A recém-nascida comunidade cristã de Milli, no Chade

COMO NO INÍCIO

Editorial da revista Passos - setembro de 2015

Houve uma fotografia que correu o mundo inteiro há umas semanas. Era Aylan, o menino sírio de três anos que morreu afogado na viagem para o Ocidente e foi recolhido por um polícia turco na praia de Bodrum. É impossível olhar para ela sem se sentir uma dor dentro. Sem que das entranhas saia um grito: porquê? Vimo-la uma e outra vez enquanto se relatava a tragédia da sua família. A questão foi muito discutida na imprensa: se se devia publicar ou não, se seria justo transformar o drama num ícone, assim como outras imagens que marcaram os corações e, portanto, a história. Se de alguma forma teria estado na origem do sobressalto de humanidade e hospitalidade a que estamos a assistir na Europa. E muitas vezes nestas discussões assomou a pergunta: se isto não nos abala, se um caso como este não nos faz tomar consciência de nós e do mundo que arde à nossa volta, o que poderá então fazê-lo? Depois, aos poucos, também este grito se vai atenuando. Inexoravelmente, passa-se a outro assunto. Outros casos, outros dramas. Outras histórias para ler sob o verbete “emergência”, uma palavra já tão desgastada que agora saiu dos títulos dos jornais para se tornar uma epígrafe, daquelas escritas no alto da página que dizem de que assunto se está a falar. Uma “categoria”. Entretanto aquela pergunta fica, intacta. E é a mesma questão que há uns dias Julián Carrón punha a um grupo de responsáveis de CL: «Não é que haja falta de realidade. A realidade provoca-nos continuamente. Se ficamos no nosso torpor é porque falta o eu. Então, o que é que o desperta?»

No Meeting de Rimini falou-se de muitas destas emergências. A Síria e o Médio Oriente, o islão e o diálogo entre as religiões, a Europa, a crise, a educação... Não faltou realidade, de facto. Mas abordou-se também esta interrogação radical. O Papa, na sua mensagem, colocou-a nestes termos: «Diante do torpor da vida, como despertar a consciência?» Como cultivar essa «sã inquietude» que sentimos dentro, essas perguntas que cada homem traz no coração, essa falta que nos avisa «como um sino» que somos feitos para coisas grandes? Que temos «sede de Deus»?

Não há uma resposta pré-fabricada. Não há fórmulas e formas consolidadas a apresentar, com a garantia de que funcionem por si sós. O próprio Francisco no-lo recorda quando diz que «para a Igreja se abre uma estrada fascinante, como foi no início do cristianismo». É uma aventura. Uma estrada por descobrir, enquanto à nossa volta tudo parece cair.
Mas em Rimini viu-se acontecer qualquer coisa. Nos encontros, no palco e fora. Em tantos frente-a-frentes que provocaram curto-circuitos imprevistos (russos e ucranianos que trabalham juntos numa mostra, imames e rabinos dialogando com um cardeal...). Nalgumas caras que nos marcaram pela sua inconcebível letícia (acima de todos o padre Ibrahim Alsabagh, de Alepo). Numa miríade de feitos impossíveis de construir à secretária, como os que são narrados nestas páginas. Mas que aconteceram. E precisamente porque inconcebíveis, mas acontecidos, são para ser observados até ao fim, percebidos na sua grandeza de conhecimento, para que sejam passos daquela estrada aventurosa e não episódios belíssimos mas sem consequência.

Um dos protagonistas do Meeting foi Abraão. O início do método de Deus, como foi dito. O momento histórico em que o Mistério chama o homem a dizer-lhe “Tu” e, fazendo-Se encontrar, o desperta, faz exaltar toda a sua estatura, as perguntas, a sede; porque «sem Mistério não existe o eu», como dizia Carrón naquele encontro. Assim, através de um, Deus muda a história. Em Rimini vimos de certo modo reacontecer isto; no grande ecrã e nos bastidores.
Vimos momentos daquela aventura, indícios daquela «estrada fascinante». E queremos segui-la.