Responder à vocação
O João trabalhava numa construtora em Luanda e a Matilde numa consultora em Lisboa. Mas a empresa tinha vários projectos em Angola e por isso conseguia ir a Luanda com certa frequência. «Ela era a única pessoa que chegava contente ao aeroporto!»O jantar é tortilha. Enquanto a Matilde bate os ovos eu vou ajustando o ecrã e a webcam. Já com os ingredientes na frigideira, mostra-me a casa nova para onde se acabaram de mudar, em Luanda. Do lado de cá, em Lisboa, e com pixels q.b., vou vendo a cozinha, a sala e o corredor que dá para os quartos (estes ficam para outro skype, porque o pequeno Henrique está a largar a chucha e acabou de adormecer).
A Matilde e o João licenciaram-se em engenharia civil. A crise que fez estagnar o mercado da construção em Portugal levou-os, pouco depois, até Angola. Ainda enquanto namoravam, o João começou a trabalhar numa construtora em Luanda e a Matilde numa consultora em Lisboa. «Mas - explica – a minha empresa tinha vários projectos em Angola e, por isso, conseguia ir a Luanda com alguma frequência». O João espeta a cabeça no ecrã para dizer que ela era a única pessoa que chegava contente ao aeroporto de Luanda!... «Claro, ia ter com ele!».
Casaram no Verão de 2012 e foram viver para Luanda, uma cidade onde a classe média é praticamente inexistente e onde a precariedade da vida da maioria da população convive com uma opulência extravagante. A decisão de começar uma família num lugar assim não foi pesada na balança dos prós e contras, mas nasceu do desejo de responder à vocação. «Queríamos estar juntos, não interessava onde! O João tinha trabalho em Angola, portanto era ali que eu queria ficar. Foi difícil, mas não nos preocupávamos minimamente com as dificuldades que nos esperavam».
A vida em Luanda. A relação com o povo angolano não é pacífica. «Nós somos bastantes diferentes dos angolanos, há uma cultura estruturalmente diferente que nos distingue e isto no dia-a-dia nem sempre é fácil. Mas o que notamos é que as pessoas aqui são felizes, vivem com pouco mas são felizes». Como a Luísa, funcionária da empresa onde ambos trabalhavam até há pouco tempo: «Ela vive com a família toda (6 pessoas) numa casa que só têm uma sala e um quarto e não têm uma casa-de-banho nem cozinha só para eles; e é feliz, nunca se queixa! Eu sei como ela vive, por isso sei que não está a fingir!».
Também para eles o conforto de terem uma casa só para os dois teve de ser pacientemente conquistado. Quando casaram, e durante meses, viveram em casas separadas (das respectivas empresas) e só se viam ao fim-de-semana. De resto, o dia-a-dia em Luanda não é isento de dificuldades: desde as banais faltas de electricidade à corrupção tão comum que se torna difícil de reconhecer, até ao caos do trânsito ou à falta de segurança nas ruas.
Não obstante, o juízo é claro, «a vida aqui é mais dura, não tens o conforto que tens em Portugal. Mas o que nós temos percebido é que estas dificuldades nos têm ajudado a viver com mais intensidade o essencial, precisamente porque não temos tantas distracções».
A companhia. O desejo de viver a vida com aquela intensidade já o tinham descoberto em Lisboa. A Matilde, aos 14 anos, «quando encontrei amigos que não tinham vergonha de Cristo»; o João, no Técnico, através de um amigo, tão teimoso quanto paciente, que não descansou enquanto não o levou a passar férias com ele – as férias do CLU. Agora em Angola, «uma das coisas que ficou clara para nós desde que chegámos é que aqui não podes escolher com quem estás, não podes de repente achar que vais para o colo da tua mãe ou vais ter com outros amigos porque não te apetece estar com estes. Aqui estás com quem Deus põe no teu caminho, mesmo. Porque não há mais ninguém!». Por isso, são fiéis à Escola de Comunidade semanal, à qual vão outros portugueses, Italianos e recentemente, também um casal angolano.
A missão. Uma fidelidade que continua a dar frutos – a alegria com que contam a sua vida aos amigos e à família quando vêm a Portugal não dá muita margem para dúvidas – numa dimensão missionária que não poderiam prever… Há uns meses o Padre Adriano Ukwatchali, que lidera a pastoral universitária da Universidade Católica de Benguela, pediu à Matilde, ao Enrico e à Rosarinho que fossem apresentar o movimento aos seus estudantes porque, dizia ele, «os universitários de Benguela têm de conhecer o CL e o modo como se vive a relação com a universidade, o mundo do trabalho, a família!»
O jantar está pronto e o João já está com fome. Despedimo-nos entre o desenformar da tortilha e o acabar de pôr a mesa. A Matilde conclui serenamente: «claro que gostávamos de voltar, mas para já não há hipótese. E a verdade é que, até agora, e sobretudo nos momentos em que estamos mais inquietos, Deus tem-nos dado sinais para ficar.»
Não deixo de reparar que, do lado de lá dos meus pixels mal temperados, a Matilde continua a falar com a cara e o entusiasmo de quem acabou de saltar da cama para um novo dia. Com o mesmo olhar escancarado com que me convidou pela primeira vez para umas férias dos liceus – há dez anos.