Desarmados do humano

«Na nossa vida sem Cristo, começamos a temer a liberdade». Antonio Polito lê a crise actual a partir do livro de Julián Carrón: educação, terrorismo, "novos direitos", acolhimento... E explica como o cristianismo pode ajudar ao renascimento da sociedade
Davide Perillo

Em La Bellezza Disarmata ele também aparece. «Eu gostei. Nunca imaginei que o padre Carrón também fosse usar aquele texto». Mas está lá: capítulo 11, “O ponto ardente”. É uma das dezassete intervenções que compõem «o primeiro livro italiano do responsável de CL», recentemente publicado pela Rizzoli: encontros, lições e artigos que retomam a linha dum trabalho de dez anos, desde que o sacerdote espanhol sucedeu a don Giussani, abordando todas as grandes questões com que nos defrontamos hoje: a crise e a Europa, os “novos direitos” e o desafio do terrorismo, o acolhimento e a educação. Como sucede precisamente naquele capítulo, que Antonio Polito, de 59 anos, vice-director do Corriere della Sera, já conhecia, porque nasce da apresentação dum livro seu (Contro i papà) na qual Julián Carrón havia participado em 2013. «Creio que a atenção ao tema educativo é uma das coisas mais importantes que CL tem vindo a oferecer desde há tempos à discussão pública italiana».

Comecemos, então, por aí: a educação. É um fio condutor do livro todo: Carrón coloca-se continuamente a pergunta sobre «como gerar um sujeito» capaz de enfrentar os desafios que vivemos, e é uma questão que diz respeito a todos e não apenas ao jovens...
Exacto. Na sua leitura deste momento histórico, parece-me um ponto crucial. Estamos perante uma crise de valores que tem as suas raízes justamente num grande fracasso educativo. Carrón diz isto claramente. E é uma chave de leitura acutilante. Se aprofundarmos um pouco os factores da crise, mesmo económica e social, em que nos arrastamos há tempo, no fundo encontra-se sempre uma crise de valores.

Carrón, porém, fala também dum «desmoronamento das evidências», duma fragilidade de consciência, de incapacidade de reconhecer a realidade tal como ela é. Em suma, para ele a crise é em primeiro lugar de conhecimento, antes ainda que ética. Que pensa sobre isto?
O que estamos a viver é uma crise do humanismo tout court. Exige repensar os fundamentos. Do homem e das suas interrogações, a que no último século se deram respostas muito parciais. Há toda uma série de sistemas de pensamento e de comportamentos práticos, generalizados na nossa sociedade, que tendem a acantonar o homem. Veja-se o tema da responsabilidade individual, da liberdade de decisão e portanto também de cada um construir a sua história. No fundo, o que foi o século XX? Uma tentativa contínua de eliminar essa responsabilidade e, por conseguinte, de reduzir a liberdade.

Exemplos?
A psicanálise, o próprio marxismo, depois a psicologia evolutiva... Todos reduzem o humano a uma série de factores antecedentes: históricos, económicos ou biológicos. É como se o eu fosse resultado duma luta entre forças obscuras superiores a nós: as nossas escolhas não contam nada. Ora, eu acho que neste ponto o cristianismo pode dar uma grande ajuda a um renascimento da sociedade.

Porquê?
Porque tem dentro um humanismo poderosíssimo: a certeza de que não se pode acantonar o humano. E porque uma fé que se faz cultura recoloca no centro também a liberdade. Coisa de que há grande necessidade. Não por acaso, um dos temas que mais me tocam no livro é precisamente a insistência sobre a liberdade. Na nossa vida sem Cristo – na quotidianidade normal, laica – a liberdade deixou de ser um valor fundamental. Aliás, começamos a ter-lhe medo.

Num capítulo é citado Kafka: «Temem-se a liberdade e a responsabilidade e, portanto, prefere-se sufocar atrás das grades que se construíram...»
É o mesmo que se lê, por exemplo, em Soumission, o romance de Michel Houellebecq que levantou muita discussão. Na minha opinião esse livro identifica um risco real que o Ocidente corre. O islão oferece uma resposta que não requer uma escolha, uma decisão: exige submissão, que é o contrário da liberdade. E, tudo somado, o Ocidente, perante este desafio, parece cansado até da liberdade. Cansado de ter de escolher, decidir. Existe, e de que maneira, o risco duma tendência a aceitar uma sociedade em que a liberdade é menos crucial. Uma proposta como a de Carrón pode ajudar também a reagir a isto.

Também a beleza do título é desarmada precisamente porque se oferece à liberdade. E Carrón – com Giussani – defende que esta proposta só pode passar por um testemunho, por uma vida. O que é que considera fascinante, interessante para si, no cristianismo?
Olhe, dou-lhe um exemplo. A mim, por acaso, interessa-me muito a educação, essa complexa passagem de valores e interrogações que uma geração transmite à outra e acerca da qual temos muito que rever. Mas se faço um discurso sobre isto, quem me escuta hoje em Itália? Os católicos. Se tiver de pensar em gente que arregaça as mangas, que não exige tudo à política porque sabe que a verdadeira mudança vem apenas de baixo, e não de fora, penso na Igreja. Vejo nela uma energia e uma vontade de confrontar-se com o humano que antes não via. Mas talvez seja porque mudaram as minhas perguntas, mais do que a Igreja.

Talvez a Igreja também tenha mudado: não pode dar por adquiridas certas coisas...
Não sei. Eu frequentei o mundo católico quando era rapaz. Digamos que na altura, e estou a falar da Itália dos anos Sessenta, a mensagem que vinha da Igreja era mais quietista. Não necessariamente conservadora, mas qualquer coisa do tipo: «Adiram a esta sociedade, porque é um projecto válido, que se pode partilhar». Hoje noto-lhe muito mais força revolucionária, mais capacidade de desafiar, também de resistência à cultura dominante. Considero isso um grande bem. E acho que nisto o papel de CL, de ’68 em diante, foi importante. Don Giussani foi dos primeiros a apontar esta necessidade de acordar, de resistir aos sistemas de pensamento que tiram a centralidade à pessoa.

No entanto, a insistência no eu, o repetir que o problema é a «geração do sujeito» e a «personalização da fé», mais do que a política, é vista por alguns como uma retirada da sociedade. Qual é a sua opinião?
A mim parece-me mais um regresso às origens. Aos fundamentos. A presença no mundo pode desenvolver-se de muitas maneiras, como as obras. E CL tem até uma tradição importante. Visitei muitas escolas, por exemplo. E vi em acção um mundo fascinante, relevante: os serviços, as empresas sem fins lucrativos. Tenho presente a CdO – e as páginas do livro em que dela se fala são muito interessantes. Mas no momento delicadíssimo em que esta forma de presença provocou – em meu entender inevitavelmente – tensões, porque com o tempo surgiram “os políticos de CL” ou “os empresários de CL” e assim por diante, a resposta de Carrón foi formidável. Diria decisiva para salvar o cerne da presença de CL, que é um movimento eclesial: deve forçosamente partir do sujeito. Tudo o resto é importante, é utilíssimo. Vocês congregam as pessoas, as famílias, e é óptimo. Mas o desafio mais crucial é a dos fundamentos. Tornar a colocar-se as perguntas a que se deram respostas redutoras.

E como se vence o desafio? Por onde recomeçar?
É decisivo encontrar quem reacenda aquilo a que Carrón chama «o ponto ardente». E esse ponto pertence ao sujeito, não é filho de considerações políticas ou sociológicas. Nós reconstruímos o país, ou a Europa, se tocarmos muitos «pontos ardentes», se em muitas pessoas despertar este conceito de humanismo. Se muitos se reapropriarem daquela liberdade que dá acesso à verdade, como ele diz.

Há outro ponto em que o livro insiste muito: o outro é um bem. «Sem o encontro com o outro não poderia emergir nem manter-se vivo um eu que se abra às perguntas fundamentais da vida». É válido para a vida pessoal como para os cenários macroscópicos da política. O que é que muda se se partir daí?
Bem, mas o cristianismo é isso! Quando se discutem as raizes cristãs da Europa às vezes saem cá para fora coisas terríveis: a escassa liberdade religiosa, a religião de Estado, o doutrinamento... Porém as raízes cristãs são isto. A abertura. A capacidade tornar-se melhor através da relação com o outro e de tornar o outro melhor através de ti. Esta é a história da Europa.

Enquanto não católico, como interpreta estes desafios contidos no livro à luz daquilo que o Papa Francisco tem feito?
Não gostaria de cair em simplificações. É claro que estamos dentro do mesmo projecto cultural. Mas nós até aqui temos falado de Ocidente e de Europa, ao passo que eu acho que Francisco está a fazer um esforço mais global. Dirige-se também a povos e pessoas a braços com problemas bem diferentes dos nossos. Eu vejo isto. Posso estar enganado, mas parece-me que Bento XVI era um Papa mais eurocêntrico. Embora deva dizer que a capacidade demonstrada por Francisco, com estas ferramentas culturais, de confrontar-se com a sociedade mais avançada do Ocidente, que é os Estados Unidos, foi surpreendente. Desarmou todos.

A si também?
Um bocadinho, sim. Mas é uma questão mais vasta. Que a Igreja tivesse tanto para dizer ao coração do mundo ocidental é uma demostração de modernidade e de vitalidade que eu não estava à espera. Sobretudo há uns anos, face a todos os discursos sobre a crise da mensagem cristã. Vejo coragem nisto. Como no livro de Carrón.

Quais são os pontos do livro que, pelo contrário, lhe são mais remotos?
Não sei dizer. Até porque o meu esforço, cada vez que me confronto com o cristianismo, é oposto: procuro o que me é próximo, em que me reconheço, mais do que pontos de afastamento. Mas talvez o meu problema com a mensagem cristã – e portanto também com Carrón – esteja no diálogo com Deus. Essa é uma coisa que não sei fazer, que não conheço. E desde que sinto curiosidade pela mensagem de Cristo, é para mim um ponto de contradição.

Porquê?
Pergunto-me se será possível raciocinar em termos culturais sobre a fé sem ter fé. Se se pode constatar a força duma mensagem sem lhe reconhecer a origem. Lá está, talvez seja este o ponto mais remoto. Mas em certo sentido é também o mais próximo. Porque me questiona profundamente. (@dperillo14)