é provavelmente o físico mais importante da história, não cria nenhum conflito propor as leis da gravidade universal e acreditar nas verdades reveladas e na religião cristã. Dá a sensação de que esta progressiva evolução para o confronto é uma coisa recente, que além disso não me parece indispensável. Um diálogo razoável admite vários pontos de vista, mas não tem prazer no confronto e muito menos em denegrir o outro. Pelo contrário, está interessado em verificar se o outro ponto de vista tem alguma coisa a oferecer. Trata-se de dialogar para aprender, mais do que para rebater.

Actualmente considera-se que o método científico é o único modo certo para conhecer. Mas, a seguir a cada revolução cientifica a verdade a que se chegou anteriormente mostra-se incompleta ou simplesmente falsa. Como se pode determinar a validade de um método que tem a finalidade de nos aproximar da verdade?
Prades.
Temos de ampliar a noção de razão para compreender que o método científico aplicado ao conhecimento da realidade foi adaptado em função do seu objecto. O caminho através do qual o pensamento ocidental explorou as características do método científico é muito longo. Veja-se a preocupação de Descartes ou de Kant, e depois de Husserl… Sentem que é necessário identificar as características de um conhecimento universal objectivo, que funcione sem contaminação ideológica ou passional. E as causas desta preocupação vêm de uma história complexa que diz respeito à Europa e na qual, aliás, esteve envolvida a religião. Um dos resultados foi o extraordinário progresso do conhecimento técnico-científico, e também a sua aceitação social, que hoje adquiriu tal prestígio que é considerado a única forma incontestável do saber socialmente partilhado. Se se quer publicar uma coisa, basta dizer: segundo um estudo científico… [Risos]. É curioso que tenha ganho a credibilidade que tinha a doutrina religiosa. E portanto isso significará que não se deve contextualizar este método para nos darmos conta de que nós homens podemos conhecer a realidade numa variedade de aspectos maior do que os que estão acessíveis à ciência e à tecnologia? Aspectos que são os mais importantes para a vida de cada um: os afectos, a convivência social e política, o conhecimento íntimo das pessoas. Experimentem imaginar que se quer explicar o que é uma pessoa, ou as suas relações, apenas em termos de ADN e de funcionamento neurobiológico. Não existirá um modo razoável de aceder a outros aspectos da realidade? Creio que sim. E é precisamente aí que se podem indicar os métodos que permitem dizer que tipo de evidências e de certezas são possíveis. E as certezas morais são distintas das evidências científicas. Normalmente a grande ausente nestes debates é a filosofia.
Cadenas. O facto de actualmente a ciência ser tão preponderante quando se quer explicar o mundo tem muito a ver com o grande sucesso que teve no seu âmbito. Mas isso não implica que não tenha limitações. O teorema de Gödel afirma a existência de proposições que são ao mesmo tempo certas e indemonstráveis. A cosmologia moderna ignora aquilo de que é feito quase todo o universo, chamamos “matéria” e “energia negra” à nossa ignorância. Ninguém sabe o que existe para lá do horizonte de eventos de um buraco negro, nem como surge a consciência. E, evidentemente, ninguém sabe o que terá existido antes do Big Bang. Sabemos que a velocidade da luz é uma constante do universo, mas não sabemos porquê. Sabemos além disso que vivemos num universo de proporções gigantescas no qual ocupamos um espaço aparentemente insignificante. A nossa ciência informa-nos sobre tudo isto e muito mais, mas não nos diz quem somos nem por que estamos aqui, não nos reconforta mostrando-nos a finalidade da nossa existência – se bem que também não nos fornece provas irrefutáveis da não existência dessa finalidade. Apenas nos acompanha numa parte do caminho. A busca da verdade para lá dos limites a que nos pode levar tem de usar outros instrumentos. Religião, intuição, literatura… Com isto não quero dizer que a noção de Deus seja inevitável. Com efeito, para mim não o é. Mas reconheço que pode sê-lo para outros.

A verdade é indefinível. Está matematicamente demonstrado.
Cadenas.
Existem coisas que são verdade e que é indemonstrável que o sejam. E este é um assunto matemático, não uma afirmação filosófica.
Prades. O mundo em que vivemos é interessante. Nele convivem influências muito diferentes. Continua a ser socialmente válido o ideal absoluto do saber científico, apesar de agora ter deixado de ser adequado no ponto a que a ciência chegou hoje. As aquisições científicas, de Heisenberg e Gödel em diante, aportam uma certa modéstia à grandeza da física e da matemática. Temos também o pensamento pós-moderno, normalmente considerado nihilista ou relativista. Sem dúvida que pode sê-lo em determinados pensadores. Mas também é preciso pensar, por exemplo, que um Foucault fez uma crítica à concepção tecnocrática da verdade. É uma crítica que provém de um olhar pós-moderno que reivindica a verdade como acontecimento. Devia-se compreender a fundo o que quer dizer, mas gosto de pensar que é como que um grito humano, uma espécie de revolta contra uma compreensão rígida da inteligência da verdade, vergada a um cânone tecnocrático que nos fica apertado. É como se por muitas vias reaparecesse a intuição de que a mente humana não pode compreender completamente a realidade. E isso será uma vantagem para o homem ou é contra ele? E aqui todos temos de nos pôr em campo.

Parece que a religião é sempre um passo atrás relativamente à ciência. A que é que isso se deve? É uma espécie de necessária segurança jurídica?
Prades.
É uma observação bastante frequente; vem sempre ao de cima… Mas sem dúvida que deveria ser mais específica. No que se refere ao judeo-cristianismo ocidental, ao encontrar o mundo greco deu origem a uma especificidade cultural muito interessante para a história humana, e é no seu seio que nasce a ciência moderna… Não se podem avaliar ao mesmo nível todas as culturas ou religiões relativamente ao exercício da razão ou da consciência moral…
Cadenas. Temos de ser prudentes com a noção, hoje em dia tão em voga, de relativismo, a ideia de que toda a cultura ou sistema ético é equivalente a qualquer outra. À primeira vista parece perfeitamente razoável. Mas penso que a todos repugnaria uma cultura que admitisse, para dar um exemplo, o assassínio de crianças.
Prades. A ideia de que a religião está a um passo atrás da ciência pode ser um eco das dificuldades a que nos referimos no início. São inevitáveis? Creio que não, creio que é um problema ligado à situação actual. Infelizmente, num dado momento surgiu um conflito e convém ultrapassar quanto antes este ponto morto, se a teoria científica delimita com precisão os seus métodos e as suas relações com outros saberes, e se a religião (estou também desta vez a partir do cristianismo) recupera e aprofunda o seu imprescindível diálogo com a razão.

Os católicos são favoráveis ao multiculturalismo?
Prades.
Prefiro uma expressão que me parece mais sugestiva porque leva mais a pensar: o processo definido como miscigenação de culturas. Se o multiculturalismo produz o modelo do gueto, como infelizmente se vê em não poucos lugares europeus – acabo de regressar da Bélgica –, não sou favorável a este modelo, porque este revela a fragilidade cultural, antropológica e social de quem acolhe. Prefiro falar de miscigenação de culturas, que permite reconhecer o outro, porque o outro nunca será tão diferente de mim que não se torne um alter-ego, um outro como eu. É uma coisa inata ao cristianismo: ser universal. O cristianismo tem uma aspiração não étnica, que se realiza historicamente acompanhando e assumindo directamente o processo de miscigenação de culturas, no sentido em que o entenderam alguns autores contemporâneos.

Há incompatibilidade entre aceitar o modelo corrente do início do universo e o facto de que Deus exista?
Prades.
Não vejo por que razão deva existir incompatibilidade entre uma teoria típica do saber científico e uma afirmação filosófica ou religiosa. E os modelos científicos mudam com o tempo. No século XIX não se tinha sequer em consideração a ideia de um universo singular e em expansão, ideia que em substância quadra melhor com uma visão religiosa da criação, e pensava-se que o universo fosse eterno, imutável e estático. Quem tivesse dito o contrário no âmbito científico teria sido marginalizado, o que é dizer pouco, dado que o universo era uma entidade infinita. Por isso acrescentava-se, passando a um outro âmbito, que ao lado dessa não podia estar um Deus, porque eram dois infinitos que se excluíam. A hipótese do Big Bang nasce no âmbito científico e leva a rever profundamente a noção do universo físico. Com isto não quero dizer que deveríamos adoptar as posições do chamado «criacionismo» no âmbito científico, mas simplesmente deveríamos observar a evolução dos modelos de astrofísica que nos propõem, para compreender sempre melhor a realidade na sua dimensão cosmológica, física. E é sempre válida a interrogação, digamos metafísica, que reclama a intervenção de outras modalidades no uso da razão. Para evitar uma falsa convergência, deve-se desenvolver o trabalho fundamental, a que faço referência, de um exercício global da razão, prestando atenção aos pressupostos epistemológicos do saber científico. Na minha maneira de ver, é este o âmbito no qual será mais fácil encontrar-nos.
Cadenas. O cientista interroga-se inevitavelmente: o que existia antes do Big Bang? A tendência natural do pensamento, e em particular dos modelos científicos e matemáticos, é continuar na pesquisa de um porquê, e as respostas possíveis não são poucas. Qualquer uma é muito atraente do ponto de vista intelectual. Por exemplo, talvez o nosso universo não seja senão uma bolha num enorme multiverso. Esta «teoria» permitiria compreender os valores das constantes físicas como a velocidade da luz ou a carga do electrão, postulando que em cada um dos infinitos universos-bolha que se criam no multiverso estas constantes tenham um valor diferente, sendo o nosso simplesmente um de entre muitos, no qual estas constantes tornaram possível o surgimento da vida e da inteligência. Mas é importante dar-se conta de que a palavra «teoria» se deve pôr entre aspas. O método científico baseia-se em poder confrontar hipóteses e, que eu saiba, ninguém encontrou um modo razoável para contrastar a hipótese do multiverso. É uma ideia elegante e sugestiva, pelo menos para os cientistas, entre os quais me incluo, mas indemonstrável, pelo menos hoje em dia, tanto quanto a existência, ou não existência, de Deus.

É uma ideia de John Wheeler a analogia segundo a qual o universo seria um circuito auto-excitado. Na física quântica é verdade que a partir do nada se pode criar qualquer coisa, ainda que apenas um milissegundo?
Cadenas.
Na física quântica é verdade que o nada flutua ou, com maior precisão, aquilo que flutua é o vazio quântico, que pode gerar pares de partículas virtuais, que se criam e se destroem constantemente. O vazio quântico é muito mais rico do que o vazio clássico, que ao invés podemos associar à noção clássica do nada. A possibilidade do facto de que todo o nosso universo seja uma flutuação do vazio quântico é absolutamente compatível com a física moderna.
Prades. O cientista é um homem, e enquanto tal procura uma explicação unitária do real. Se o cientista está a fazer investigação sobre a antimatéria, o neutrão ou o protão, às vezes concebe-se a si próprio como um especialista de tal maneira focalizado sobre aquilo que estuda que não quer ouvir falar de mais nada.
Cadenas. E alguns não saem dali…
Prades. E depois existe uma outra posição, a do homem que tende a procurar uma explicação global da sua vida e do mundo. Neste caso, entram em jogo muitos outros saberes para além daqueles que derivam da observação científica de um dado fenómeno. Nós, humanos, temos a exigência de uma explicação unitária, e esta exigência é própria apenas do humano. A este propósito Habermas faz uma observação interessante. Diz que tentar passar da explicação científica de um ponto particular a uma tese totalizante não é ciência mas má filosofia. O homem de ciência pode e deve fazer ciência, e disso obter-se-ão consequências positivas no seu âmbito. Mas se como cientista transita deste ponto da explicação científica a uma explicação completa da realidade, daí deriva um salto injustificado. E se aquilo que se quer sustentar é que a ciência enquanto tal é a explicação universal de tudo, esta não é uma afirmação científica. E reabre-se o debate…

Temos um exemplo, justamente, no famoso teorema de Gödel. É sempre extrapolado do seu campo de aplicação para explicar outras coisas.
Prades.
Há algum tempo participei na universidade numa mesa redonda com um físico de primeira ordem. Chegou a sustentar, a partir da explicação do princípio da indeterminação na mecânica quântica, que não devia orientar o seu filho nem indicar-lhe qualquer coisa como uma verdade, porque a sua liberdade era indeterminada. Imagino que se possa conceber assim a educação de um filho… Mas não é razoável fazê-lo em virtude do estudo do teorema de Gödel.
Cadenas. Parece-me que frequentemente se comete o erro de extrapolar um determinado campo de conhecimentos do seu contexto. O teorema de Gödel pode garantir-nos a existência de enunciados certos mas indemonstráveis, contudo a educação de uma criança interessa-se mais por coisas humildes, como a respeitar o vizinho, aprender a ter um diálogo, controlar a tua frustração, e interessares-te pelo outro, em suma a célebre, preciosíssima e poderíamos dizer cada vez mais escassa, empatia com os outros. Todas estas coisas serão também afirmações indemonstráveis, mas na ciência existe a noção de «teoria efectiva» – a química é uma teoria efectiva da física, e a biologia uma teoria efectiva da química – que nos permite reunir um espectro mais amplo da realidade em vez de simplificar o problema, de redefinir o seu contexto. Uma teoria efectiva da educação poder-nos-ia permitir ensinar aos nossos filhos a serem nobres e altruístas, sensíveis e compassivos, não obstante as indeterminações matemáticas e filosóficas intrínsecas.
Prades. Às vezes parece que das experiências sobre os electrões se possa deduzir que é impossível decidir se uma criança deve ou não dar pontapés ao seu cão …
Cadenas. E esta dedução está errada. De facto o electrão é um objecto que sabemos descrever com uma teoria matemática coerente e preditiva, mas uma criança não é um electrão e não posso descrevê-la como a soma de todos os seus electrões, como sonhava Laplace. E por isso tenho necessidade de uma teoria efectiva. E assim como as crianças e os cães estão bastante distantes no âmbito da razão dos electrões, é melhor deixar-se guiar por outros princípios e não pela incerteza quântica, no momento de construí-la. Talvez nos sirvam o senso comum e a ética comum.
Prades. Temos uma necessidade urgente de uma boa teoria dos usos da razão. Ángel, não sei se tens filhos, na minha opinião não quererás educá-los na pura irracionalidade espontânea. E se se quer educá-los de forma razoável, não se deverá considerá-los como se fossem electrões, por exemplo. É propriamente nesta ordem de coisas que me parece mais importante construir pontes. E propriamente nos tempos como os actuais, que curiosamente não tratam muito bem a razão.

Parece um paradoxo. Segue-se tanto a ciência, e todavia a ciência, que se presume ser baseada sobre a razão, deixa de lado a razão quando não se encontra no interior do âmbito científico.
Prades.
Na minha opinião este é um dos campos preliminares a fim de que o diálogo ciência-teologia ou ciência-religião não se torne um diálogo entre surdos. Se fosse assim, tornaríamos a criar guetos, não étnicos mas intelectuais. E por isso esta lógica das paralelas não nos convém. Porquê? Porque existe um espaço de interesse comum para cada ser humano, que é o de exortar à vida boa. Este é um interesse partilhado pela comunidade científica, e também pela comunidade social e pela comunidade religiosa.
Cadenas. Creio que um diálogo sincero e corajoso possa ser muito enriquecedor. E creio que ambas as partes devam ser sinceras e corajosas. O intelectual religioso deve considerar com atenção as informações que lhe dá a ciência, por exemplo os dados que afirmam que somos pouco diferentes – geneticamente falando – dos nossos primos, os grandes símios, e, para ser breve, de todos os outros mamíferos. A ideia do homem como centro da criação, como ser especial, deve ser valorizada não só no contexto de um universo gigantesco no qual parece que ocupamos uma posição insignificante, mas naquele de um planeta ao qual chegámos em último lugar, um produto ulterior, poder-se-ia dizer, do caminho cego da evolução. Mas o cientista deve parar para pensar que não tem respostas válidas a interrogações elementares, como se é lícito comer as crianças. A ética pertence ao âmbito da razão, e todavia não é fácil encará-la de uma perspectiva e com uma metodologia científica. E neste ponto pode-se optar pelo relativismo e afirmar que todas as opções morais se equivalem – amar os teus filhos ou comê-los à refeição, por exemplo –, ou então pode-se sustentar que existe uma verdade ética à qual podemos aceder utilizando a razão. Em tal âmbito, os instrumentos da filosofia e talvez da teologia podem ser mais úteis do que a metodologia científica. No meu caso, estou convencido de que a verdade ética existe, que o amor para com os filhos e os progenitores é uma verdade ética central. Compartilho este ponto de vista com um teólogo cristão como Javier. E por isso interessa-me e enriquece-me dialogar com ele.

É necessário tratar todas as religiões do mesmo modo?
Prades.
Creio que se devem tratar com respeito, no sentido em que devem ser respeitadas todas as pessoas, e não se pode "demonizar" ninguém a priori, sempre que por sua vez respeitem uma visão social e cultural compartilhada. Mas creio também que dar um juízo de valor sobre as diversas posições seja legítimo e coerente com aquilo que estamos a dizer. Se me dizes que a tua religião consiste em fazer sacrifícios humanos… deverei poder dizer, à luz da condição humana compartilhada, que isso é um atentado à dignidade humana… ou não? Porque depois, quando se trata da mutilação genital, não se admite o relativismo cultural. Ou sim?

Não, não se admite.
Prades.
Ou quando se fala da exploração sexual das crianças em certos países da Ásia, não permitimos que se diga que existe uma predisposição intrínseca naquela cultura, e que por conseguinte que aquilo que nós consideramos um abuso de uma criança não é uma aberração, porque nós somos ocidentais e não compreendemos que entre a criança e o adulto, naquela cultura, para continuar com o mesmo exemplo, existe uma correlação interna que faz que isto não seja um crime, se bem que a nós o pareça. Revoltamo-nos. E não aceitamos que a definição de genocídio, para dar um outro exemplo, não seja universal.

Há uma um subestimar do cristianismo da parte da sociedade actual?
Prades.
Neste período é a religião mais perseguida com violência. Não no Ocidente, mas no resto do mundo, onde todos os anos dezenas de milhares de pessoas morrem pelo simples facto de serem cristãs. É verdadeiramente impressionante. Nós europeus vivemos o conflito de sermos herdeiros do cristianismo e ao mesmo tempo o mal-estar nos seus confrontos, porque nos custa muito a nível institucional e cultural dizer uma palavra a favor, não digo do cristão como eu – não me sinto perseguido de um modo sangrento -, mas do cristão do Paquistão, Iraque, Egipto ou Nigéria … Hoje o cristianismo não é fonte de intolerância, pelo contrário, é um factor de educação para a paz.
Cadenas. Estou de acordo com o Javier pelo facto de que nós europeus sabemos ser herdeiros do cristianismo, e sendo-o sentimos um mal-estar. Em Espanha, concordamos sobre a nossa herança católica e ao mesmo tempo renegamo-la. É preciso não esquecer que a Igreja católica é um sistema humano e também os seus membros são humanos. Todos conhecemos as limitações que isso implica e filmes fundamentais como O caso Spotlight são bem claros. Todavia, tal como não negamos a democracia apesar dos seus numerosos problemas, não é necessário apressarmo-nos a negar a nossa herança cristã por causa dos problemas que derivam da estrutura e dos limites da Igreja católica. Um agnóstico como eu sente-se razoavelmente confortável no sistema de valores éticos e estéticos judaico-cristão-greco-romano, mesmo que não o subscreva incondicionalmente nem o considere exclusivo. Mas é um bom ponto de referência.

Em todas as épocas há temas tabú, de que não se podem falar.
Cadenas.
Exactamente. Abandonei a prática activa da religião católica há onze ou doze anos. E por várias razões. Na missa entediava-me e era incapaz de acreditar na realidade dos sacramentos, assim deixei de praticar e, como se diz, não pensei mais nisso. Trinta anos depois publico o meu primeiro livro de contos, La agonía de las libélulas, e um amigo meu, professor universitário, após ter feito uma crítica muito preciosa anota: este livro de contos podia ter sido escrito por um sacerdote. Não o diz em sentido depreciativo. Limita-se a sublinhar que os contos daquele livro revindicam uma série de princípios éticos, um conjunto de valores, uma posição existencial que reflecte a minha educação cristã ou, se preferir, judaico-cristã-greco-romana. Descobrir em mim o sacerdote que me escreve os contos não me fez deixar de ser agnóstico. Mas devo reconhecer que me dou bem com isso.

Está à procura de alguma coisa...
Cadenas.
Quem não está?
Prades. Nos episódios citados por Juanjo está toda a grandeza e o risco do método cristão. O cristianismo diz que Deus se fez homem, e é uma afirmação de uma audácia fora do comum. Trata-se de uma pretensão inaudita sobre quem e sobre como é o divino, que pôde ser inaceitável no passado e também hoje. Afirma-se nada menos do que a presença do divino, ou seja, daquilo que é mais longínquo e indecifrável para o homem, fez-se carne e pode-se encontrar facilmente, de modo quase familiar. Redescobri Deus porque encontrei pessoas em que reconheci uma diferença, um plus de humanidade, uma qualidade diferente, que me fazia desejar este modo de viver. É como se visse uma diferença de potencial. E dizes: aqui há qualquer coisa mais, qualquer coisa que me atrai. Voltei ao cristianismo de um modo consciente, por atracção. E isto dá um valor extraordinário ao testemunho, ao “mediador humano”. É como a gratidão que experimentas para com as pessoas que para ti foram grandes mestres, ou pelo pai e pela mãe. São experiências impagáveis, porque só através de relações do género se adquirem coisas essenciais para a vida. Por isso, quando tais relações se quebram, o dano é muito grave. Mas é esta a grandeza, e o limite, do método cristão: Deus quis apostar na liberdade humana através da liberdade dos outros homens. A partir de Nietzsche o cristianismo é apresentado como anti liberdade. Penso que é o oposto; se o próprio Deus apostou na nossa liberdade…
Cadenas. Pode ser uma blasfémia, mas a minha revisão dos princípios cristãos ultimamente leva-me não tanto à ideia que Deus se fez homem, mas à possibilidade de que o homem com o tempo se possa fazer Deus.
Prades. Se quiseres posso dar-te uma variante perfeitamente ortodoxa … que é o resultado da encarnação. Quando se fala da divinização do homem, a questão é se se auto diviniza ou se recebe a divinização de um outro. No fundo, que o homem, a parte nobre da criação, possa ser divinizado não é assim tão flagrante. O facto surpreendente – não para ser contrário ao dogma, mas contra a razão – é que o homem, que sabe não ser Deus, tenha a presunção de se fazer Deus. Se não era Deus, nunca será Deus. E se era Deus, era-o desde sempre.

Existe o transhumanismo. Até que ponto posso divinizar através da tecnologia? A manipulação genética.
Prades.
São fronteiras recentes e não as conheço bem, mas são muito provocatórias. Ao ouvir algumas explicações sobre as imensas possibilidades da tecnologia não deixa de perceber-se uma aspiração faustiana. Quando uma pessoa tem poder, neste caso técnico-científico, imagina uma melhor condição para si. Um poder para melhorar-se, para salvar-se. Porque nos sucedem estas coisas? Não me parece em primeiro lugar uma ameaça à religião, mas uma mutação da pergunta última sobre o nosso destino. Quer dizer, chegaremos a salvarmo-nos sozinhos…seremos Deus. E porque é que temos que ter na cabeça esta perspectiva? Poderíamos limitarmo-nos a dizer que foi feita esta ou aquela descoberta científica…mas imediatamente dizemos: esta é «a» alternativa. E finalmente não necessitamos de Deus. Este Deus tão invasivo que restringia os âmbitos da liberdade social…Pois bem, pouco a pouco foi sendo tirado espaço à influência social de Deus. Que lhe resta? É como privar Deus da sua divindade. Mas podemos inverter a pergunta. É assombroso que, cada vez que se progride em algum destes âmbitos, se ligue imediatamente a uma conquista de uma humanidade ou de uma transhumanidade ou do que mais virá – e não sei o que virá – face a uma curiosamente sentida exigência de salvação, de divinização ou de endeusamento…chamem-na como quiserem. Porquê? A mim faz-me pensar.
Cadenas. Há uma boa similitude que pode ajudar a explicar isto e que consiste em considerar qual é a diferença possível entre as duas espécies mais inteligentes do planeta: a espécie mais inteligente do planeta, como é sabido, e como sabem todos aqueles que leram o livro À Boleia pela Galáxia (The Hitchhiker's Guide to the Galaxy) é a dos golfinhos. A segunda somos nós humanos. Considerem por um momento que esta afirmação é verdadeira. Depois de tudo, os golfinhos têm um cérebro enorme com muitas circunvoluções. Pensem: por que é que os golfinhos que são mais inteligentes do que nós – admitamo-lo por um momento – não invadiram de forma tão global o planeta como nós o fizemos, que nos autodefinimos sapiens? Pode ser que o tipo de inteligência dos golfinhos seja tal que, sendo muito inteligentes, basta-lhes gozar da sua tranquila existência no mar, da filosofia aquática, da matemática e da física dos ultrassons? Porque a inteligência não implica necessariamente desejo de mudança, desejo de manipulação, desejo de transformação, desejo, no fundo, de determinar. Tudo isto parece ser uma outra característica adicional e não necessariamente associada à inteligência. Nós sapiens temos esta vontade de transformar e manipular tudo, de perceber tudo, que pelo caminho nos levou a destruir muito, incluindo a maioria das outras espécies do planeta que tiveram o azar de coabitar connosco. É uma característica especial que talvez não seja senão loucura colectiva e que qualquer dia nos leva ao autoextermínio. Ou talvez leve a transcendermo-nos, a inventar algo de novo, diferente. Talvez melhor? Sem dúvida mais poderoso. Podemos estar a caminho de criar um novo Deus e como nos avisa Harari no seu livro Uma Breve História da Humanidade - Sapiens, livro imperdível, existe alguma coisa mais perigosa do que um Deus que não sabe o que quer? Eu disse-vos que me iria tornar blasfemo
Prades. Isso obriga-nos a repensar o que significa a inteligência e o que significa este desejo de perceber tudo e como se articula a dimensão racional com as demais aspirações ao bem-estar definitivo, à segurança, ao ter ou não ter necessidade de um Deus. Porque é que surge isto? Porque perdura – como diria um pensador alemão – este rumor imortal, esta inquietude jamais extinta?

O comportamento religioso é um fenómeno exclusivamente humano, de que não se encontrou um equivalente nas outras espécies animais. Considera a religião uma vantagem para a evolução?
Cadenas.
Não necessariamente. Os golfinhos não são religiosos – tanto quanto sabemos – e para eles está bastante bem. As bactérias não são religiosas – disto estamos bastante certos – e correu-lhes bem. É um elemento a tomar em consideração, mas não necessariamente uma explicação. Pode ser que a afinidade com a religião seja uma vantagem para evolução e pode ser que seja um efeito colateral, algo que surgiu quando o nosso cérebro se adaptou a lançar pedras com boa pontaria. Talvez a vantagem para a evolução tenha sido a capacidade de fazer pontaria, de prever onde estava a presa quando lançávamos o projétil e a partir desta vantagem a nossa máquina de pensar desenvolveu a capacidade de imaginar, que não é senão uma versão aumentada da capacidade de prever onde estaria o antílope ou o leão. Mas a nossa imaginação é como uma caixa de Pandora, quando a abrimos saem todos os anjos e todos os demónios. E creio que Deus é uma das nossas imaginações, mas creio também que, precisamente porque somos capazes de imaginá-lo, podemos criá-lo.: «E o homem criou Deus à sua imagem e semelhança…». Perigoso, como disse. Mas interessante.
Prades. Pode ser uma explicação, como diz Juanjo de qualquer coisa que em todo o caso seria uma vantagem para a evolução…Segundo um estudo científico (vês, também eu faço apelo à aura da ciência…) as monjas de clausura norte-americanas têm uma esperança de vida superior à das mulheres americanas e gozam de melhor qualidade de vida, mas não creio que alguma se tenha querido tornar monja de clausura pensando que assim viveria tranquilamente até aos noventa anos. Quando Juanjo fala dos seus filhos fá-lo de um modo bastante comovente; é uma das suas características mais convincentes. Quando amas os teus filhos sabes que se dás a mão ao teu filho nesse movimento entram em jogo dezenas de níveis de explicação efectiva: motores, neuronais, biológicos. Todos necessários. Quando pegas ao colo num dos teus filhos…esta noite quando fores para casa, pega-lhe ao colo e dá-lhe um beijo. Consciente de todos estes níveis de implicação e consciente de que certas partes do cérebro se activam de forma concreta, tu dizes: isto é tudo? A ordem neurobiológica explica-me completamente a relação com o meu filho ou explica-me a mim a relação com o meu pai ou a relação pela qual reconheço que Deus existe ao ponto de Lhe oferecer a minha vida? Se graças a esta relação vou viver até aos noventa anos num contexto humano que me tornará mais positivo, ainda melhor, mas a explicação da realidade não será ainda exaustiva. Devemos chegar até ao último nível da explicação das nossas vidas.

Muitos neurocientistas acreditam que a consciência não é senão uma ilusão. Pode dizer-se que se uma IA [Inteligência Artificial] supera o teste de Turing tem uma consciência no mesmo sentido em que nós humanos a temos?
Cadenas.
Este é um tema que me preocupa e que tratei num conto que se chama El dilema de Turing, publicado pela editora Nextdoor. Em todo o caso, afirmar que a consciência é apenas uma ilusão parece-me equivalente a afirmar que a consciência é obra de Deus. Trata-se em ambos os casos de enunciados não demonstráveis, pelo menos por enquanto. A natureza da consciência é uma das incógnitas mais profundas do conhecimento e até há pouco tempo muito poucos cientistas ousavam partir à sua descoberta e estudá-la. Mas os tempos mudaram e perceber o cérebro (e essa coisa a que chamamos mente) é um dos maiores desafios intelectuais e científicos do próximo século. Mas não podemos esquecer que no cérebro há cem mil milhões de neurónios e desenvolver uma teoria efectiva dessa máquina prodigiosa não vai ser fácil, nem rápido. Antes de explicar a consciência temos que entender a linguagem, um fenómeno absolutamente fascinante, e que tanto quanto parece nenhuma outra espécie do planeta possui, incluindo os golfinhos, pelo menos com o nosso nível de complexidade. É talvez a linguagem que nos permite criar um mundo imaginário que se sobrepõe ao mundo real. É talvez a linguagem que nos permite imaginar Deus. Mas isto não garante que exista. Pode perfeitamente ser uma imaginação colectiva como o dinheiro ou a literatura. Somos uma espécie que faz da mentira uma arte.

Prades. Bem, uma mentira…
Cadenas. São coisas que inventámos.

Ficção?
Cadenas.
Ficção é uma definição mais elegante, mas estou a contar-te uma história, uma fantasia. Imagina uma espécie que seja absolutamente realista na sua descricção da realidade, que não compreenda a ideia de ficção. Lembra-te que é uma característica prodigiosa da mente humana. Poderias imaginar uma inteligência muito superior à nossa do ponto de vista computacional, do ponto de vista algorítmico, mas que permaneceria estática ouvindo as nossas histórias e pensaria: estes aqui não fazem mais nada que contar mentiras à vez! Passam a vida a repetir-se uns aos outros coisas que não aconteceram, que inventaram. O que é que prentendem fazer? A capacidadade da mente humana de imaginar, de imaginar colectivamente, parece-me prodigiosa.

Dirias tambem que o teste de Turing mentiria com prazer...
Cadenas.
Com o teste de Turing sucede como com o Ulisses do Joyce: todos falavam mas nenhum o disse. O Turing concebe o teste como imitation game. O Turing dá-se conta da complexidade daquilo que chamamos consciência, e decide que tudo aquilo que o teste requer é uma imitação coerente: dado que não posso demonstrar que uma máquina seja consciente, basta que esta máquina imite uma pessoa para que eu não possa decidir, depois de uma conversão indefinidamente longa e inquiridora, que não o é. O teste de Turing é, em certo modo, um exemplo de confiança. No meu conto mais recente decido invertê-lo e perguntar-me que teste de Turing deveremos nós superar, seres humanos, para que uma inteligência superior à nossa nos possa aceitar. Esta imposição tem certamente conotações interessantes do ponto de vista religioso. Suponham que assumimos a existência de Deus. Mas porque é que Deus deveria preocupar-se connosco? Não seria muito mais racional que nos ignorasse, como nós ignoramos os sonhos ou ambições das térmites ou os programas, mais bem definidos, dos ratos?

A Igreja, e os partidos políticos que a representam, estão em lítigio pela escola privada em nome da liberdade de ensino. Acreditam que se possa adquir a fé como resultado de um programa educativo? E nas escolas islâmicas?
Prades.
Não acredito que hoje existam partidos que representam a Igreja... Digamos que alguns respeitam um pouco o espaço da sua actividade social, cultural ou caritativa... Prefiro remeter-me à experiência. Consta-me que muitas pessoas tenham redescoberto o cristianismo graças aos seus professores de religião. Em geral, aceita-se que a religião esteja presente na escola pelo menos nos seus aspectos históricos e culturais, e isto não tira a possibilidade de ter num professor de religião um testemunho que te faça descobrir o valor da vida a partir do cristianismo. E isto pode suceder também com o professor de filosofia ou com o de matemática... Penso que, antes de tirar a religião da escola, deveríamos interrogar-nos sobre a ligação desta decisão com as outras questões seríssimas que nos estamos a pôr sobre o futuro da nossa sociedade, e sobre os quais estamos a falar agora. Quanto às outras religiões, dever-se-ia colocar no quadro das grandes categorias que consideramos irrenunciáveis para a cultura humana: a liberdade, a autodeterminação, a razão, a segurança jurídica pela partilha destes bens, a capacidade de acolher o diferente…

Como contribui a religião para a instrução universitária? Limita o conhecimento em alguma matéria?
Prades.
Se de algo nasceram as universidades, foi de uma tradição cultural marcada por uma religião, a cristã. Hoje este dado pode ser incómodo. Em Bolonha, em Paris, em Salamanca, em Coimbra, elaborava-se o saber nesta grande matriz cristã e europeia que passa pelo Trivium e o Quadrivium até chegar às grandes disputas medievais e do renascimento… Há um passado que diz num modo sensato que a universidade e a religião são compatíveis. Se se quer tirar Oxford do ranking das universidades, tiremo-la. E então decide-se que Oxford e Cambridge não podem fazer parte do mundo universitário porque até ontem tinham uma confissão. Todavia, ter um um passado glorioso é inútil se não se vive o presente. A idiossincrasia do mundo universitário é a mesma do mundo religioso, mas isto devia levar-nos a corrigir os abusos, e não a pôr em discussão os factos. A religião é um limite ao conhecimento universitário, ou permite integrar o conhecimento no complexo das exigências éticas do diálogo da razão com a liberdade? Por exemplo, qual é a relação do saber com o poder? Estamos a deixar o saber nas mãos do poder? Porque depois vamo-nos lamentar da hegemonia das multinacionais, dos ricos, dos poderosos. Se não temos uma base social com uma forte motivação ética e ideal, o progresso da tecnociência estará nas mãos sempre de poucas pessoas, que poderão sempre usá-la para dominar muitas pessoas.
Cadenas. Já é assim.
Prades. Na genética, por exemplo… a religião é um limite? Ou é uma condição da possibilidade que fique um saber aberto ao serviço de todos? Não é estranho que Habermas pedisse aquilo que apelidou de uma tradução cognitiva das implicações da visão religiosa do homem como «imagem de Deus» nos grandes debates da bioética. Se obtemos um avanço técnico – e isto dizia-o há algum tempo C. S. Lewis, quando não se podia nem sequer imaginar aquilo que se teria conseguido desenvolver no âmbito da neurociência, por exemplo –, será sempre um avanço controlado por pouquíssimas pessoas. Se enfraquecemos as instâncias da capacidade crítica em relação à tecnociência, não virá bem para ninguém.

Universidade e religião devem estar ligadas?
Cadenas.
O Javier falou de Oxford e Cambridge, eu faço referência a Harvard. Em Harvard, existe um curso de teologia e há uma escola de divinity. A universidade é o lugar no qual deve estar contido todo o conhecimento, e a universidade nutre-se de diálogo. Se não se dialoga na universidade, então onde é que se dialoga? Se a universidade não é livre, não é independente, iconoclasta, anticonformista, estamos perdidos. A ditar as regras do jogo estão os poderosos. Também a ciência de base está dominada pelo poder, contrariamente ao que às vezes ingenuamente queremos acreditar. Porque é que durante cinquenta anos se estudou a física das partículas? É a ciência de base mais elementar, mais inútil, entre aspas. Mas a criação da bomba atómica foi como um cheque em branco para os físicos nucleares e das partículas por mais de meio século. De facto, este crédito começa a exaurir-se e às nossas associações lamentamo-nos que nos fechem as torneiras: ao que parece, o bosão de Higgs e as oscilações dos neutrinos não são suficientes para o grupo técnico-militar que paga a nossa actividade. A ciência, ainda que isso nos custe, não é inocente. Transformar a nossa universidade numa reserva exclusiva de cientistas seria um erro, creio. Creio que são necessários os departamentos de divinity e também os de escrita criativa, os de teatro lírico, de latim e de ética liberal. De tal modo, o aborrecido debate entre ensino da religião ou educação para a cidadania parece-me muito estéril. Porque não inserir um pouco de ambas e, en passant, também de xadrez. De que é que temos medo?
Prades. Independentemente daquilo de que falarmos, quais são os argumentos de fundo para nos confrontarmos? Realidade e razão. É ali que todos nos medimos, crentes e não crentes: realidade e religião. Para as religiões e para o cristianismo, no ocidente pós-secular e pós-cristão, são as duas grandes categorias sobre as quais confrontar-se. Deveríamos juntar a liberdade. Devemos compreender melhor a realidade, devemos construir uma sociedade capaz de se confrontar por exemplo com as migrações em massa. Porque, quando se apresenta o problema dos migrantes, não sabemos bem o que fazer. Diante de tarefas desta dimensão, não vemos a responsabilidade que temos entre todos? E sobre o que é que nos poderemos unir se temos pontos de vista diferentes? Creio que este ponto de união possa ser a condição humana comum, caracterizada pela razão, a liberdade, a linguagem, as aspirações a uma vida boa, o significado daquilo que somos… Tantas coisas, como aquelas que dissemos. Mas tais questões, nas quais emerge uma ligação entre razão, realidade e religião, pertencem ao âmbito público e é aí que se devem discutir. Creio que se tenha exaurido o modelo que leva a religião a fechar-se no privado. Esse modelo deu tudo o que podia dar. Nos Estados Unidos, há anos que falam de religiões públicas no mundo moderno, para citar o título de um livro famoso. Percebe-se que a fractura entre privado e público é inadequada para o fenómeno religioso, porque este é por definição um fenómeno comunitário e incide na vida social. Este é só um entre tantos elementos que devemos continuar a enfrentar…

(©JotDown, agradecemos por nos permitirem a publicação)