BOAS NOTÍCIAS DE DADAAB
É o maior campo de refugiados do mundo. Com um buraco negro: o futuro. Contudo, Maria Leitão educa os jovens a serem realizadores. E aqui, onde «a esperança humana não existe», acontece qualquer coisa«Da primeira vez não consegui dormir durante dias. Encheram-me de perguntas e eu não tinha uma resposta pronta. Ficava às voltas na cama. E perguntava-me: o que é para eles a esperança? E para mim?» Eles são os refugiados de Dadaab, Quénia: quatrocentos mil, apinhados no maior campo de acolhimento do mundo, a uma hora de carro da fronteira com a Somália. Ela é Maria Leitão, chamada Bebé, 49 anos, portuguesa, que chegou há pouco mais dum ano. Trabalha para a FilmAid, uma ONG americana. Já viveu em Timor-Leste e a seguir no Haiti, conhece sofrimentos e grandezas de lugares onde a necessidade é tudo. Mas não estava à espera de encontrar no deserto uma cidade suspensa no tempo, sem raízes e sem amanhã.
Filas de tendas e barracas montadas desde 1990 pela ACNUR, a Agência da ONU para os refugiados. Areia. Calor. Uma vedação à volta. «Vêm de toda a África: Sudão, Burundi, Ruanda, Congo, Etiópia… Tudo países onde há problemas políticos ou catástrofes naturais, como a seca». Há zés-ninguém e licenciados em Latim, bandos criminosos e mães de família. «Há quem tenha nascido lá e está com vinte anos. Outros acabaram de entrar». Mas para todos, presentemente, a perspectiva é a mesma: ficar muito tempo, talvez para sempre. Porque dos campos nunca mais se sai. Desde que aos problemas humanitários se veio juntar o risco do terrorismo, dos Shabaab somalis e dos massacres como o da universidade de Garissa, a apenas cento e cinquenta quilómetros para oeste, o Quénia blindou tudo. Não só a Dadaab, mas também Kukuma, o outro campo mais abaixo, a caminho do Sudão, 180 mil habitantes e o mesmo buraco negro: o futuro.
Até ao Outono passado alguns dos refugiados podiam entrar no Quénia. Há quem tenha arranjado trabalho e constituído família. Depois o Governo disse «todos para trás». Tiveram de deixar tudo de repente e voltar para as barracas. «Pelo menos vinte mil pessoas, dizem. Mas aqui os números balançam sempre». Balançam também os dos repatriados na Somália, após o acordo de 2013: fala-se em 80-100 mil, mas ninguém acredita.
No terreno trabalham umas setenta ONGs. Levam assistência, alimentos, educação. A FilmAid fá-lo com instrumentos invulgares: vídeos, principalmente. E revistas. «Usamo-los para informar, educar ou simplesmente para entreter», conta a Bebé do seu escritório em Nairobi. Clips que ensinam como lavar os alimentos, como tratar certas doenças, como evitar a violência. Para ver em pequenos grupos, para serem debatidos. Ou nos largos, num ecrã gigante montado sobre uma pick-up e onde os espectadores se confundem com quem pensou e rodou o filme. Ou seja, também refugiados. Porque a novidade está na origem. A FilmAid, em primeiro lugar, ensina. Jornalismo e video production. «Damos aulas de realização, som, iluminação», diz a Bebé: «Os jovens aprendem storytelling e a filmar documentários». Têm inclusivamente um jornal: The Refugee. «Entre os dois campos, damos trabalho a uma centena de pessoas. É uma coisa boa. Sentem-se valorizadas, recebem um pequeno salário, estão ocupadas oito horas por dia». E aprendem profissões que gostariam de exercer fora. Se pudessem.
A lei da selva. É o sonho de Smart, que aparece num vídeo para falar de si: «Ser refugiado não é uma opção minha. Mas também não é desculpa para não alcançar algum objectivo na vida». Ou de Farida, que gostava de ser realizador. E Bithu, Abdirashid, Ojullu… «Os diálogos com eles consomem-te, sempre. “Gostava de ir para Hollywood”, “Quero ser jornalista”. Mas que perspectivas têm? Estão no auge da vida: ter vinte anos aqui é como ter 35 na Europa. Mas não têm esperança. E tu não podes dar respostas falsas. Nem a eles, nem a ti própria. Até podes dizer “coragem, o futuro vai ser melhor”, mas sabes que não é verdade, a não ser por milagre. A esperança humana, aqui, não existe. Aqui perdi o sono, no princípio». E depois? «Vieram-me à memória os presos de Pádua. A única possibilidade, para eles, é que a esperança seja presente agora, numa relação humana pela qual todas as coisas presentes são uma Presença. E que se possa estender a tudo. A única resposta é o cristianismo. Mas isto não se pode dizer assim, à pressa; não se pode saltar logo para a conclusão. É preciso ir ao fundo das palavras cristãs. É preciso vê-las acontecer».
Ela vê-as. Constantemente. Coisas pequenas, mas reais. Relações em que «desponta um horizonte que antes não existia. E quer tu quer o outro o reconhecem». Exemplos? Bebé pensa uns segundos. «Olha, em determinadas situações, a maldade do homem torna-se maior», suspira. «Nos campos há gente que pede favores sexuais às raparigas a troco de um emprego. Tive de fazer uma guerra para os expulsar. Mas assim conheci a Afmahani, uma rapariga muçulmana. Ela conta-me e eu digo-lhe: vou fazer tudo para que possas viver com dignidade. Ela: “Porquê? Entre nós cada um trata de si, é a lei da selva”. E eu: “Porque tu és valiosa. Infinita”». Ou o diálogo com Geffe, há uns dias: «Tens marido? Filhos? Não? Porque é que não te casas? Eu: porque Deus me deu muito e eu sou tão feliz que quero dar-lhe tudo a Ele. Ele olhou para mim e disse: então és católica. Só um católico pode falar assim».
Ou, ainda, «aquele dia em que entrei na aula durante um lição. Eu não ensino, trato do backoffice: fazer a máquina funcionar. Mas naquele dia estavam a falar do curriculum e impressionou-me». O professor: ponham os vossos dados pessoais, as línguas…». Tomei a liberdade de interromper: pessoal, quem está à procura de alguém para contratar, procura uma pessoa especial. Não ponham coisas que dizem pouco. “Desporto preferido: futebol”, não me diz nada. Um milhão de pessoas jogam à bola ou são adeptos. Mas tu, em vez disso, quem és?». Levanta-se uma mão, tímida: «Eu aprendi a tocar a música dos turkana, uma tribo daqui». «Bem, isso fala-me de ti!» Outro: «Eu estudei jornalismo». «Perfeito: isso diz-me que estás fechado aqui dentro mas não te deixas ficar sem fazer nada… Pessoal, reparem que vocês são únicos. Cada um de vocês é. E eu quero conhecer isso». Gerou-se um diálogo impensável. «Sobre o mistério da vida, não apenas sobre os CV».
A escolta. Quem sabe onde vão acabar aqueles currículos. Mas entretanto servem para escrever mais um capítulo da luta entre o futuro e o presente, entre a incógnita do amanhã e a vida que decorre agora. «Parece absurdo ensinar uma profissão a quem nunca poderá exercê-la fora daqui. Mas entretanto, por exemplo, por um vídeo sobre o parto as mulheres percebem que um hospital não é um sítio onde só se vai para morrer. Ou por um sobre a alimentação aprendem a lavar as coisas antes de as comer». Coisas simples mas que no meio do deserto podem fazer a diferença entre saúde e doença, vida e morte. Ou alterar a ideia que se tem de si próprio: «Uma mulher, há dias, disse-me: graças a vocês percebi que as mulheres têm direitos».
Clarões num céu que também por estas bandas é sempre mais encoberto. O campo de Dadaab é agora um ponto de apoio dos terroristas somalis de al-Shabaab: fazem circular armas, recrutam e inclusivamente treinam em certos enclaves entre tendas e barracas. São muitos os que gostariam de encerrar o campo, ou transferi-lo para a Somália. «Mas se o governo decidisse fazê-lo, o Quénia ficaria ainda mais debaixo de fogo», diz a Bebé. Ela nos campos só entra com escolta: «Branca, mulher, cristã, trabalho para uma ONG americana: é um risco demasiado alto». Mas fala-se do terrorismo em Dadaab? «Não, silêncio». Mas muitas ONG estão a fechar os escritórios, enquanto Nairobi também restringiu os vistos. «Há três meses parecia que me iam tirar a licença. Pensei: volto para casa, de novo. Estava angustiada. Depois basta um momento em que reconheces Jesus presente e respiras. Disse para mim: que estúpida, estava à espera do visto mas a espera é por Ele».
Foi sempre assim. Desde que trabalhava numa estação de televisão em Lisboa, a seguir à licenciatura. Oito anos, antes de passar para um editora, depois para um escritório de advogados, depois a oportunidade de Timor Leste, num hospital que devia abrir uma maternidade («tinha sido pedida por João Paulo II à Igreja portuguesa»); e o Haiti, depois do terramoto («era para estar lá uns meses, fiquei dois anos e meio»); e Moçambique, que já estava à espera dela antes de aparecer a FilmAid. Sempre de coração inquieto, nunca tranquila.
Paredes e laços. Um dia, almoçando com alguns dos “seus” refugiados, Bebé fez uma pergunta: de que é que sentem mais falta? «Talvez seja banal, mas a resposta surpreendeu-me. Todos, mas mesmo todos, donde quer que viessem, responderam: da minha casa. Muitos deles vêm de zonas devastadas: miséria e cabanas de barro. Vendo as condições, vivem melhor aqui. Mas sentem falta da casa. Perguntei-me: o que é a casa, então? As paredes ou os laços, as relações, a tua identidade? E para mim, o que é?».
Bebé é Memor Domini. Mas em Nairobi vive sozinha, não tem ainda uma “casa”, irmãs com quem partilhar vida e vocação. «Voltas à noite e não tens ninguém que te pergunte: como estás? Como é que correu?» E a comunidade de CL está quase toda na outra ponta da cidade: «Vejo-os pouco: não me posso deslocar sozinha porque é perigoso, eles não têm carro». A solidão é grande, em resumo. «Mas a presença de Jesus é maior. A casa não são as paredes: é a relação com Ele». A ser vivida nas circunstâncias nuas e cruas. Sem rede. «Aí percebi que Cristo é a minha identidade. A minha casa. Aperceber-me disso foi comovente».
Está programada outra viagem a Kukuma. Geralmente passa lá uma semana a dez dias por mês. É pouco mais tranquilo que Dadaab, mas os perigos existem. Medo? «Nunca corri riscos como me sucede este ano. E acontece-me ter medo, claro. Mas antes nem me passava pela cabeça correr riscos assim. Se o fazes é porque estás mais certa duma relação. E essa relação é a esperança». (@dperillo14)