Parte-se para escapar. E porque se espera do lado de lá do desconhecido
O mito de Medeia e o “estrangeiro”. Mais de dois mil anos depois, Corrado Alvaro põe a mesma pergunta: existe um homem feliz?«Parte-se quando se espera fazer aquele encontro que decidirá da nossa vida. Mesmo andando pelas ruas da tua cidade, esperas fazer aquele encontro. Amanhã, talvez. E depois de amanhã. Enquanto isso, a tua sorte está ainda em suspenso».
Foi em Julho de 1949 que Tatiana Pavlova, actriz e realizadora, levou à cena La lunga notte di Medea, obra da qual citamos aqui um dos monólogos. O autor é Corrado Alvaro, escritor da Calábria nascido há 120 anos.
Quando escreve a sua Medeia, Alvaro tem em mente um tema então seguramente menos actual: a chegada dum “bárbaro” a uma terra estrangeira. A história de Medeia, como sabemos, é a duma mulher que emigrou da selvagem Cólquida para Corinto por amor do marido, Jasão. O que Alvaro não podia então saber é quão tremendamente actual ia parecer hoje, com o tema do “estrangeiro” agora na ordem do dia nos noticiários.
Um aprofundamento sobre a questão mostra-se, pois, não apenas útil como também, no mínimo urgente. E talvez precisamente este ponto de vista nos conduza o olhar até à raiz do problema. Escutando a voz de Medeia percebe-se logo que a raiz do problema assenta numa exigência. Uma exigência tão natural como negligenciada: uma exigência de felicidade. Que agita o coração e explode: uma exigência sem a qual não seríamos humanos, e morreríamos como as plantas ou os animais, esmagados sob a própria, e tremenda, circunstância histórica.
Mas Medeia parte animada duma esperança de felicidade mais forte que o medo do desconhecido e da morte. Uma esperança que tem a forma dum encontro: «Eu fiz o meu encontro. Era ele, Jasão. Foi o seu navio Argo. Frágil, no mar deserto e ainda selvagem do meu reino. O canto da tripulação. Apareceu como uma ilha. Julgámo-lo uma ilha. Eu vi-o. Conheci-o. Ele. Era o meu encontro. Todas as estradas, então, já não conduzem ao desconhecido. No fim de toda a estrada está aquilo que tu conheces».
Os desejos não são, como escreve Thomas Mann, «fruto dum conhecimento imperfeito»: são, pelo contrário, o sinal da própria natureza. Tanto mais claro quanto mais explosivo. E o desejo que Medeia tinha de partir marca esta diferença. É verdade, mas porventura parcial, dizer que só se parte fugindo dum perigo: Medeia parte também, e talvez sobretudo, porque vislumbra a possibilidade de que no fim da sua estrada exista uma vida feliz. E é esta exigência que tem no olhar, seguindo o homem que ama até à traição, até destruir e perder tudo: a esperança de que o destino tenha um rosto bom: «Tenho medo! Porque já não tenho ninguém comigo, a não ser o destino».
Não por acaso o mito de Medeia é um mito trágico desde o seu início clássico: porque, chegando ao fundo desta exigência, o homem grego procurava – e não encontrava – uma resposta humana. De facto, o grego Eurípides, iniciador do mito de Medeia, em nome de toda a época pré-cristã faz a sua heroína dizer: «Entre os mortais não existe um homem feliz: / claro, se lhe chega a prosperidade / pode ser mais afortunado / do que outro, mas feliz nunca».
Cerca de dois mil e quinhentos anos depois, Corrado Alvaro apresenta-nos uma versão da Medeia que volta a pôr a mesma questão decisiva: que exista – para quem parte e para quem fica – a possibilidade de ser feliz, que aconteça na existência humana «aquele encontro que decidirá da nossa vida».